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segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Resenha Filme: A Pé Ele Não Vai Longe


Não me lembro ao certo quando foi a primeira vez que vi o trailer de Don't Worry, He Won't Get Far on Foot, cinebiografia do cartunista John Callahan dirigida por Gus Van Sant e estrelada por Joaquin Phoenix e Jonah Hill, mas lembro de ter pensado que queria ver o filme.
Quando ele estreou por aqui, sendo exibido apenas no Guion em fins de dezembro, acredito que não tenha ficado mais do que duas semanas em cartaz, e, eventualmente, perdi a chance de assistir o filme em tela grande, e, considerando que o longa de Van Sant era discreto demais para atrair a atenção do dono da locadora de que sou associado, estava conformado com a perspectiva de, eventualmente, assistir ao filme apenas quando ele aparecesse na madrugada de um Max Prime da vida.
Mas ontem à noite, enquanto vagava pelos serviços de streaming, me deparei com o longa no catálogo da Amazon, e, com quase um ano de atraso, consegui realizar meu desejo.
A Pé Ele Não Vai Longe já começa com John Callahan (Joaquin Phoenix, excelente como de hábito) paralisado discursando para um auditório no que parece um evento dos Alcoólicos Anônimos, mas, existe uma estrutura de matriosca na narrativa, e os flashbacks que acompanhamos são contados em paralelo durante uma reunião do grupo do AA do qual Callahan fazia parte antes disso, e ele também narra sua história a um grupo de meninos de skate que o ajudam a voltar à sua cadeira após ele levar um tombo.
É apenas quando juntamos a narrativa dos três momentos que temos um vislumbre da vida de John desde os vinte e um anos, quando ele já era um alcoólatra tão entregue ao vício que não acordava de ressaca pois ainda estava bêbado pela noite anterior.
John trabalhava com pintura de residências e começava a beber cedo de manhã para evitar os tremores da abstinência mantendo-se bêbado, mas funcional ao longo do dia, para, à noite, chutar o balde em festas e bares bebendo até cair.
Numa dessas noites, John conhece Dexter (Jack Black) o autoproclamado rei do sexo oral de Orange County, outro beberrão de marca maior, que o convence a deixar a festa onde estão para encontrar gurias mais bonitas do outro lado da cidade, o que eles fazem após passarem por outros bares, sempre enchendo a cara, até Dexter, bêbado feito um gambá, confundir um poste com uma saída, e colidir a 140 por hora.
Dexter escapou do acidente com escoriações leves, mas John teve lesões nas duas vértebras superiores ficando sem movimentos abaixo do tórax. Quadriplégico, ou, nas próprias palavras, entre rigor mortis e atleta olímpico.
A partir daí, acompanhamos John enquanto ele passa pelo ajuste à sua condição de deficiente físico, na qual conta com a ajuda da fisioterapeuta Annu (Uma Rooney Mara tão onírica que eu passei boa parte do filme imaginando se ela era real ou imaginação do protagonista), a luta contra o alcoolismo, ao qual combate com o apoio de Donnie (Jonah Hill, excepcional), um ex-alcoólatra que toca seu próprio grupo de apoio aos afilhados do AA, a quem denomina carinhosamente de "porquinhos", seus próprios demônios pessoais, e a descoberta do desenho, que ele usaria para transformar seu ácido senso de humor em um ganha-pão na forma de cartuns que seria publicados na extinta revista National Lampoon, na Penthouse e na New Yorker, além de jornais pelos Estados Unidos.
À primeira vista, a forma fraturada como Van Sant conta sua história soa complicada sem ser complexa, quase como se fosse uma jogada para fazer uma história de superação requentada parecer mais atraente através de um exercício de estilo vazio, entretanto, conforme assistimos ao filme, podemos perceber que é um recurso para mostrar como, dependendo do momento da vida de John em que o ouvimos, a emoção que carrega seu relato muda.
O exemplo mais claro disso é quando ele enumera as coisas que sabia a respeito de sua mãe, uma fala que ouvimos ser repetida várias vezes. Em cada uma delas Phoenix entrega o texto com uma nota totalmente diferente na voz, ora com raiva e tristeza, ora expectativa, ora indiferença, e ora com divertida aceitação.
É uma pena que haja alguns equívocos no roteiro e na condução da história que impedem o longa de alcançar seu verdadeiro potencial. Parte dos problemas é a maneira como Van Sant parece tentar cobrir tanto terreno na primeira metade do filme que, na segunda, temos a impressão de estar revisitando coisas que já vimos, e então o impacto se perde.
Outro problema é a escolha dos eventos aos quais é dado mais enfoque. Parece haver espaço demais para o relacionamento entre John e Annu, que, como eu disse, é uma personagem tão vazia que eu terminei o filme pensando se ela era real, ou não, e a falta atenção a elementos interessantes como o desenho.
Só eu fico boquiaberto com a tenacidade de um tetraplégico para desenhar com uma mão empurrando a outra e ainda conseguir contar uma história com seus quadrinhos?
Pode ser um interesse restrito a desenhistas de fim de semana iguais a mim, mas eu gostaria de ter visto mais disso.
Seja como for, se o roteiro por vezes ancora o filme, Phoenix e Hill sempre tentam decolar.
Nos habituamos a esperar performances sobre-humanas do protagonista nos últimos anos, e ele não tem desapontado (exceto em Homem Irracional. Nada funciona naquele filme), A Pé Ele Não Vai Longe não é exceção. O ator consegue expressar o desespero de um bêbado tentando desarrolhar uma garrafa de vinho com os dentes ou sua aflição olhando para uma garrafa de vodka fora de alcance com a mesma convicção que ternamente pede um abraço ao seu amigo. As cenas entre ele e Jonah Hill são ótimas, mas é o segundo encontro entre ele e o personagem de Jack Black que é o ponto culminante do filme em uma nota tremendamente crua e sem arroubos.
Hill, por sua vez, rouba todas as cenas em que aparece. Magro, lânguido, com uma grande barba e longos cabelos dourados ele parece um Jesus extravagante com suas correntes douradas, túnicas e cigarrilhas, e, à primeira vista soa um pouco besta quase como a caricatura de um gay endinheirado, mas conforme o conhecemos, podemos no flagrar querendo que ele aparecesse um pouco mais (assim como seu grupo de apoio composto pelos personagens de Mark Webber, Ronnie Adrian, Udo Kier, além das ótimas Beth Ditto e Kim Gordon), com sua voz macia que renuncia aos grandes discursos e suas recomendações de "leia o livro, beba água".
É o trabalho desse elenco que garante que, a despeito de seus flagrantes problemas narrativos A Pé Ele Não Vai Longe ainda seja um filme que vale a pena assistir. Se Gus Van Sant e os roteiristas Jack Gibson e William Andrew Eatman ao menos tivessem sido um pouco mais como Callahan e pesado a mão na ironia e no bom humor com mais vontade do que na bajulação, talvez o longa fosse o papa Oscar que parece almejar ser, do jeito que está, porém, ainda é um programa acima da média para uma noite fria e triste de domingo.

"-Eu sei três coisas sobre minha mãe biológica: Ela era descendente de irlandeses. Tinha cabelos vermelhos. E era professora primária. Ah... E ela não me queria. São quatro coisas."

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