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sexta-feira, 23 de julho de 2010

Flocos de Neve.


Ela, linda, com os cabelos loiros lisos presos para trás por uma tiara larga de plástico azul que combinava com o azul de seus olhos, parara muito grave á porta de seu prédio. Perguntou se ele, meio bagunçado, cabelo castanho, barba de dois dias, podia ir com ela até o banquinho do lado do prédio. Em outros tempos ele teria achado maneiro. Encararia aquilo como sinal que que ela queria dar uns malhos antes de se despedirem, talvez houvesse contato mão/seio entre beijos resfolegantes, e talvez, apenas talvez, outros contatos ainda mais convidativos. Mas essa não era uma dessas ocasiões. Ele sabia. Sabia pelo tom de voz dela, pelo modo cabisbaixo como ela andava em direção ao tal banco, pela forma como ela se sentou e pela forma como ela suspirou ao agarrar sua mão, e encarar os próprios tênis All-Star azul-marinhos enquanto tomava fôlego para começar:
-Abel... A gente precisa conversar.
Abel tremeu na base. Além dos outros sinais mencionados, ele sabia que as coisas não iriam dar certo por que aquele fora um encontro ruim. Muito ruim. Aquele encontro se encaminhava pra ser o pior de todos os tempos. Aquele dia, se encaminhava pra ser o pior dia da pior semana do pior mês de todos os tempos.
A semana, que fora um inferno desde a segunda-feira, quando Abel soube que seu estágio não seria renovado, e ainda assim teria que trabalhar até a sexta-feira para cumprir seu contrato, contivera todos os ingredientes que, bem misturados a azar e uma dose de má-vontade resultam em tragédia.
Abel fora multado com o carro da empresa, ele machucara o pé jogando futebol, derramara suco de laranja concentrado na camisa branca que usaria para procurar um novo emprego na semana seguinte, seu computador dera pau e precisaria de uma nova placa de video que, àquela altura ele, sem emprego, não poderia pagar, uma vez que até as mensalidades de sua faculdade estavam em risco. Além disso ele ficara sentindo os sintomas de uma gripe que se avizinhava.
Mas ele mantivera alguma esperança de que as coisas dariam certo por que, afinal das contas, Abel ainda tinha uma âncora de esperança o segurando em meio a turbulência daquele mar de pequenas tragédias suburbanas. Ele tinha Rita.
Rita, a loirinha da rua de trás, que ele e os outros moleques de sua rua observavam com olhos gulosos á cada passagem dela pela quadra em direção ao super-mercado ou quando andava de braços dados com as outras meninas da vizinhança, e imaginavam se ela cheirava tão bem quanto parecia, se sua pele era tão macia quanto aparentava e se era gentil como denunciava seu sorriso repleto de dentes.
Rita que, inexplicavelmente, resolveu que Abel, á despeito de sua extensa lista de falhas de caráter, era alguém com quem ela poderia conversar.
E, se á princípio Abel imaginara que ela o tomara por um amigo assexuado com quem podia se abrir, logo mudou de opinião quando ela o beijou, de forma meio inesperada, após conversarem por horas em uma noite fria de julho.
Marcaram o encontro para sexta-feira, quando Abel esperava estar de emprego novo, OK, o emprego não surgira, mas ainda assim, ele veria Rita naquela noite. Havia inúmeros empregos no mundo inteiro que Abel podia conseguir, mas apenas uma Rita, e ela o estava esperando às sete horas naquela noite, quando iriam ao cinema ver um filme, depois jantariam e então, Abel a beijaria longamente, agora preparado, não de sopetão como fora na quarta-feira, e estaria namorando oficialmente com a guria mais linda do bairro, quiçá da cidade, antes das onze horas.
As coisas porém, foram dando errado no decorrer da noite.
Abel se atrasara, pegara na lavanderia as roupas erradas, e, ao sair do banho percebeu que só tinha vestidos floridos para usar no encontro. Teve que correr á lavanderia de bermuda e regata sob um frio de quatorze graus para destrocar o pacote.
Chegou quinze minutos atrasado à casa de Rita, que o recepcionou com um sorriso.
Demoraram para conseguir um táxi que pudesse levá-los ao shopping onde ficava o cinema, e, quando conseguiram, viram-se nas mãos de um motorista que fazia apenas sua terceira viagem com passageiros e errou o caminho.
Chegaram ao cinema vinte e oito minutos após o começo do filme, e escolheram outra coisa pra ver. Rita sugeriu que vissem o que estivesse começando naquela hora, independente do que fosse.
Acabou em uma poltrona, ao lado da menina mais delicada da Cidade Baixa assistindo Predadores, um festival de sangue, tripas e gosma regado á testosterona, tiros e frases de efeito. Á certa altura ele teve a impressão de que Rita dormia.
Quando saíram do cinema já era mais de dez da noite, e a praça de alimentação estava fechada, saíram à caça de um lugar onde jantar e acabaram em uma churrascaria duas quadras de shopping, e, após sentarem e pedirem as bebidas, ele descobriu que Rita era vegetariana.
Comeram do buffet de salada enquanto conversaram sobre política (Rita de esquerda, Abel de direita.), religião (Rita espírita, Abel protestante.), até futebol (Ela gremista, ele colorado.). Antes da sobremesa Abel sabia, inconscientemente, que colocara tudo a perder. A proverbial gota d'água, entretanto, veio quando ele, ao sair do restaurante, em uma ato reflexo, largou a porta deixando ela bater violentamente contra a cabeça de Rita, que mexia na bolsa e nem sequer pôde desviar.
No caminho de volta, Abel e Rita permaneceram em silêncio ouvindo o taxista maldizer a EPTC que o multara pela décima nona vez.
Foi pensando nisso tudo que Abel, ao ouvir a sentença de Rita de que precisavam conversar, soube, em seu íntimo, que ela seria delicada e gentil, e diria á ele que não o veria novamente.
E, pra ser franco, ele sabia que não merecia vê-la de novo. Já era demais pra alguém como ele, um tremendo chato, intransigente e auto-indulgente, ter tido o priviégio de sair com Rita, mais que isso, de beijá-la nos lábios cálidos e macios que emolduravam aquele sorriso de pôster de "gentileza gera gentileza". Ele se antecipou:
-Eu sei. Eu sei e entendo.
-Sabe o quê?
-O que tu vai dizer. Que tu não quer mais me ver. E eu entendo, Rita. Sério mesmo.
-Abel...
-Não, não. Tu tem razão. Olha, me desculpa por tudo, tá? Bom sair contigo, a gente se vê por aí.
Abel levantou-se e fez menção de começar a andar, mas foi impedido por Rita, que o segurou pela mão, levantou-se e o beijou, uma vez mais, de surpresa.
Abel, sem reação, apenas a encarou, aturdido.
-Vamos ver se pegamos a sessão de Toy Story no domingo?
-Vamo...
-Me pega as cinco, então. Aí a gente chega lá com tempo.
Ela beijou ele de novo, o levou até o portão e se despediu com um "me liga amanhã.".
Abel saiu caminhando como se flutuasse, tendo, em seu íntimo, a sensação de que aquele desfecho fazia toda a semana valer a pena, e seguiu pra casa sorrindo, apesar de não ter entendido como chegara até ali.
O que Abel não entendia, é que não há sentido nas coisas, que as pessoas são tão diferentes e ininteligíveis quanto podem ser, e que o que pra ele, tinha sabor de tragédia e fiasco, pra Rita, tinha sabor de romance.
E eles se dariam bem. Muito bem.

3 comentários:

  1. ''Como alguém que é melhor do eu, pode me querer?''
    Acho que Abel enfim ,não dormirá mais com essa dúvida .
    ps: muito legal a forma como Rita foi descrita, embora ela não goste de filmes gosmentos, eu gostei dela.
    :)

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  2. http://avidaeumaopera.blogspot.com/2010/05/deus-enfim-existe.html


    o meu é curtinho e não tão rico em detalhes como o seu, mas o espirito talvez seja o mesmo :)

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  3. Gostei muito desse, Laís, me identifiquei horrores com o narrador, embora eu não sei se teria a paciência que o relacionamento com a Catarina requer, mas eles são mesmo variações do mesmo tema.

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