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segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Resenha Cinema: A Música da Minha Vida


Eu tinha dez anos de idade quando me apaixonei por quadrinhos.
Eu já lia gibis desde antes disso. Aos oito anos de idade, já devidamente alfabetizado (loas para as professoras Stella e Inelda) eu era capaz de ler gibis inteiros do Conan, Super-Homem, Spectreman e turma da Mônica, mas foi apenas aos dez anos que eu realmente me apaixonei pela nona arte em geral, e pelo Homem-Aranha em particular quando, em um frio mês de julho do ano de 1991, durante um ida ao super mercado Moby-Center com meu pai, ganhei A Teia do Aranha número 22.
A primeira história tinha o desfecho de um caso envolvendo o doutor Octopus e a tia May, mas as outras três histórias da edição, envolvendo o candidato a prefeito Richard Raleigh e um gigante chamado Golpeador... Aquelas foram as que de fato me cativaram, e me fizeram garimpar sebos embaixo do viaduto da Borges (havia dois) e tornaram A Teia do Aranha, nas edições que vinham com o "Arquivo Oficial da Teia" o meu quadrinho favorito em todos os tempos. Aos dez anos de idade, as histórias clássicas do Homem-Aranha escritas por Stan Lee, Gerry Conway e Roy Thomas e desenhadas por John Romita, Gil Kane e Ross Andru foram o veículo que me levou, pela primeira vez, a me tornar fã de alguma coisa. A primeira vez em que eu encontrei algo que eu senti que falava comigo.
A Música da Minha Vida, longa que estreou em circuito relativamente reduzido em Porto Alegre na última quinta-feira e que eu assisti no sábado de tarde, é carregado desse sentimento de pertencimento. De encontrar a coisa certa, aquilo que nos toca, que fala conosco em um nível além do discurso, na hora certa.
No longa conhecemos o jovem Javed (Viveik Kalra), adolescente de origem paquistanesa que vive na pequena cidade de Luton na Inglaterra, com os pais e duas irmãs.
O ano é 1987, e a família de Javed luta para sobreviver em meio à recessão do fim do período de Margaret Tatcher como primeira-ministra britânica. Seu pai, Malik (Kulvinder Ghir), comanda a família com autoritarismo de general, controlando os frutos do trabalho de Javed e de sua mãe, Goor (Meera Ganadra) assim como a vida social do rapaz e de suas duas irmãs, e até mesmo o futuro do primogênito, a quem deseja ver formado em contabilidade, administração ou qualquer carreira que vá lhe garantir empregabilidade no futuro e um bom casamento arranjado com uma desconhecida.
Javed, porém, tem outras aspirações.
Ele deseja frequentar festas, beijar uma guria, qualquer guria, se tornar um escritor, e se mudar para Manchester para cursar a universidade tão longe de Luton quanto possível. Ele se inscreveu em segredo no curso de literatura inglesa da professora Clay (a bela Hayley Atwell), escreve poemas e letras para as canções da banda de seu amigo Matt (Dean-Charles Chapman) enquanto tenta encontrar seu lugar na nova escola e no mundo em meio à ascensão do nacionalismo inglês alimentado pela crise econômica e o racismo sempre presente contra a comunidade paquistanesa na Grã-Bretanha.
Javed finalmente tem a sensação de não estar sozinho no mundo quando um colega de escola, o sikh Roops (Aaron Phagura), lhe apresenta a música de Bruce Springsteen na forma de duas fitas k-7 que o jovem escuta, apropriadamente, durante uma tempestade.
Ao som de Dancing in the Dark e The Promised Land, Javed anda pela vizinhança em meio ao temporal, vendo as palavras de Springsteen saltarem dos fones de ouvido de seu walkman e se materializarem ao seu redor, e perceber que seus medos e aflições podem ser estranhos à sua família tradicional ou ao seu melhor amigo com uma vida perfeita, mas que do outro lado da Atlântico, um roqueiro de Nova Jersey sabe exatamente como ele está se sentindo.
E Javed gosta da sensação.
Ele passa a ouvir todas as músicas de Springsteen, colecionar pôsteres que cobrem as paredes de seu quarto, escrever redações a respeito de seu novo ídolo e até a se vestir com os jeans, camisas xadrez e lenços de Born in the U.S.A.
Não é apenas o gosto musical e o guarda-roupa de Javed que mudam, porém.
O adolescente se torna mais confiante, apresenta seus poemas à senhora Clay, enfrenta os racistas que o destratam por sua origem asiática, não aceita que a rádio da escola toque Prince, Flock of Seagulls e Madonna e se recuse a tocar O Chefe, entra em atrito com seu antigo melhor amigo, começa um namoro com a colega engajada Eliza (Nell Williams), e desafia a autoridade de seu pai em casa.
Embalado pelas canções recém descobertas, Javed encontra a força para parar de sonhar em silêncio e encontrar sua própria voz, e enquanto colhe os frutos de sua rebeldia turbinada pelo rock proletário de Springsteen, o jovem tenta descobrir como conciliar suas próprias aspirações e os anseios de sua família enquanto sai da adolescência rumo à vida adulta.
A Música da Minha Vida é ótimo.
O longa nem sempre encontra o melhor dos equilíbrios entre suas múltiplas facetas. Nem todas as risadas são grandes risadas, nem todos os sorrisos almejados são tirados da audiência e alguns números musicais, daqueles onde os atores irrompem em coreografias e todos em cena entoam juntos as letras de Springsteen são meio bregas, mas ao mesmo tempo são abraçadas com tanta candura pela cineasta Gurinder Chadha que é impossível não bater o pé ou balançar a cabeça ao ritmo das canções.
Mas o roteiro, da própria Chadha, mais Paul Mayeda-Berges e Sarfraz Manzoor (adaptando seu próprio livro biográfico Greetings from Bury Park) não fica apenas nisso, e é particularmente esperto ao explorar as tensões entre as diferentes gerações de famílias imigrantes, com os mais velhos tentando manter sua cultura e tradição vivos à qualquer preço e os mais jovens buscando desesperadamente se encaixar em uma sociedade que nem sempre aceita os diferentes, adicionando uma boa dose de drama e contexto cultural ao filme, e essas qualidades ainda não são tudo o que A Música da Minha Vida tem a oferecer, pois sob todas as suas camadas, o longa ainda encontra tempo para ser um tocante drama a respeito da tumultuada relação entre Javed e seu pai, um homem antiquado e orgulhoso que se vê humilhado quando a vida que tentava oferecer à sua família lhe é tirada com seu sustento, e que não consegue aceitar a desobediência do filho.
Conduzido com candura pela sua diretora, o longa tem um elenco inspirado trabalhando à perfeição. Viveik Kalra é um achado, Aaron Phagura parece ligado em 220, Nell Williams é um doce, e Hayley Atwell é acolhedora sem ser condescendente, ainda assim, a atuação capaz de arrancar lágrimas (e sim, me arrancou algumas) é a de Kulvinder Ghir, que transita por todos os espectros, do cômico ao dramático sempre com a mesma competência.
A Música da Minha Vida é um desavergonhadamente emocionante feel good movie sobre amadurecimento embalado por uma tremenda de uma trilha sonora. Está longe, muito longe de ser perfeito, mas é caloroso, acolhedor, esperto sem ser pretensioso e realmente tocante.
Pra quem já se viu sob o efeito de descobrir algo que ama e não conseguir pensar em outra coisa, certamente vale a ida ao cinema.

"-Você acha que esse homem canta para pessoas como nós?
-Ele fala comigo!"

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