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quinta-feira, 3 de outubro de 2019
Resenha Cinema: Coringa
Quando fiquei sabendo que um filme solo do Coringa estava em desenvolvimento, meu primeiro pensamento foi que essa era uma ideia imbecil. Estava na mesma esfera de bobagens caça-niqueis como Venom, Morbius, ou um filme do Sexteto Sinistro, e me parecia ainda pior pois ao contrário da Sony, que detém apenas os direitos do Homem-Aranha para tentar criar um universo de filmes de gibis, a Warner e a DC Comics estão sob o mesmo guarda-chuva corporativo da AT&T de modo que o estúdio tem total liberdade para fazer todos os filmes de super-heróis que quiser sem precisar apelar a tal expediente. Entretanto, quase imediatamente me ocorreu que as melhores histórias da DC são as de seu selo Túnel do Tempo (Elseworlds, originalmente), e eu pensei que, se havia um vilão que merecia seu próprio filme, esse vilão era o príncipe palhaço do crime, um personagem que historicamente não tem uma origem oficial e que segue aberto a interpretações após quase oitenta anos desde sua primeira aparição.
Quando Joaquin Phoenix foi confirmado no papel principal as coisas deram um tremendo passo na direção certa, e o primeiro trailer do filme, em abril, tornou Coringa o projeto mais promissor da DC em muito tempo.
Ontem eu peguei uma sessão de pré-estréia em um horário bem razoável no cinema mais perto de casa e conferi o longa de Todd Phillips.
No filme conhecemos Arthur Fleck (Phoenix, excepcional), um sujeito frágil, solitário e triste que sofre de uma condição neurológica que o faz reagir ao estresse com gargalhadas incontroláveis. Ele vive com sua mãe (Frances Conroy) em um apartamento modesto em um prédio caindo aos pedaços na parte ruim de Gotham City, tem um emprego miserável como palhaço de aluguel e sonha em fazer uma carreira como comediante de stand-up quase tanto quanto sonha com uma figura paterna em sua vida.
Arthur se consulta periodicamente com uma psiquiatra que não lhe dá ouvidos, toma sete medicamentos diferentes que não aplacam seu sofrimento e só não é totalmente invisível porque parece atrair valentões que o veem como um alvo fácil onde exercitar sua covardia ou descontar suas frustrações.
Após anos sendo enxovalhado tanto pelas pessoas a seu redor quanto pelo sistema no qual está inserido, Arthur finalmente reage a uma agressão, e algo estala dentro dele, dando início a um processo que transformará esse homem alquebrado em algo novo e terrível. Algo tão grande que vai muito além de Arthur e se espalha pela cidade decadente onde ele vive como um rastilho de pólvora que dará ao mundo um de seus mais fascinantes monstros.
É fácil entender a dificuldade que a crítica especializada tem tido em categorizar Coringa. Dos oito minutos de ovação e do Leão de Ouro no Festival de Veneza aos cinemas que se recusam a exibir o longa nos EUA, Coringa é um filme difícil de digerir para a nossa sociedade contemporânea.
Os liberais irão se contrair frente à "masculinidade tóxica" de um homem branco abraçando com entusiasmo a brutalidade e a violência. Os conservadores irão apertar os esfíncteres frente à mensagem revolucionária de caça aos privilegiados que o protagonista dispara conforme se aprofunda em sua jornada rumo ao papel de ícone do crime e do terror. Ninguém fica confortável ao assistir Coringa e ninguém deveria.
Não é a ideia.
O longa co-escrito por Scott Silver e Todd Phillips é menos entretenimento baseado em quadrinhos e mais um estudo de personagem. Uma análise do que seria necessário para transformar uma pessoa comum em um monstro. Não é uma jornada fácil de acompanhar. Especialmente quando Phillips transforma Gotham City em uma Nova York dos anos 1970 que grita Táxi Driver, Desejo de Matar e Serpico com uma ambientação decadente e opressiva que serve de casulo para a metamorfose de Arthur.
O ato derradeiro do filme, quando Arthur Fleck realmente abraça a persona homicida do Coringa em toda a sua glória é particularmente medonho e brutal de uma maneira catártica de todas as formas erradas almejadas pela natureza humana.
Sim. É algo pretensioso.
Mas não há nada de particularmente ofensivo em um pouco de pretensão artística. RoboCop seria o filme que é se Paul Verhoeven não visse o longa sobre o policial ciborgue como uma analogia a Jesus Cristo?
Todd Phillips acerta muito mais do que erra na condução da história, e a forma como a audiência no cinema frequentemente ria em cenas que não tinham intenção alguma de ser engraçadas é testemunho do acerto do diretor de Se Beber Não Case e Um Parto de Viagem em narrar a história de Arthur Fleck de uma maneira propositadamente desconfortável.
Outro acerto capital do filme é a atuação de Phoenix.
O ator, esquálido para o papel, cria uma série de tiques e contorções que inicialmente fazem lembrar de seu papel em O Mestre, mas logo ganham uma identidade própria. A maneira como ele desata a rir quase em desespero toda a vez que é confrontado no começo do filme tornam seu Coringa, que ao invés da tradicional gargalhada exercita seu êxtase com passos de dança quase hipnóticos, diferente de todos os demais, mas o ator vai além da mera construção física. Há profundidade emocional em seu Coringa. Ele é menos um agente do caos do que alguém procurando um lugar no mundo e disposto a abraçar qualquer forma de notoriedade que lhe garanta atenção. Ele é uma bomba relógio trágica trazida à vida com galhardia por um ator no auge da forma.
O restante do elenco, que conta com Robert De Niro como o apresentador de talk show Murray Franklin, a bela Zazie Beetz como Sophie, a vizinha por quem Arthur nutre uma paixonite, mais Brett Cullen como o aspirante a prefeito Thomas Wayne além de Glenn Fleshler, Leigh Gill, Shea Whigham e Bill Camp seguram a peteca, mas têm pouco o que fazer além de orbitar Phoenix, que alicerça o longa com tremenda segurança e competência.
Somando-se a óbvia paixão de Phillips pelo projeto ao comprometimento de Phoenix e o valor de produção esperado para uma produção de um grande estúdio, Coringa é um excelente filme que jamais se envergonha de suas origens (a cena durante o talk show alude descaradamente a O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, e Phillips não se furta de nos mostrar novamente uma das cenas mais revisitadas da história das adaptações de quadrinhos), mas as referencia dentro do próprio contexto, em seu próprio tempo e em sua própria abordagem.
É bem possível que fãs de quadrinhos em geral, do Batman em particular gostem mais de Coringa do que a audiência mais ampla, mas qualquer amante de cinema que não esteja demasiado ávido por fazer uma avaliação política do filme será capaz de apreciá-lo pelo que ele realmente é:
Um filmaço.
"Eu costumava achar que minha vida era uma tragédia, mas agora eu vejo que é uma puta comédia."
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