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sexta-feira, 29 de abril de 2011

Resenha Cinema: Thor


Se tu viu Homem-de-Ferro 2, e não foi dos apressadinhos que saiu assim que apareceu o the end na tela, nem desligou o DVD assim que o Tony Stark sorriu pra câmera depois de ser espetado pelo senador Stern, então deve ter visto a cena no final dos créditos onde o agente Coulson aparecia no Novo México, e avisava que havia encontrado algo dentro e uma cratera, para segundos depois, em um ângulo diferente, revelar-se, dentro da tal cratera, Mjölnir, o martelo de Thor.
Obviamente, era um aviso de que o próximo longa que a Marvel faria para pavimentar o caminho que leva até o ambicioso projeto Os Vingadores, seria o do Deus do Trovão.
Lá se vai um pouco mais de onze meses, e o poderoso herói mitológico aterrisa no cinema em um longa que, desde o começo da veiculação de notícias, prometia.
Kenneth Brannagh na direção era um ótimo começo. Anthony Hopkins interpretando Odin, também. Natalie Portman como Jane Foster, o obrigatório interesse romântico do herói, não ficava atrás em termos de talento. Se a escolha do protagonista Chris Hemsworth bem como a de seu meio-irmão Loki (Tom Hiddleston), eram incógnitas, as demais posições do elenco iam formando um mosaico interessante.
Ficava a dúvida, seriam o elenco interessante e o diretor shakeasperiano o suficiente pra segurar o rojão da primeira incursão dos estúdios Marvel pelo lado mais mágico do universo da editora? Como se sairia Brannagh com uma fita que era, em essência, um filme de ação recheado de efeitos visuais incluindo aí um desnecessário 3-D?
Bom, após assistir ao filme, preciso dizer que, à despeito de algumas falhas recorrentes na filmografia Marvel, sim.
Foi o suficiente.
O longa narra a história de Thor, um imortal de poder divino, filho primogênito de Odin, rei de Asgard, e que está fadado à ascender ao trono de seu pai.
Thor, no entanto, é um jovem tolo e orgulhoso, e apesar de ser um guerreiro bravo, suas ações intempestivas podem colocar em risco a seguranças de Asgard e seu povo. Em especial seu ódio à Jottunhein, e aos gigantes do gelo que lá habitam.
Por suas ações destemperadas, que colocam Asgard à beira da guerra, Odin decide banir o filho para a Terra, onde ele deve aprender uma lição de humildade e nobreza para ser, novamente, digno de empunhar seu martelo e reaver seu poder.
Não é muito diferente da história dos quadrinhos à exceção de pequenas alterações que servem para tornar a história mais enxuta e capaz de caber nos aparentemente obrigatórios cento e vinte minutos de filme da Marvel, nada ofensivo, no entanto.
De mais perceptível, Thor não assume da maneira que se espera a identidade de Donald Blake, e Jane Foster não é uma enfermeira, e sim, uma astrofísica à procura de provas do fenômeno das pontes Einstein-Rosen, o que a coloca imediatamente no caminho do deus do trovão, tudo em nome de uma duração dentro do previsto.
Não se preocupe, porém, isso não quer dizer que o filme seja (muito) corrido. Ainda há espaço pra cenas de ação excelentes como a invasão asgardiana à Jottunhein, aparições de personagens secundários interessantes como Hogun (tadanobu Hasano), Fandral (Josh Dallas) e principalmente Volstagg (Ray Stevenson), além da linda Jamie Alexander como Sif, Colm Feore como o rei gigante Laufey, Kat Dennings como a engraçadinha Darcy Lewis, Idris Elba no papel do vigilante Heimdall, Stellan Skarsgaard como o doutor Erik Selvig, e Rene Russo em ponta de luxo como Frigga.
Todo o elenco tem seu momento de brilho, o que é sempre bacana em filmes com tantos personagens, mas é a trinca Hemsworth, Hopkins e Hiddleston que faz a fita andar.
O protagonista não deixa a peteca cair, é um sujeito grande, loiro, forte e bonitão que se vira no papel heróico sem grandes arroubos e ainda se dá ao luxo de rir de si mesmo sem perder a imponência. Anthony Hopkins por sua vez enche Odin de presença, elegância e poder. Suas cenas são sempre excelentes, e é muito maneiro ver um ator tão maduro e talentoso se divertindo no seu ofício. A grande surpresa fica, mesmo, nas mãos de Hiddleston e seu Loki. O que poderia ser um personagem bidimensional e chato se transforma em uma criação profunda e cheia de vida na caracterização do britânico. Se Hiddleston não rouba o filme, rouba todas as cenas em que aparece, e é o único ator que consegue dividir a tela com Hopkins sem desaparecer. Sorte que Brannagh estava muito à vontade atrás das câmeras e conseguiu equilibrar bem as aparições dos personagens de modo a evitar que Thor se transformasse em um coadjuvante de seu próprio filme, além de deixar o efeito 3-D discreto.
Ao final da sessão, fica a certeza de que Os Vingadores vai vingar (rá.), que potencial a Marvel tem de sobra pra fazer filmes mas que eles precisam oferecer alguns minutos a mais aos seus criadores, de modo a evitar terceiros atos apressados como vem acontecendo nos longas da Casa das Ideias.
Ah, fique até o final dos créditos.

"Esta forma mortal está enfraquecida, eu necessito de sustento!"

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Influência



-Tâmo fodido, Pê Erre. - Disse o Everaldo sombrio enquanto largava mais um copo de cerveja vazio em cima da mesa. - Tudo fodido. - Completou, ainda.
-E por que tu chegou à essa conclusão, Everaldo? - Perguntou, a contragosto o Paulo Roberto, olhando em volta, já antevendo alguma bobagem.
-Tu viu TV na última semana, Pê Erre?
-Não. Mas tenho certeza de que tu viu.
-Eu vi. Vi sim, caralho. Alguém tem que se manter informado dessa porra toda...
-Mas TV não era um... Como tu chamava? "Veículo de desinformação idiotizando o povo para transformá-lo em massa de manobra de um complexo industrial maligno"?
-Então tu tava ouvindo, filho da puta, ainda bem. Prova que tu não é tão escroto quanto parece, ás vezes.
-Grato.
-Te fode. Mas tu viu ou não viu TV, caralho?
-Vi por cima. Não tenho saco pra TV, só uns noticiários.
-Então, porra! É dos noticiários mesmo que eu quero te falar! Qual a notícia mais mostrada ultimamente? Qual o lance que mais ocupa espaço na mídia?
-Aumento dos combustíveis?
-Não, porra, isso só aqui no Brasil, tô falando em termos globais, punheta.
-Não sei, não sei... A certidão de nascimento do Obama? O casamento real, lá na Inglaterra?
-Isso, caráleo! Isso! O casamento real! Tu consegue perceber o que tem por trás disso, Pê Erre?
-Bom... Pompa e circunstância, eu suponho... Aquecimento do turismo na Grã-Bretanha, interesse da população em geral, especialmente dos menos instruídos...
-Não, porra! Não! Quais os interesses implítiços, quer dizer, implítidos, Implícitos em tanta divulgação? Por que as redes de TV vão interromper seus noticiários pra mostrar a merda do casamento?
-Sei lá... Pra, caso o Bin Laden apareça de penetra eles possam mostrar ao vivo?
-Não Pê Erre! Não! Não, porra! Tu não vê? É pra valorizar a instituição casamento! Pra valorizar a porra da instituição família, Pê Erre! Pra fazer com que as pessoas se casem, caráleo!
-Então a família Real britânica quer que as pessoas se casem?
-Não, Pê Erre, deixa de ser burro, porra! A família Real é só joguete. O interesse é da mídia!
-A mídia quer que eu me case?
-Quer, Pê Erre! Quer! Eles querem que tu te case, que tu tenha uma caralhada de filho, que tu coloque eles todos na frente da televisão pra que eles também casem, e também tenham uma caralhada de filho, e assim sucessivamente enquanto eles enchem os bolsos com o dinheiro dos patrocinadores, que enchem os bolsos com o teu dinheiro de consumista desenfrado e burro em um círculo vicioso de interesses excusos onde tu, a Fátima e o Miguel não são nada além de gado!
-Quem é o Miguel?
-O dono da porra do bar, Pê Erre!
-E a Fátima?
-É uma porra de pessoa imaginária que se alinha na mesma categoria que tu e o Miguel, cacete!
-Bom, tua teoria não me parece factível. Por que eu tenho que ser casado pra consumir? Eu consumo sendo solteiro.
-É por que, casado, tu perde o livre arbítrio, Pê Erre! Casado tu te torna um zumbi! Tu vai estar sempre estressado, a tua mulher não vai querer dar pra ti e tu vai ficar irritadiço, vai procurar satisfação em coisas mais simples, como um cigarrinho, uma cervejinha, um aparelho de som, uma porra de um tênis cheio de mola no garrão...
-Eu já uso tênis com mola no calcanhar, é bom pra coluna uma barbaridade...
-Te fode, Pê Erre! Era um exemplo. Tô falando, o complexo idustrial maligno que rege o mundo te quer casado, casado tu tem que trabalhar mais, pra satisfazer as tuas necessidades básicas, fazer um agrado pra nêga véia e garantir o lado dos pirralhos. Casado tu concome mais e pensa menos, Pê Erre, por isso a insistência midiática com a merda do casório real!
-Se a TV me quer casado é só colocar uma Juliana Paes ou uma Cléo Pires sem roupa no meu caminho, é muito mais convincente do que mostrar o príncipe da Inglaterra se casando. - Disse Paulo Roberto, casualmente enquanto apontava o copo e a garrafa vazuios sobre a mesa.
-Mas não é pra tu ver, caráleo! É pras mulheres! Elas é que vão ver essa merda e depois vão sair pra rua com conto de fadas na cabeça e trouxas que nem tu na mira!
-Que nem eu?
-É, Pê Erre, me desculpa, mas tu é um trouxa no que toca às mulheres. Mulher faz o que quer de ti.
-Ah, faz mesmo. Melhor ser feito de gato e sapato pela mulherada do que envelhecer uma bicha enrustida que nem tu.
-Vai tomar no olho desse teu cu, Pê Erre.
O garçom depositou mais uma cerveja na frente de Everaldo e outra Coca-Cola na frente de Paulo Roberto.
Nisso, três moças entraram no bar, eram bonitas as três, entraram lépidas serpenteando por entre as mesas do bar até o balcão, onde abancaram-se lânguidas e pediram caipifrutas. Uma delas, de longos cabelos negros e felinos olhos castanho-esverdeados fitou Paulo Roberto.
A princípio ele suspeitou que não fosse com ele, mas apenas até dar-se conta que atrás de si não havia nada, senão a parede.
Encarou a mça de volta, primeiro sério, então, após alguns minutos, com um sorriso. Flertou com ela por alguns breves minutos, e surpreendeu-se ao perceber que era correspondido. Até que, uma das acompanhantes da moça deu um grito estridente e pediu que o Miguel aumentasse o som da TV atrás do balcão.
-Olha lá, Cândida!
A Cândida, a morena que flertava com Paulo Roberto olhou pra TV. Um noticiário mostrava magens do casamento de William e Kate. As três penderam a cabeça pra esquerda e fizeram "Óóóóóóóóóóóóiiiiinnnnn!" em uníssono.
Everaldo debruçou-se sobre a mesa e sussurrou em lá-lá-lás a marcha nupcial.
-Vai tomar no teu cu, Everaldo.
O Paulo Roberto nem sabia por que ainda andava com o Everaldo.

Intriga



A Berenice entrou no refeitório da empresa com cara, não de poucos, mas de nenhum amigo. O tempo todo, na fila do buffet, bateu o pé no chão compassadamente enquanto tamborilava os dedos da mão no braço. Após servir-se e pagar pela comida, andou batendo os pés pelo salão até encontrar a mesa onde estavam sua amiga Silvana, e seu colega Viktor de SanMartin (pronuncia-se SanMartã.).
Sentou do lado da Silvana e do Viktor jogando o seu prato de salada verde e frango grelhado sobre a mesa. Abriu sua lata de guaraná zero com truculência, fazendo um ruído alto e respingando a bebida gasosa pra todo lado.
Serviu o refrigerante no copo sob o olhar atento de Silvana, e tomou um gole rápido. Quando engoliu, ao invés de fazer "aaah!" como nas propagandas, fez "ârh.". Deu uma garfada brutal em um tomate cereja no prato, que atingido de esguelha pelo talher, voou pela mesa até cair no chão.
Berenice rosnou enquanto cortava com fúria uma folha de alface quando Silvana finalmente perguntou:
-Manhã cheia?
-Quê? - Perguntou Berenice, agressiva.
-A tua manhã, no trabalho... Muito difícil? - Explicou Silvana perguntando novamente.
-Ah... Não. Nem fiz nada. Fiquei a manhã inteira encarando a tela do computador e tamborilando os dedos na escrivaninha. Um inferno. - Contou Berenice com olhos cansados.
-Quê foi que houve? - Quis saber a amiga.
-Ah... O Norberto e eu andamos nos bicando. - Disse Berenice, referindo-se ao marido. - Não sei nem por quê, eu falei alguma coisa com ele e ele me respondeu atravessado, aí eu fiquei brava, falei grosso com ele, nós fomos estúpidos mutuamente e brigamos. Ontem ele dormiu no sofá, e eu, de tão furiosa, só consegui dormir quando já era quase hora de acordar.
-Ah, isso acontece, é da dinâmica da vida de casada... Os casais brigam de vez em quando, é normal. - Acalmou-a Silvana.
-Ah, mas anda frequente demais, Sil... Eu nem lembro quando foi a última vez que eu e o Norberto passamos uma semana sem uma discussão... Isso não pode ser normal, não foi pra isso que eu me casei. - Confidenciou Berenice, cansada.
-Ah, ele deve estar estressado com alguma coisa, pode ser um problema no trabalho afetando a vida pessoal, acontece. Tenta ser um pouco mais compreensiva, Berê, ás vezes o teu gênio atrapalha um pouco o teu julgamento. - Aconselhou Silvana.
-Meu gênio? - Perguntou Berenice, cabreira.
-É, tu é muito sanguínea, temperamental, se te pisam nos calos tu já fica toda fula. Eu sei pois trabalho contigo já tem uns bons cinco anos e vi como é o teu humor. De repente o Norberto tá cheio de coisa na cabeça, é um pouco mais sucinto numa resposta, tu sobe nas tamancas e fala grosso com ele, ele também se irrita pois já teve, de repente, um dia complicado, e pronto. Vocês fazem um furacão Katrina num copo d'água. - Explicou Silvana, o mais diplomaticamente possível.
-Pois é... Será que é isso? Pode ser, né? - Ponderou Berenice. - O que tu acha, Viktor? Será que é isso? - Inquiriu dirigindo-se ao colega que passara o tempo todo em silêncio e poderia oferecer um ponto de vista masculino pra questão..
-Pode ser isso, sim... - Respondeu Viktor, com os olhos baixos semiocultos por detrás de seus cílios compridos, se levantando.
Berenice, aliviada, suspirou enquanto colocava um tomate-cereja na boca. Mas Viktor, enquanto passava por trás dela, se agachou e disse em seu ouvido:
-...Ou então ele tem uma amante e não suporta mais ter que manter as aparências.
Berenice mordeu o tomate com fúria, enquanto o colega se afastava sob os olhares reprovadores da Silvana.
Viktor de SantMatirn, o intrigante, atacara novamente.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Não tenho medo.


-Do que tu tem medo? Eu não tenho medo de nada. Nada. Eu nunca sinto medo. Ás vezes fico apreenssivo. Mas medo? Medo não. Tu nunca vai me ver assustado. Se tu duvida eu tenho fotos minhas andando na Fire Whip do Beto Carreiro. É hilário, todo mundo em desespero e eu tranquilo, olhando em volta. Eu não tenho medo de nada. Nunca. Tu nunca vai me ver assustado. Tu nunca vai me ver encolhido de pavor. Nunca.
-Mesmo?
-Não. Eu tenho muito medo de uma coisa... Eu tenho medo de que as pessoas saibam como eu me sinto em relação à elas. Isso é um tipo de poder que não se pode sair dando pras pessoas. Nada pessoal, mas as pessoas são essencialmente más, sabe? Quem vai saber o que elas farão com a informação e o poder nela contido? Eu não quero, nunca, que as pessoas saibam como eu me sinto em relação á elas. Por isso, talvez eu seja tão fechado.
-Só isso?
-Não... Eu também tenho medo que as pessoas me veja como eu sou de verdade. Sem os mecanismos de defesa, sem as barreiras, os bloqueios, eufemismos e a distância que a etiqueta sugere. Eu tenho medo que tu perceba que eu sou um sujeito bobo, que ri de gargalhar, que ás vezes desafina a voz quando fala empolgado sobre alguma coisa, que ás vezes não sabe o significado de uma palavra, ou a origem de uma expressão ou a data exata de um efeméride histórico. Eu não quero que tu veja o meu cabelo bagunçado de manhã, e me veja mancar com a perna dormente até o banheiro pra fazer xixi e pense "Meu Deus, o que foi que eu vi nesse guri?", pois eu não acredito que exista um Deus pra te lembrar de alguma coisa pois eu nem sei o que tu pode ter visto em mim, e nem sei se tu, de fato, viu alguma coisa em mim, ou se tu parece gostar de mim não por algo que tu viu, mas por alguma coisa que tu não viu, e que eu não seja nada além da antítese de alguém que te feriu uma vez.
-Sabe... Quando tu começou a falar, tu disse "as pessoas", depois tu tava te dirigindo diretamente a mim.
-É. É tu que me mete medo, guria.

Roupa íntima


O Durval espichou metade do torso pra fora da janela do apartamento e pendurou, com alguma dificuldade, a toalha que usara pra se secar após o banho. Enfiou a mão de volta pra dentro do apartamento, e sacou dois prendedores de roupa da cesta de plástico que estava pendurada por dentro da janela, colocando no varal retrátil uma cueca boxer preta recém lavada.
"Pronto", pensou. "Feito o carreto.". Estava se virando de volta pro lado de dentro do apartamento para ouvir as notícias do futebol quando seus olhos se desviaram brevemente pra baixo e ele teve sua atenção captada por uma peça de tecido colorida no varal de baixo.
Uma calcinha vermelha. Pequenininha. De renda.
Não quis ser indiscreto, mas não resistiu. Mirou a peça íntima e ínfima com atenção. Era bonita a calcinha. Não era bem o tipo de peça que se via com frequência em varais. Fio dental, alças laterais rendadas... Será que era assim que chamava? Alças? Ou tiras, que alça era só pra sutiã? Aliás, sutiã ou soutien? Com um "t" ou dois? Diabos, pensou Durval, estava se desviando em demasia do assunto. Aliás, deu-se conta, nem tinha que estar encarando a calcinha da vizinha, coisa mais feia, seus pais não o haviam criado daquele jeito. Precisava se conter.
Voltou pra dentro do apartamento. Sentou-se na frente da TV e ligou no noticiário esportivo. Levantou-se. Foi até a geladeira, apanhou um refrigerante e um frasco cheio de castanhas e voltou pro sofá. Colocou a garrafa de refrigerante e as castanhas na cômoda ao lado de onde sentaria e afofou a almofada que ficava ás suas costas. Virou as costas pro sofá, respirou fundo, mas não resistiu. Foi até a janela e deu mais uma espiada. Aquela calcinha o deixara intrigado. Nem era particularmente fã de peças como aquela, pra ser bem honesto, gostava mesmo era de ver mulheres com calcinhas de algodão com alças (ou tiras, ou seja lá como chamava) bem fininhas. A questão é que aquela calcinha, por mais que não fosse o seu tipo de calcinha preferido, era praticamente um sinal de identificação. Era uma peça que encerrava uma promessa. Era um tipo de depositório de más intenções, mas no bom sentido, claro.
A verdade é que ele conhecia a menina do 614, ela se mudara pra lá quase um ano atrás, ela e ele saíam de casa mais ou menos no mesmo horário, haviam pegado o elevador juntos algumas vezes, ela era muito bonita, sim, educada, também. Simpática, claro que ele havia reparado nela, já havia até a ajudado com as compras algumas vezes, lhe emprestara uma lâmpada, e a ajudara a trocar a resistência do chuveiro, mas foi só, se ela era areia demais pro seu caminhãozinho antes, imagine então, agora, sabendo que usava aquele tipo de peça íntima?
Na verdade, olhando em perspectiva, se ele fosse imaginá-la de roupa íntima, o que ele ainda não havia feito, e nem tinha por hábito fazer quando pensava em uma mulher, ele a imaginaria com aqueles conjuntos beges. Não aqueles de vovó. Não... Não, aqueles conjuntos beges de avó seriam um exagero... Ele a imaginaria com um conjunto bege de renda. Isso. Nada muito grande, mas também não muito pequeno. Uma lingerie sóbria e discreta. Não seria maneiro como aquelas calcinhas um pouco maiores e mais práticas de esportista, nem nada com bichinhos desenhados, nem a calcinha de algodão com as tiras, ou alças, fininhas que ele gostava, e muito menos aquela calcinha rubra que tinha luxúria escrito em braile nas rendas provocantes, aquilo era peça pra uma discípula de Lucrezia Bórgia.
Estava ali, imerso nesses pensamentos quando a vizinha colocou o corpo esguio pra fora da janela e se pôs a recolher a roupa, olhou pra ele e sorriu acenando, enquanto ele, nervoso, olhou pro céu com cara de paisagem e sorriu amarelo enquanto entrava de volta pro apartamento.
Naquela noite Durval sonhou com a vizinha do seicentos e quatorze. Em seu devaneio ela estava usando um corpete de couro negro, meias sete oitavos e cinta liga combinando com aquela calcinha escarlate do varal. Ela se aproximava dele, cândida apesar dos trajes sumários, e ao chegar perto o suficiente, sussurrava em seu ouvido que era tudo pra ele.
Acordou nervoso, o Durval. Suado e assustado. Foi ao banheiro, atendeu ao chamado da natureza, e foi à cozinha beber um gole d'água. Foi até a janela e deu uma espiada no apartamento abaixo. Várias calcinhas, ali. Nenhuma sequer parecida com a peça vermelha, mas havia algumas calcinhas de algodão. Não com as tiras, ou alças fininhas que ele tanto gostava, mas eram fofas, pra ser bem sincero. Meros embustes? Inquiriu-se Durval. Despistes para esconder a verdadeira personalidade da devoradora de homens em pele de universitária gentil? Ele não sabia. Foi pra cama se cobriu e fechou os olhos, precisava trabalhar no dia seguinte. Sentiu um calorão e precisou se descobrir. E abrir a janela.
No dia seguinte, após fazer sua higiene matinal e comer um café da manhã rápido, vestiu-se com presteza e saiu para o trabalho. Entrou no elevador e comprimiu o botão do térreo enquanto se escorava na parede do fundo.
Mal havia bocejado quando a porta do elevador se abriu. No sexto andar. Ela entrou, sorriu-lhe um "bom dia, vizinho" muito doce, e se escorou na parede um pouco á frente dele. Ele não pôde evitar de dar uma conferida rápida no traseiro dela. Estaria aquela moça educada usando, sob a calça jeans uma calcinha digna de filme pornô? Iria ela mais tarde, ainda naquele dia realizar peripécias de alcova de deixar Valéria Messalina corada? Durval ainda estava imerso nesses pensamentos quando a vizinha virou-se pra ele e percebeu que ele a mirava na altura das ancas. Enrubescido, Durval olhou ela nos olhos, então olhou pro teto, então, pra ela de novo, e sorriu sem graça:
-Calorão, né?
Ela sorriu sem dizer nada e continuou olhando pra frente. Quando o painel do elevador fez um estridente "ping", e a porta se abriu, ela saiu e segurou a porta pra ele, que agradeceu sorrindo. Andaram juntos até a porta do prédio, e então aconteceu, ele ia suspirar um boa dia e ir pro seu lado, mas ela o impediu:
-Vizinho... Desculpa, é mania, minha. Durval, né?
-Hã... É..
-Olha só, Durval, tu quer, sei lá... Ir no cinema, ou alguma coisa, qualquer hora dessas?
Durval a encarou por alguns instantes, era tão bonita com seus cabelos pretos bem compridos e as sombrancelhas arqueadas e os lábios bem desenhados e todo o resto... Quis dizer que sim, que adoraria, que só se fosse agora. Mas aí... Aí lembrou-se da calcinha escarlate. Lembrou-se da lingerie que exalava provocação por entre as rendas, lembrou-se que ela era uma linda e insuspeita devoradora de homens, e que por mais aventureiro que ele fosse, e ele não era nem um pouco, seria apenas questão de tempo até que ela o mascasse como a um chiclete e cuspisse apenas seus ossos e os restos de seu coração dilacerado. Apenas questão de tempo até que ela percebesse que ele era apenas um sujeito normal e bobo, que ficava com o cabelo todo bagunçado e engraçado quando dormia, e que assistia o mesmo filme milhares de vezes, e que ela não queria nada com ele. Pigarreou polidamente e disse:
-Pois é... Ando ocupado... Tenho que ver... Eu te aviso, tá? Bom dia.
E saiu em direção ao seu trabalho, deixando atrás de si a vizinha do seicentos e quatorze, que achou que tinha feito alguma burrada, afinal, era tímida como ela só. Mais tarde, na aula, acabaria comentando com alguma das suas amigas que levara um fora do vizinho, e seria de novo motivo de chacota das colegas por ser solitária. Mas enfim, não podia mais pensar nisso. Estava atrasada pro estágio e tinha aula mais tarde e nem sabia se ia poder passar na lavanderia pra devolver aquela calcinha vermelha sem-vergonha que acabara ficando no meio das suas roupas.

terça-feira, 26 de abril de 2011

Caráter


Era uma manhã abafada e quente de verão. Estavam, ele e ela, sentados na mesa acanhada de uma acanhada lanchonete na beira de uma estrada localizada entre longe pra cacete e lá no raio que o parta. Viajavam juntos pela primeira vez, casamento de um primo dela. Morava no interior, teria casório com a igreja da praça da matriz decorada e festança no salão paroquial, depois.
Ela o convencera, sem muito esforço a ir junto. Agora ali estavam, após três horas de viagem, parados esperando o atendimento. sorriam um para o outro, olhando-se nos olhos. Ele segurava a mão dela acariciando-a com o dedo indicador. Se conheciam a pouco tempo, tirando o tempo em que se conheciam de vista na vizinhança, haviam começado a sair a menos de um mês, haviam ido ao cinema, a shows de música, à danceterias, e jantares, e ele já sabia que ela era a mulher de sua vida. Não apenas por que ela era linda, e ela era. Muito. Um harmonioso conjunto de detalhes que iam dos longos cabelos castanho-claros bem lisos até os pés tamanho trinta e seis, passando pelos olhos castanho-claros, o nariz lindo, o sorriso divino, e que se aliavam pra formar aquela moça linda e muito, muito cheirosa. Essa, aliás, era provavelmente uma das razões por que ele era apaixonado de maneira irremediável por ela:
Ela estava sempre cheirosa. Incrivelmente cheirosa, muito, muito deliciosamente cheirosa. Ela acordava de manhã cheirando bem, e depois do banho, ih, meu amigo, depois do banho até covardia era.
Enfim, ele sabia que ela era o seu sonho e a sua idealização feitos mulher e por algum desses estranhos acasos do destino colocada em seu caminho.
Se ele não tinha dúvidas de que ela era tudo o que ele queria da vida, ela não nutria o mesmo entusiasmo com relação a ele. Não que ela não gostasse dele, de maneira nenhuma, se não gostasse, ela não sairia com ele, simples assim. Mas ela procurava algumas coisas, algumas qualidades bastante específicas em um homem.
Ela queria mais do que boa retórica, aparência razoável e cultura inútil. Ela queria caráter acima de tudo. Queria um homem que estivesse disposto a fazer sacrifícios por ela e pela família. Não que quisesse arrancar o couro de um pobre coitado em uma relação doentia, não. Ela era dona do próprio nariz, trabalhava, cuidava e suas coisas e ia atrás do que queria. Mas queria saber que o homem com quem fosse passar o resto da vida seria capaz de colocar as coisas em perspectiva como ela sabia que faria um dia, com as necessidades dos seus à frente das suas próprias. Achava que era a melhor maneira de uma família funcionar, mas ainda não sabia se ele, por mais gentil que fosse e mais apaixonado que parecesse era capaz de fazer isso, portanto, ia devagar e com andor.
Ali estavam, sorrindo um para o outro, olhando-se nos olhos. Ele segurando a mão dela e acariciando-a com o dedo indicador. Finalmente o atendente da lanchonete, um sujeito gordo que tinha a pele tão engordurada quanto o avental curto que pendia em sua cintura, se aproximou. Com voz tonitruante perguntou o que queriam. Ela pediu uma torrada, ele quis um cheese coração. O sujeito anotou os pedidos e perguntou o que iriam beber.
-Uma Coca seicentos. - Ela disse.
-Só lata. - Replicou o atendente.
-Pode ser.
-Uma Soda limonada, pra mim. - Ele pediu.
O atendente saiu arrastando os pés e então voltou com uma suada lata de coca em uma mão e um copo na outra, colocou o copo diante dela e abriu a latinha, servindo metade do copo. Virou-se pra ele.
-Não tem mais Soda.
-Pode ser uma Sprite.
-Também não tem.
-Fanta laranja?
-Só Fanta uva, e fora do gelo. Gelada tenho uma lata de Coca, que é a última, pode ser?
-Nah... Me traz uma Fanta uva, mesmo.
-Tá quente. - Advertiu o atendente.
-Sem galho.
O atendente saiu arrastando os pés, e voltou limpando o pó da lata roxa com o avental. Abriu a lata e serviu a beberagem que espumou até quase transbordar o copo, saindo em seguida.
Ela se inclinou pra frente.
-Que mal servido, né?
-Arram. - Ele concordou tomando um gole do refrigerante.
-Por que tu não pediu a coca?
Ele fez uma careta enquanto engolia. - Tu queria um refrigerante seicentos mililitros, eu te conheço, tu come pouco mas toma refrigerante até por dentro dos olhos, quando tu terminar de comer a tua torrada a tua latinha vai estar mais seca que o deserto do Sahara e tu vai querer tomar mais refrigerante. Eu tomo qualquer coisa, tu só toma coca, então eu quis deixar a outra latinha que ele tem pra ti.
Ela sorriu enternecida.
-Mas fanta uva morna?
-É horrível - Ele concordou. - Mas depois tu tira o gosto ruim da minha boca com uns beijos. - Concluiu sorrindo.
Ela sorriu e deu um gole na sua Coca geladinha. Talvez ele fosse, afinal, o homem da sua vida. Fanta uva morna no verão, era, afinal de contas, uma tremenda prova de caráter.

terça-feira, 19 de abril de 2011

Rapidinhas do Capita


O Cardoso entrou em casa e anunciou pra Fernanda, sua esposa, e pra Marli, sua sogra:
-Como chefe da família e dono da casa, estou instaurando um novo sistema, aqui. A partir de agora, nós vamos operar como uma empresa de telefonia.
As duas não entenderam.
-Tu vai abrir uma empresa de telefonia? - Perguntou Fernanda.
-Não, não... Não foi isso que eu disse. Disse que iríamos operar como uma empresa de telefonia. No mesmo modelo de uma empresa de telefonia.
-Como assim? - Quis saber Marli.
-É assim, minha amada sogrinha. A partir de agora, nós três teremos planos de minutos. Nós ganharemos minutos de acordo com nosso tempo de serviço. Cada hora trabalhada equivalerá a um minuto. Por exemplo: Eu trabalho oito horas por dia, cinco dias por semana, isso me garantirá, inicialmente, cento e sessenta minutos mensais. Atividades que eu realize por fora, como por exemplo, preparar o almoço aos domingos, lavar a louça, levar o cachorro pra passear, etcetera, etcetera... Valem dobrado. No caso, uma hora preparando o almoço? Dois minutos mais. Uma hora passeando com o cachorro, dois minutos mais, e assim por diante.
-Mas como assim, Cardoso, tu vai controlar o telefone aqui de casa agora? - Quis saber a Fernanda, ainda intrigada.
-Não, meu amorzinho, não, tu sabe que eu mal uso o telefone! Eu me refiro a minutos de conversa entre nós.
-Como assim, entre nós? - Perguntou Marli, de olhos arregalados.
-Isso mesmo, sogrinha. Nós teremos um limite para falar entre nós. Poderemos conversar apenas se tivermos minutos disponíveis.
A Fernanda riu:
-Tá de brincadeira?
-Não, meu amor, não estou. É sério.
-Tu tá me proibindo de falar com a minha mãe? - Inquiriu Fernanda com uma sombrancelha erguida.
-Claro que não, meu amor, claro que não. Entre tu e ela, é como se fosse de Net fone pra Net fone. Vocês têm uma conexão que vem de berço, e eu não me atreveria a cortá-la. Entre vocês tá liberado.
-E digamos - Conjecturou Marli. - Que se fale além dos minutos permitidos?
-Aí, minha querida sogra, terá que se pagar por fora.
-Como assim? Tu vai querer dinheiro pra me deixar falar?
-Não, minha ingênua dona Marli. Através de privilégios, claro.
-Privilégios?
-Sim. A senhora quer usar o fogão pra fazer aquele delicioso souflé de chuchu? Uma hora de gás? Troque por um minuto de conversa. A senhora quer ver novela? Um minuto de conversa em troca de um capítulo. A senhora quer ler O Livro dos Espíritos antes de pegar no sono? Um minutinho de conversa em troca de uma hora de luz elétrica.
-Isso é um absurdo! - Exclamou dona Marli.
-Não é necessário se escandalizar, basta sair da minha área de cobertura, eu não sou um ditador. Podem ir conversar em qualquer lugar onde eu não ouça. A operação entra em vigor á meia noite de hoje.
E foi o Cardoso tomar banho. Quando se vestia no quarto a Fernanda entrou:
-A mãe disse que vai embora amanhã. Que talvez dois meses de visita fossem demais, mesmo.
-Mas já?
-Vai se lascar, Cardoso.
-Ó o tempo...

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-Não dá pra parar de pensar nela... É estranho. Eu penso nela quando acordo, antes de dormir, no trabalho, enquanto leio... O tempo todo, ás vezes, parece até que é demais, sabe?
-Sei...
-Mas ainda assim, é maneiríssimo.
-Tenho certeza.
-Mas eu fico meio assim... Eu não sei se vai dar certo. Entende?
-Por quê?
-Por minha causa. Eu tenho uma tendência destrutiva muito forte. Eu me afasto das pessoas e tenho tendência a criar perímetros ao meu redor pra garantir que, mesmo perto, elas não encostem, sabe como é?
-Não.
-Bom, é uma maneira figurativa de dizer que eu nunca me abro inteiramente.
-Ah...
-E por esse tipo de coisa, eu sei lá... Acho que ela pode acabar se cansando, entende? Eu não consigo me expressar direito, nem sei se tenho coragem, nem vontade de conseguir...
-Pra manter alguma distância?
-Sim.
-E por que isso?
-Não sei... Eu acho que, de alguma forma, eu nunca me sinto bom o suficiente pra uma relação. Eu queria ser mais, ser melhor, ser, olha a marmota... Perfeito, entende?
-Ninguém é perfeito.
-...
-Tu sabe disso, não é?
-Em teoria, sim, mas...
-O quê?
-Ela é. Até a raíz dos cabelos.

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-Bom dia, turma, eu sou o professor Vantuirson, e vou trabalhar com vocês a disciplina de química. Eu sei que muitos de vocês não gostam de química. Sei que alguns de vocês gostam de exatas e acham que química envolve muita experimentação, sei que outros de vocês gostam de humanas e acham que química exige muito cálculo, e sei que outros odeiam química por que o Renato Russo odiava. A gente já vai falar sobre isso, mas antes, pra eu conhecer vocês, vou fazer a chamada. Antônio?
-Aqui.
-Ana Paula?
-Presente.
-Beatriz?
-Presente.
-Corine?
-Presente.
Diego?
-Eu!
-Fernanda?
-Aqui.
-Gustavo?
-Presente.
-Heitor?
-Não veio.
-Jorge.
-Eu.
-Laís?
-Aqui.
-Maicon.
-Tô qui.
-Nair.
-Aqui, sôr.
-Paula?
-Presente.
-Rafaela?
-Matou aula pra ir no cinema!
-Rodrigo?
-Dá-lhe, Inter!
-Te controla, colorado. Sandra?
-Ela faltou, tá com cachumba.
-OK, obrigado. Tatiana?
-Presente.
-Thiago Albano?
-Presente.
-Uélington.
-Aqui.
-Vanessa?
-Aqui, psôr.
-Van... Vantuirson?
-Arram... Tu não tá sozinho no mundo.

Não importa a situação, é sempre bom ouvir isso.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

(i)-Racional


A Mariúza entrou em casa feito um furacão. Bateu a porta da rua, jogou a bolsa no chão e andou batendo os delicados pés trinta e cinco no assoalho do apartamento. Parou com as mãos miúdas postadas desafiadoramente nos quadris arredondados, e soprou um fio de cabelo negro que se desprendera de seu rabo de cavalo caindo-lhe diante do olhos castanho. Estava diante da poltrona onde sentava Roberson, que olhava algum programa na TV e levou uma fração de segundo pra dizer "Oi, amor.", e mais outra para, de fato, olhar para Mariúza e perceber nela a cara de poucos amigos.
-Que foi, bem?
-Não me vem com "bem", não, Roberson de Souza Gomes. Não vem com "bem", não. Não depois do que tu fez?
Roberson olhou pros lados e então olhou de novo pra Mariúza:
-Quê?
-Quem é ela?
-"Ela" quem, meu amor?
-Rá, rá, rá.. "'ela' quem?", tu me pergunta... A tua amante, Roberson, a tua amante!!
-Quê?!
-É! Eu descobri! Tu pensou que podia esconder isso de mim, mas não! Eu descobri! Eu descobri, safado!
-Descobriu o quê, criatura? Eu não tenho nenhuma amante!
-Não tem amante? Não - Ela jogou um jornal nele. -tem -Ela jogou uma revista nele. - amante? - Ela jogou o porta revistas nele.
-Não! Não tenho! - Gritou Roberson se protegendo e esquivando dos improváveis projéteis.
-Não te faz de desentendido, não. Não pra cima de mim. Seja homem, admita o que tu andou fazendo, vai? Tenha hombridade uma vez na vida.
-Mas, meu amor, eu não sei do que tu t-
-Para, Roberson! Todo mundo já sabe! Ficaram me falando e eu, boba, não quis acreditar. Minha mãe bem que me avisou, tava sempre falando: "Não confia nesse Roberson, homem com furo no queixo não vale nada", mas eu não quis ouvir...
-Mas eu não tenho furo no queixo, mulher de Deus!
-Detalhes, detalhes! Tu acha que vai se safar com uma tecnicalidade, Roberson? Tu acha que não ter o furo no queixo, ou ter um furo metafísico no queixo vai te livrar de assumir a responsabilidade por aquelazinha? Acha?
-Mas que zinha! Mariúza? Que zinha? Eu não tenho amante! Eu nem flerto! Tu sabe que eu sou um desastre nisso!
-Sempre tem uma idiota que nem au pra cair na tua lábia!
-Que lábia, criatura? Eu nem falo!
-É, fica te fazendo de misterioso pra atrair as incautas! Miserável! - Ela jogou um livro nele.
-Peraí! Esse é o Guia do Mochileiro!
-Que se dane! Pegas as tuas coisas e some daqui! Pega teu Guia do Mochileiro da Galáxia, teu Senhor dos Anéis, e te some, vai lá ficar com aquela escrotinha de cabelo verde que é o que tu merece, tomara que ela não consiga fazer a cirurgia pra tirar aquele bico!
-Quê? Cabelo verde? Bico? Do que tu tá falando, Mariúza?
-A mulher que tava contigo naquela cafeteria onde se fazia download da comida via internet, ela tinha o cabelo tingido de verde e um bico de pato ao invés da boca, e tu ia dar dinheiro pra ela... Fazer... A plástica...
-...Tu sonhou isso?
-... NÃO! ... Bom... Pode ser. Talvez...
Ela deixou os braços caírem. Não era a primeira vez que aquilo acontecia. Roberson se levantou rindo e a abraçou.
-Que bobagem, meu amor. Vem cá.
A enlaçou com força, junto ao peito, ela correspondeu.
-Tá tudo bem. - Ele disse.
Ela suspirou e o abraçou de volta, mais tarde vasculharia o perfil dele no facebook procurando por gente de cabelo verde e bico de pato. Vai que fosse, sei lá, um presságio, né?

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Aquilo que cativas...



Chovia em Porto Alegre, mas não estava frio. Era de manhã bem cedo. O Everton e o Acássio estavam sentados juntos na sacada da casa do Acássio conversando e vendo as lâmpadas de mercúrio iluminar de amarelo as poças d'água naquela manhã escura.
-Eu não vou dizer. - Falou o Everton.
-Tu que sabe. - Respondeu o Acássio ainda olhando pra luz que emanava dos postes.
-Não vou. Não vou, mesmo.
-Tá bem.
-É ridículo. Mesmo na minha situação é... É...
-Ridículo? - Arriscou Acássio.
-É!
-Tá bom.
-Eu não sou misse, nem nada pra citar Saint-Exupéry...
-Nunca entendi essa alusão às misses...
-Bom, te garanto que não é elogiosa.
-OK. - Concordou Acássio, sem muita certeza.
-Se fosse pra citar Nietzsche. Nietzsche, sim. Nietzsche é a minha cara. Niilismo de modo geral, cínico, descrente... Cioran, talvez, Sartre, Camus...
-Quem são esse Nite e esse Siorrã? - Perguntou Acássio, confuso.
-Pesquisa no Google.
-Bom, de qualquer modo, é tu que sabe.
-É isso aí. Sou eu que sei. Era só questão de tempo, eu acho...
-Pode ser. - Assentiu Acássio, vago.
-Não posso ficar pensando nisso.
-É... - Suspirou Acássio.
-Tenho que partir pra outra.
-Arram. - Bocejou Acássio.
-Esquecer de tudo.
-..."das dores do mundo" ... - Cantarolou Acássio.
-Meu Deus do Céus, qual é o problema com as tuas referências, criatura?
-Desculpa, desculpa.
-...Enfim...
-Enfim.
-Eu vou indo. O monólogo tá muito interessante, mas eu tenho que trabalhar e tô caindo de sono.
-Bom trabalho, parceiro.
Ewerton levantou, colocou a mochila nas costas.
-Mas ele tinha razão, sabe? O Saint-Exupéry...
-Tinha? - Perguntou Acássio, surpreso.
-Sim... A gente é eternamente responsável. - Confirmou Ewerton. - Mas se tu contar pra alguém que eu disse isso eu racho a tua cabeça.
E saiu de mochila nas costas, deixando atrás de si um Acássio esperançoso pelo amigo.

Coalhada


Chico Anysio, em seu programa de TV da Globo, da década de oitenta, interpretava um jogador de futebol meia-boca chamado Coalhada. A caracterização do Chico contava com um bigode, olhos vesgos, e uma enorme peruca de cabelo encaracolado. Leomir tinha o cabelo todo encaracolado. Encaracolado, mesmo. Como a peruca que o Chico Anysio usava para interpretar o Coalhada em idos dos anos oitenta. Ele não se importava. Leomir não era particularmente preocupado com aparência, o que era bom, já que Leomir não era particularmente bonito. Tinha uma personalidade razoável, era suficientemente bem-informado, e estava satisfeito em ser o que era. Quanto ao cabelo, Leomir não ligava de ter o cabelo do Coalhada. Geralmente seu cabelo estava curto demais pra alguém perceber que era tão enrolado quanto era, se estava mais comprido, geralmente estava contido por uma tiara, faixa, por gel, ou creme para pentear. Nenhum arroubo de vaidade, apenas praticidade interessava ao Leomir.
Em casa ele estava sempre de cabelos soltos, bastante à vontade com sua peruca do Coalhada.
Leomir não era dado ao que considerava frescuras, então, deixava o cabelo ficar como secasse depois de tomar banho sem se preocupar com nada.
Naquele dia, porém, após comer alguma coisa, sem se sentir muito bem, foi ao banheiro escovar os dentes, e viu um cacho solitário, bem definido, que se separou dos demais e ficou pendurado em sua testa, pairando sobre sua sombrancelha esquerda. Leomir, a princípio não ligou. Escovou os dentes enquanto ouvia o noticiário que passava na TV. Mas após cuspir o excesso de espuma na boca, e escovar a língua e a parte de dentro das bochechas, percebeu que aquele cacho continuava ali. Pendurado. Pensou se não era hora de cortar o cabelo. Mas então... teve um insight. Odiava a palavra insight, mas foi o que teve. Imaginou ela, do seu lado, tirando aquele cacho de sua testa, o empurrando de volta para o meio de todos os outros, e acariciando seu cabelo, e rindo quando seus dedos finos se prendessem em meio aos cachos emaranhados.
Mas ela não estava ali. E pela primeira vez, em muito tempo, ele temeu que ela não fosse estar nunca.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

Á prova


Abelardo e Heloísa, como seus homônimos históricos, se amavam. Eram loucos um pelo outro, estavam sempre juntos, e amavam passar tempo juntos. Fazia sentido, entende? Quem os olhava dizia "esses dois vão acabar se casando...", e dava mesmo, essa impressão. Não apenas de que se casariam, mas de que seriam muito felizes enquanto vivessem, tamanha era a compreenssão que havia entre os dois, e a seriedade e o respeito com que se tratavam.
Até que uma vez, o Abelardo e a Heloísa, passeando pelo shopping, entraram em uma loja de instrumentos musicais. Nenhum dos dois tocava nada, mas entraram apenas pelo prazer de olhar. Lá dentro, encontraram um sujeito imenso, de cabelos compridos e pintados de preto, vestido com um sobretudo de couro, á despeito do calor, usando coturnos, camiseta preta rasgada, e pulseiras com rebites e um crucifixo de ponta-cabeça pendurado no pescoço. Mais espantoso do que ver essa criatura esquisita, foi Abelardo ver que Heloísa o conhecia, e cumprimentá-lo com um caloroso abraço.
-Abelardo, esse é o Goatil Tormenthl.
-Quem?
-Pode me chamar de Ulisses - O grandalhão disse com voz cavernosa e sombria.
Conversaram animadamente o Ulisses Goatil Tormenthl e a Heloísa. Abelardo descobriu que o sujeito tinha uma banda, e acabaram convidados a um show que aconteceria em uma casa abandonada perto do Hospital Divina Providência. Por insistência da Heloísa, foram.
Abelardo não gostou do programa. Estava de calça jeans, tênis e camiseta braca, parecia um farol em meio aos demais presentes, todos vestidos de preto com detalhes em cinza, e ás vezes vermelho-sangue. Estranhara quando Heloísa, toda de preto em frente à sua casa lhe perguntara se ele queria trocar de roupa, mas ele dissera que se sentia bem como estava.
A tal da banda se chamava Tormented Children of Baal, e quando subiram ao palco com os rostos pintados de branco e preto, parecendo defuntos, Abelardo foi o único a rir. Parou de rir quando eles começaram a tocar, pois Abelardo achou que eles estivessem tentando quebrar os instrumentos. Só ficou mais chocado ao ouvir a voz do Ulisses Goatil Tormenthl no microfone, ele parecia querer tirar alguma coisa imensa da garganta, e não dava pra entender nem uma palavra do que a letra da canção dizia.
-Isso é o dialeto Orc de O Senhor dos Anéis? - Perguntou à Heloísa, que dançava assustadoramente se sacudindo inteira.
-Não! É Alemão! - Gritou um rapaz gordo de cabeça raspada e cavanhaque cumprido que se balançava feito um epilético longo à sua esquerda.
Abelardo duvidou que fosse Alemão, mas não quis criar celeuma. Após o show, que foi muito, mas muito, mais muito mais longo que Abelardo achou que seria, Ulisses Goatil Tormenthl, todo suado, foi pessoalmente até o casal lhes presentear com um CD da banda. A capa mostrava o que parecia ser uma mulher nua coberta apenas por um crânio que lhe servia de colar, com os pulsos cortados e a poça de sangue que lhe escorria das mãos formando a cabeça de um bode mais ou menos do mesmo formato do pentagrama invertido que emoldurava o desenho, todo feito em tons de preto, branco, cinza e vermelho.
-Pô, que pra cima... - Comentou Abelardo, rindo casualmente, sob os olhos semi-cerrados e ainda pintados de Ulisses Goatil Tormenthl.
Foram tomar uma cerveja com o vocalista, Heloísa e ele comentavam sobre as influências da banda dizendo trocentos nomes que ele nem sabia e nem tinha certeza se queria saber pronunciar.
Lá pelas tantas, alguém falou alguma coisa sobre a mãe ter reclamado das caveiras, e Ulisses, com pose de magistrado, disse que as caveiras eram um símbolo de igualdade, pois por serem todas iguais, não havia espaço para preconceito entre os metaleiros.
Abelardo, rindo bastante enquanto tomava sua água com gás, perguntou por que eles não admitiam que escolheram caveiras por que caveiras eram maneiras. E completou:
-Eu adorava caveira quando era pequeno e não tinha essa punheta toda de "igualdade", que discurso mais bobo, Ulisses, francamente. Caveira é legal, vocês acham legal e deu...
Abelardo nunca soube ao certo se fora o fato de ele ter diminuido, ou ridicularizado o discurso pró-caveira do Ulisses, ou se foi por tê-lo chamado de "Ulisses" e não de "Goatel Tormenseiláoquê", que desencadeou a confusão. Ele sabia é que tinha quebrado uma garrafa na cabeça do cara depois de ser pêgo pelo colarinho, e que só conseguiu sair ileso do tumultuo por que Heloísa era estranhamente bem relacionada no meio daquele povo todo.
Só mais tarde Abelardo descobriu que Heloísa fora namorada do Ulisses, e que chegara a andar fantasiada de vampiro e até atendera pelo nome de Nokturth Heloísaahl, mas não se importou.
O namoro só terminou quando Abelardo foi incapaz de segurar um violento acesso de riso ao ver uma foto de Heloísa vestindo um corpete vermelho sangue fechado com cadeados e correntes sobre uma blusa preta rasgada, calças de vinil preto e coturnos até os joelhos, segurando um cetro com um crânio e um morcego, com o rosto repleto de pó de arroz, lábios e olhos pintados de preto, e mechas brancas no cabelo.
Não adiantava, por mais compreenssivo que o Abelardo fosse, não havia romance que suportasse determinados testes.

Comunicação (Ou a falta dela)


O Antenor e a Dorotéia estavam naquela fase do casamento em que, surpresa, era se ele segurasse a porta pra ela entrar no restaurante. Surpresa, era se ela não estivesse usando calça de moletom cinza com elástico nos tornozelos quando ele chegasse do trabalho. Surpresa, era se ele dissesse "Oi, meu amor! Tudo bem?", e não "Tem cerveja? Bota no 39 pra mim?" quando entrasse em casa. Surpresa era se ela lhe desse um beijo de boa-noite, ao invés de cair na cama já roncando apesar do dilatador nasal.
A certa altura, esse distanciamente era esperado, até normal, os filhos, em plena criação, demandavam muito da atenção do casal, restando menos para eles dividirem um com o outro.
O problema é que Antenor e Dorotéia já tinham os filhos criados, o Matheus e a Sônia, o guri, mais novo, havia ido fazer um embiei (Não entrava na cabeça da Dorotéia que era "MBA" em inglês) no Canadá, se apaixonou por uma americana e já discutiam a possibilidade de juntar o trapos e viverem lá, e a Sônia passara em um concurso da Petrobrás e fora morar na Bahia, onde Antenor avisou que jamais colocaria os pés, de modo que ou ela vinha visitar os pais nas férias, ou dava um computador com banda bem larga pra ele falar com ela por MSN, ou então só o veria por fotos. E, mesmo assim, depois de terem os filhos criados e encaminhados, eles continuaram afastados, como se tivessem desaprendido alguma coisa.
Isso entristecia a Dorotéia, que lembrava do Antenor garotão, um poço de presença de espírito, irônico, meio sarcástico acabando com a vida dos professores do colégio onde haviam estudado juntos com suas observações perspicazes á respeito da matéria ensinada. Ela achava o máximo. Achava o máximo, também ele não ser um desses CDFs que usam a personalidade e a inteligência pra se defenderem do mundo, não... Antenor era atlético, jogava futebol, corria, fazia parte do time de marcha-atlética do secundário. Ela ainda lembrava de quando se beijaram pela primeira vez, ele, a segurando pelo pescoço na parada do ônibus, fingindo esganá-la em alguma brincadeira boba, de repente perguntou, "tá machucando?", e, ao ouvir que não, colou seus lábios nos dela, e perguntou "E agora?", e ao ouvir nova negativa, a beijou de verdade. De língua e tudo, imagine, logo de cara assim... Naquele momento ela soube, sempre iria querer aquele sujeito audacioso ao seu lado.
Dorotéia suspirava e se perguntava onde fora parar aquele Antenor.
Com Antenor não era muito diferente. Ele lembrava da Dorotéia. Que chamava mais atenção que qualquer outra das meninas do colégio sem apelar pra aqueles macetes idiotas que todas as outras usavam. Jamais vira Dorotéia fazer nenhum movimento vulgar, jamais a vira agir feito idiota, nem leiloando sua atenção como tantas outras faziam. Oh, não. Dorotéia era senhora de si. Ela, com seus cabelos castanhos bem lisos, com seu batom claro, com sua sobriedade, era dona de todas as salas onde entrava. Os guris não tinham olhos pra nenhuma outra, eram incapazes de tira os olhos dela na aula de educação-física, quando ela, com seu sorriso de comercial, suas calças legging e polainas de lã hipnotizava a todos com suas formas ágeis. Ele, ainda hoje não sabia duas coisas. De onde ele arrancara coragem para beijá-la naquela vez, na parada de ônibus, e o que ela vira nele.
E assim, os dois seguiam, tão próximos uma vez, tão distantes agora.
Até que Dorotéia resolveu que precisava fazer alguma coisa. Tentar reavivar aquele sentimento que existira entre os dois.
Ela resolveu fazer, em segredo, aulas de pole dance. Achou que, como ainda era uma mulher ágil e esguia, poderia dar-se ao luxo de fazer um agrado ao marido, mexer com suas fantasias sem parecer uma salcicha bock de lingerie. E poderia, era bonita, ainda mantinha muito da estampa dos tempos de colégio á despeito dos mais de trinta anos que haviam se passado.
Dorotéia foi religiosamente às aulas de pole dance, treinando inclusive em casa, durante a faxina, alguns movimentos pélvicos que pareciam mais desafiadores. Pintou o cabelo de um louro cinza que lhe caiu muito bem, tentava caprichar um pouco mais na roupa, evitando as calças de moletom com elástico no tornozelo, por exemplo.
Acabou que, Dorotéia, tão concentrada que estava na própria repaginação (ela odiava essa palavra, mas enfim...), acabou percebendo quase de sopetão, que Antenor também estava meio diferente.
Chegava atrasado do serviço duas, três vezes por semana. De repente, aos sábados, arrumou um futebol com "a velha turma", que convenientemente lhe tomava a tarde inteira. Perdeu peso, comprou camisas novas que fugiam do padrão branco com listras, e até perfume andava passando.
Se Dorotéia estava desconfiada, acabou engolindo as próprias incertezas para se dedicar ao seu plano. Estava quase dominando a arte do pole dance, era apenas questão de não ficar procurando pêlo em ovo e se concentrar no que fazia. Traria o velho Antenor de volta.
Após mais de dois meses de preparo, Dorotéia finalmente tinha tudo pronto. Pediria o poste portátil da professora emprestado, oferecera-se para alugá-lo, mas a instrutora, admirada com a dedicação de Dorotéia falou que o seu poste portátil precisava vê-la dançar pro Antenor, já que ela própria não poderia.
Dorotéia comprou uma lingerie sensual, sapatos de salto alto combinando, e uma lâmpada vermelha pra colocar no abajour na hora do show, fez depilação com cera em um instituto de beleza, e não em casa com Vit como fazia sempre. Cortou o cabelo, comprou uma maquiagem bonita, após experimentar trinta outras, e apenas então deu-se por satisfeita.
Com tudo pronto, chegou à conclusão de que o ideal seria fazer seu pequeno espetáculo pro Antenor na sexta-feira, pois tinha esperança de passar uma boa parte da noite em claro.
Sexta pela manhã, entrou no banheiro para perguntar ao marido se ele chegaria cedo. Pensou em sugerir, com fingido desinteresse, que ele comesse bastante carne vermelha naquele dia para que não houvesse necessidade de nenhum aditivo químico à performance dele. Mas aí, o choque. Antenor estava de pé na frente do espelho do banheiro, cortando os pêlos do nariz com uma tesourinha mínima, daquelas próprias para isso.
Ela o olhou sem palavras por um momento, até que ele perguntou:
-Que foi, nêga?
Dorotéia levou uma fração de segundo de boca aberta para finalmente articular:
-Tu vai chegar cedo em casa, hoje?
-Não, não... Tenho reunião. Vou chegar lá pelas nove, nove e pouco. Por quê?
-Nada, não...
Dorotéia saiu enfurecida em direção ao quarto. O calhorda do Antenor certamente tinha uma amante. Era óbvio. Ele jamais ligara para os pêlos do nariz. Mesmo com ela chamando sempre a sua atenção. Agora os caçava metódicamente, um por um, com tesoura especial, embaixo da lâmpada do espelho do banheiro. Era bem feito pra ela. Que se dera ao trabalho de pensar em reavivar alguma coisa com aquele pulha sujo. Ela estava velha, e acabada, ele não iria querer nada com ela. Tinha a trocado por duas de vinte, via uma na segunda e na quarta, e a outra na quinta e no sábado.
Não respondeu quando Antenor lhe deu tchau ao sair de casa. Á tarde jogou no lixo a lingerie sensual. Guardou os sapatos por que tinham sido caros, e a maquiagem por que tinha gostado muito. Na segunda devolveria o poste portátil à professora. O guardaria em algum lugar onde Antenor jamais ia, à área de serviço, por exemplo, lá ele passaria despercebido. Depois de chorar muito a tarde inteira, resolveu se ocupar, e fez uma faxina de proporções épicas na casa.
Á noite, quando Antenor chegou dando um sonoro "Alô.", Dorotéia mal respondeu. Estava de calças de abrigo com elástico no tornozelo, fazendo faxina na cozinha.
-Nêga, o que tu quer fazendo faxina à essa hora?
-Foi quando deu. Não pisa aí com os pés sujos da rua que eu recém limpei.
-Não quer tomar um banho, se arrumar e sair pra desopilar um pouco?
-Não. Tô cansada. Vou terminar aqui, tomar banho e dormir.
-OK. - Aquiesceu Antenor.
Ele saiu da cozinha, foi até o corredor do pédio, abriu a lixeira na escada e jogou fora os ingressos pro cinema que tinha comprado, e também as flores. Se encostou na parede com as mãos nos bolsos da calça se perguntando se Dorotéia teria um amante. Ele, a princípio, achou que ela pudesse andar se exercitando, cuidando da aparência e tudo mais por sua causa. Até começou, em segredo, á frequentar a academia, três vezes por semana, encontrou alguns amigos de antigamente que ainda jogavam futebol em um parque do Centro aos sábados, e começou a jogar com eles, também. Resolveu se cuidar pra não parecer pai de sua esposa, tão linda, que rejuvenescera dez anos de cabelo cortado e pintado. Hoje, dera-se até ao trabalho de aparar os pêlos do nariz, como ela sempre pedia, pra não pagar mico no jantar que teria com ela depois do cinema. E agora essa... Ela limpando a casa de noite, cansada... Onde teria passado a tarde?
Dormiram sem falar no assunto, e estão infelizes até hoje...

terça-feira, 12 de abril de 2011

Pensando em ti


Ele se aproximou sorrindo de maneira tímida. Ela era tão linda. Ele era tão nhé. Mas ainda assim, ele acreditava, achava que dava. Talvez ela sofresse um uma miopia bem grave e não visse o quanto era melhor, mais bonita, mais descolada, mais tudo que ele. Então se aproximou sorrindo. E disse:
-Andei pensando em ti.
Ela sorriu de volta, tinha um sorriso tão lindo.
-É, mesmo?
-É. - Ele confirmou, ainda tímido.
Ela continuou sorrindo sem dizer nada, ia retomar seus afazeres, mas ele continuou:
-Também parei pensando em ti.
Ela ergueu os olhos e o encarou. Ele já não sorria mais.
-E eu me deitei pensando em ti, e me levantei pensando em ti. Hoje, no almoço, eu pensei na mesma coisa em que havia pensado ontem, na janta: Em ti. Eu pensei em ti enquanto me vestia antes de sair, e enquanto escolhia maçãs no mercado, ontem. Eu pensei em ti quando apanhei o jornal na banca, e na hora em que entrei na padaria e peguei minha água. Eu não pensei em ti o dia todo, não. Não vou mentir. Houveram momentos em que não pensei em ti, mas não lembro bem quais foram, agora. Acho que não pensei muito nesses momentos. Enfim, era isso. Eu pensei em ti.
Ela sorria.
-Também pensei em ti. - Disse candidamente.
-Não tanto. - Ele falou, firme.
-Não tanto. - Ela confirmou.
-Mas um pouco? - Ele sugeriu.
-É... - Ela confirmou vaga.
-Um pouco assim? - Ele perguntou mostrando a mão com o dedo indicador e o polegar afastados uns cinco centímetros.
-Assim. -Ela corrigiu, afastando mais os dedos dele, até o limite da articulação.
-É um começo. - ele disse sem conseguir conter o sorriso que se alargava em seu rosto barbado.
Foram felizes pra sempre.

segunda-feira, 11 de abril de 2011

O fim está próximo


Estava parado em uma esquina qualquer depois do trabalho. Era um desses dias de começo de outono, em que, apesar de estar calor, há um certo prazer em andar ou quarar no sol apenas para otimizar a potência da sombra próxima. Era o que eu havia feito. Caminhei no olho do sol, sem buscar abrigo na sombra das marquises que margeavam a rua. Fui sob o sol, antevendo a sombra de uma árvore na próxima quadra.
Cheguei à árvore da esquina, e me detive por alguns minutos enquanto conferia alguma coisa ao telefone. Ao meu lado, também na sombra, havia uma mulher de meia idade. Já tinha, por certo, idade para ter cabelos brancos, mas eles estavam metodicamente tingidos de um castanho acobreado. Ela usava um óculos de sol, desses com as pontas da armação reviradas vagamente pra cima, que era o modelo à qual minha avó costuma se referir como "óculos de gatinha". Ela usava uma blusa preta e uma calça jeans que só estaria apropriada se ela tivesse visto menos outonos. Ela usava sandálias prateadas com pedrinhas brilhosas nas tiras e carregava no colo um cachorro. Não sabia que cachorro era aquele. Não conheço a raça. Tenho aversão a cachorros pequenos, e o dela era pequeno. Pequeno o suficiente pra ser carregado no colo. Mais tarde, pesquisei no Google que cachorro seria aquele, e descobri que era um Lulu da Pomerânia. Fazia sentido. Até o nome era desagradável. O cachorro, tinindo de limpo, com o pelo alvíssimo no colo da mulher, tinha laços nas orelhas, lenço no pescoço, e calçava sapatos.
Sim. O cachorro calçava sapatos.
OK, pessoas são idiotas, eu mesmo tenho um cachorro e tenho ele em mais alta conta do que muitas pessoas que eu conheço, por isso, e também por que não quero acabar como aquelas pessoas com placas de "O Fim Está Próximo" penduradas no peito, tenho tentado relevar as coisas que considero cretinas. Ignorei, pois, a mulher, o cachorro, e os sapatos de ambos. Continuei cuidando da minha vida.
Foi então que se aproximou um homem, era humilde, trajava calças jeans surradas, chinelos, uma camiseta suja de tinta. Ele vinha andando e carregando consigo uma sacola de lona, e, por alguma razão, achou aquele abjeto animal no colo da mulher simpático. Ele ergueu a mão direita e acenou com o indicador para o cão, que, como qualquer cão, fez festa, abanando o rabo e se agitando no colo da dona. O homem, vendo que seu gesto fora bem recebido pelo animal, se aproximou com a intenção de acariciar o pêlo aparentemente macio do bicho.
Foi então que a mulher, em um ato quase automático, se esquivou, tirando o cachorro do caminho da carícia do sujeito, que olhou pra ela espantado e perguntou se o cão mordia.
-Sim - ela disse. - É uma fera.
A expressão no rosto do homem deixou claro que ele não acreditou que o cachorro era feroz. Deixou claro, também, que ele não era bem vindo ao espaço da mulher sequer para acariciar o seu animal de estimação. Ele suspirou, abaixou a cabeça, e disse "Tá bem", enquanto retomava o seu caminho.
A mulher, então, olhou pra ele pelas costas, e franziu o nariz com nojo. E virou-se pra mim, que olhava toda a cena, e fez uma expressão erguendo as sombrancelhas e abaixando os cantos da boca, como quem diz "Veja se eu posso...". Eu fiquei, confesso, sem ação. Aquele arremedo grotesco de pessoa me olhou procurando por apoio à sua ação? Aquela criatura me olhou e viu em mim, um igual? Se foi o que aconteceu, eu devia me sentir bem? Eu pensei em dizer alguma coisa. Juro que me ocorreram torrentes de insultos que quase nunca me passam pela cabeça. Eu pensei em lhe perguntar por que ela negara ao homem e ao cachorro o prazer do contato. Pensei em perguntar se ela achava que o homem, assim como, aparentemente, o chão, podiam causar algum tipo de dano ao seu cachorro. Mas tudo o que consegui fazer, foi fechar a cara o máximo possível, e balançar a cabeça da esquerda pra direita enquanto retomava o meu caminho.
Enquanto caminhava, conjecturei que era exatamente aquele tipo de coisa que me fazia perder qualquer tipo de esperança na raça humana. Não são as grandes tragédias. Não são os grandes massacres, as guerras ou as epidemias. Não são os gigantescos desvios de verba e os escândalos de corrupção de proporções bíblicas. Não. São as pequenas mesquinharias diárias de cada um. As maldades e baixezas mínimas. Aquela pequena gota de malícia e vilania que todos cometem daqui e dali.
É por isso que eu gostava de imaginar que há um fim próximo. É por isso que eu sentia um certo prazer sádico (talvez a minha parcela de malícia e vilania?) em acreditar em um fim de mundo, um armageddon, uma hecatombe da qual não haveria escapatória. É por que eu acho que a humanidade não merece o que tem. O tempo que tem, as oportunidades, o planeta... A humanidade não é digna disso tudo. Mas ultimamente, eu não me sinto mais tão ávido pelo apocalipse.
Acho que a culpa é tua, amor, e do que tu me faz sentir cada vez que eu ouço a tua voz, ou leio um recado teu...

sexta-feira, 8 de abril de 2011

Silêncio


-Schwek! Schwek, schwek, schwek...
-Hmmmm...
-Fnnnnnnnnnnnnnnnnf...
-Ih, ih, ih, ih, ih... Aihn...
-Hmmmm...
-Fsssssss, aihn...
-Hmffff...
-Nhoamf...
-Ai, Darcilene...
-Hmmmmffff...
-Ai, Darcilene...
-Hams...
-Darcilenhmf....
-Nhamf...
-Honnnn...
-Ai, Renato Augusto...
-...
-Ai, Eduardo, Eduardo. Eh, eh, eh, eh... Claro que é Eduardo. "Ai, Eduardo", era isso que eu queria dizer, claro, nem tem como confundir Eduardo com Renato Augusto, néam? Tipo, quem iria fazer uma coisa dessas, néam? Renato Augusto é o nome de um amigo do meu avô, nem sei por que fiquei com isso na cabeça, apareceu de repente, imagine só, logo agora, e me vem o nome de um amigo do meu tio na cabeça. Tio, não! Do meu avô, um nome do meu avô. Não! De um amigo do meu avô...
-...
-Olha, eu...
-... Deixa pra lá. Vamos continuar. Mas em silêncio, tá?
-Tá.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Ponto de Vista



-Ai, Viktor, que coisa mais cretina esse filme que tu me fez ver, hein? Francamente...
A Cristina e o Viktor de SanMartin (pronuncia-se Sanmartã) estavam saindo de uma sessão de Sucker Punch, e ela não estava feliz com o filme. Aliás, longe disso.
Ela tinha detestado, tinha passado o filme todo resmungando, grunhindo, e fazendo "Ah, é..." cada vez que acontecia alguma coisa estapafúrdia na tela. Um problema já que o filme era uma longa sucessão de coisas estapafúrdias.
A verdade é que ele, o Viktor, também não tinha gostado do filme, mas não queria dar o braço a torcer, até porque, encontrara na beleza das protagonistas, na estética do filme, na trilha sonora, e na ação bem coreografada uma muleta pra suportar toda a projeção.
-Não achei ruim, não. - Mentiu, piscando os cílios longos.
-Ah, Viktor, fala sério. Filminho de lutinha, com robozinho, morto-vivo nazista movido à vapor, dragãozinho... E aquelas gurias tudo de roupinha de colegial, maiôzinho? Que que era aquilo? Um desfile fetichista? Só tarado pra gostar de uma porcaria dessas... - Sentenciou Cristina, amarga.
-Esse nem era dos piores. Tinha suas qualidades. Ao contrário dos filmes que tu gosta, que esses sim, são nojentos, e ainda por cima fingem que não são... - Acusou Viktor, tomando a ofensiva de dentro de seu terno negro.
-Do que tu tá falando, criatura? - Perguntou a Cristina, confusa.
-Daqueles filmes de emo, lá, que tu gostas, do Prepúcio... - Ele jogou, ao acaso.
-Mas que prepúcio, Viktor... Ah! Da Saga Crepúsculo? - Ela quis saber.
-É, esse aí, mesmo. Coisa de tarado é aquilo lá. - Acusou ele, com desdém.
-Tu bebeu, é? Tá de brincadeira. Crepúsculo é um filminho de amor bobinho! - Ela justificou.
-Tá louca, cheio de insinuações de desvios de sexualidade... - Ele declarou.
-Da onde, Viktor? É historinha de amor purinha, quase pra criança! - Ela estava alarmada.
-Crepúsculo? - Ele perguntou, cheio de escárnio.
-Sim! - Ela confirmou.
-Não, mesmo. É um troço nojento, um desvirtuador, um lance que... Olha, chega a me dar nojo... - Ele disse, virando pro lado.
-Ah, tu tá de palhaçada, não tem argumento e só quer me dar o contra por que eu saquei que tu veio ver essa bobagem hoje só pra ver as gurias de saia plissada e meia cinco oitavos... - Ela respondeu.
-Ah, é? Tu acha que foi isso? Existe um lance chamado internet, sabe? Se eu quisesse saciar algum fetiche meu, eu iria até o computador, onde, aliás, podia ter só duas teclas, "música" e "pornografia". Eu não nego as minhas necessidades, ao contrário de ti, que fica vendo as pornografias mais ultrajantes fantasiadinhas de história de amor. - Ele acusou, amargurado.
-Ah, te larguei Viktor, tu só quer incomodar, nem sabe o que tá falando. - Ela disse, dando de ombros.
-Arram. Premissa: Moça virgem do interior chega à puberdade e encontra conflito entre aderir à necrofilia ou a zooerastia. Parece familiar? - Sussurrou Viktor ao pé do ouvido de Cristina.
-Mas do que é que tu tá... Ah... - Ela parou.
-Ah, pois é.

Viktor de SanMartin, o calhorda, sempre tinha um argumento.

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Resenha Cinema: Sucker Punch - Mundo Surreal


Um radialista catarinense que trabalha em uma emissora aqui de Porto Alegre costuma imitar o jornalista e apresentador Marcelo Rezende. A imitação é muito engraçada, e o bordão que ele usa é "Quem aqui, né, amigo?", sempre que quer justificar alguma barbaridade.
Ontem, meus amigos me perguntaram se eu queria assistir Sucker Punch, novo filme do diretor Zach Snyder, dos incensados Madrugada dos Mortos, e 300, do bom Watchmen (Que é bom, mas não encosta no quadrinho.), e do vindouro Superman - The Man of Steel.
Os pôsteres já mostravam a algum tempo que o filme seria estrelado por beldades que passariam o longa todo vestidas de colegiais, soldadinhas, dançarinas e outros fetiches masculinos, e que enfrentariam robôs samurais, nazistas zumbis e dragões. Ante essa premissa, fui obrigado a responder o convite com um "Quem aqui, né amigo?".
E lá fomos nós ver o filme, que, pelo menos em termos de ação e movimento, prometia.
Bem, por mais doloroso que seja dizer isso de um filme estrelado por beldades vestidas de fetichistas e que enfrentariam robôs gigantes, zumbis e dragões... Que filme chato.
O Snyder pode vir a se tornar o John Woo de sua geração, mas ainda não vai ser com Sucker Punch. Aliás, por melhor intencionado que o senhor Snyder seja, é importante lembrar que, no seu cartel, ele tem dois filmes baseados em quadrinhos escritos por papas do gênero e que ele só estragava se fosse o pai dos burros, e um filme de zumbis que, vamos combinar, é fácil de acertar quando se segue a cartilha de George Romero. Aí, na primeira vez em que vai dirigir um projeto original, ele larga Sucker Punch nas salas de cinema.
Bom, ao filme:
Na trama acompanhamos Baby-Doll (Emily Browning), uma jovem que, após a morte da mãe é internada em uma instituição para doentes mentais pelo seu padrasto abusivo. Lá, o velhaco, em nome da herança da jovem, suborna um enfermeiro inescrupuloso (Oscar Isaac) para executar uma lobotomia na jovem. É então que, de modo a lidar com os problemas na institucionalização, ela cria um mundo dentro de sua mente, onde orientada por um sábio misterioso, descobre que precisa de cinco ferramentas para alcançar sua liberdade com a ajuda de suas companheiras Rocket (Jena Malone), Sweet Pea (Abbie Cornish), Blondie (Vanessa Hudgens), e Amber (Jamie Chung).
Cada um dos itens de quê o grupo precisa para fugir (um mapa, fogo, uma faca, uma chave e um item por ser descoberto) é obtido em uma realidade paralela, como se fosse uma missão ao estilo videogame. Um breve briefing do sábio misterioso (Scott Glenn) no começo, e uma sequência de ação de tirar o fôlego no desfecho!
... Nem tanto.
As sequências de açao são bacanas, sim. Não há como negar. As coreografias, e o esmero da computação gráfica deixam o visual sensacional, mas após a segunda sequência de golpes de espada em slow motion, e da quinta vez em que uma beldade sarada irrompe de uma porta atirando, a gente começa, se não a se cansar, a pensar qual o ponto daquilo tudo. E, em nenhum momento, a coisa chega a lugar algum.
O filme é um mero acessório para as sequências de ação que, a bem da verdade, parecem recicladas de filmes como Kill Bill, O Senhor dos Anéis, Eu Robô e outros. E, como não há no elenco nenhuma performance brilhante (As que mais se aproximam de estar acima da média são a do veterano Scott Glenn e a de Abbie Cornish, linda, lembrando a Nicole Kidman antes de acabar com o próprio rosto fazendo plásticas), o filme se torna menos que descartável assim que a sessão acaba.
De bom fica a estampa das protagonistas, a bela trilha sonora, e a esperança de que, com o roteiro de Chris Nolan e David Goyer, Snyder consiga fazer um Superman capaz de ficar na memória de alguém por mais tempo que a caminhada do cinema até a saída do shopping.

"Jamais assine com a boca um cheque que você não possa sacar com o rabo... Ah, e mais uma coisa: Não acorde a mãe."

terça-feira, 5 de abril de 2011

Sangue nos olhos


-Tem que ter sangue nos olhos! - Gritou o técnico em frente ao time durante a preleção. Após treze anos, o Bugre da Vila Nova alcançara a final da taça Cidade de Porto Alegre, maior torneio de várzea da região metropolitana, e era a oportunidade do Zéfiro, o técnico que esbravejava diante da equipe, se consagrar. Fora ele o capitão e artilheiro do Bugre treze anos antes, quando o time chegara à final e sagrara-se campeão do Citadino, apelido carinhoso do certame entre os boleiros.
Ele ainda era capaz de se lembrar da tensão quando, á beira do campo, dissera essas exatas palavras "Tem que ter sangue nos olhos!" a seus companheiros antes de pisar no gramado do campo do Parcão. Ele ainda se lembrava das pancadas sofridas, do corte fundo da trava da chuteira do beque adversário na sua canela, logo abaixo do joelho. Lembrava-se da sensação de triunfo quando marcou o gol da vitória e lembrava-se com gosto do peso do troféu. Dos tapinhas nas costas. Do churrasco e das cervejas de comemoração, e da festa no Clube Saviola, um prostíbulo dos mais caros, que fora, graças a ele, inteiramente paga pelo seu Saverin, dono do time, e pelo turco Mahmed, dono do armarinho, que prometera bancar a festa pro time se eles vencessem o torneio com o nome da lojinha estampado na barriga e nas costas.
Saiu até foto no Correio do Povo! Um feito. O Zéfiro, beijando a taça com seus colegas comemorando em volta. Ele lembrava de ter se ajeitado, alisado a camisa e endireitado a postura pro nome do armarinho do Mahmed ficar bem visível na foto. Assim o turco não ia ter como negar a noite da rapaziada no Saviola. Claro, o Mahmed, como bom turco que era não quis pagar por tudo integralmente. Então dividiu a despesa do churrasco e da noitada no Saviola com o seu Saverin. Que era judeu. Porvavelmente a única vez em que o conflito árabe/israelense foi dexado pra lá foi quando Zéfiro conversou com o Saverin e o Mahmed ao mesmo tempo. Incrível, provavelmente jamais se vira um turco e um judeu tão em sintonia quanto na hora de negar dinheiro pros jogadores, pensou ele. O Zéfiro, afinal, chegou a conclusão que não sabia como árabes e judeus podiam não se dar bem, já que rezavam por mesmo Deus, o dinheiro.
Enfim, aquilo ficara no passado. Aquele foi o último ano do Zéfiro como jogador. Ele já tinha trinta e sete anos, e a rapaziada que colocavam a jogar contra ele era muito maldosa e ligeira. Não tinham nem ideia de que o Zéfiro chegara a jogar profissionalmente aos vinte anos, no Cruzeirinho de Porto Alegre, e que era cria das categorias de base do Grêmio. Podia ter sido grande, diziam, se não gostasse tanto de, vejam vocês, churrasco, cerveja e noitadas como aquela no Saviola, treze anos antes.
Assim que parou de jogar na várzea, que ainda tinha treinamentos periódicos e jogos toda a semana, o Zéfiro viu a sua vida, que já não andava muito boa, piorar horrores. Ele trabalhava em uma loja de eletrônicos da Alberto Bins, era técnico em eletrônica, e entendia do riscado. Infelizmente, naquela época os video cassetes começaram a ser trocados por DVDs, e o Zéfiro, foi vendo-se escanteado pelos técnicos novos, mais atentos às novas tecnologias. E ele, um dinossauro, foi ficando pra trás. Chegou a pensar em fazer uns cursos de reciclagem, mas a verdade é que, com o que ganhava, e tendo que pagar a pensão pra Isabela, sua ex-mulher, e para Beatriz, sua filha que nunca via, era virtualmente impossível.
Zéfiro fez um acordo e se demitiu. Conseguiu uma quantia razoável como indenização, e a torrou inteira na compra de um carro usado. Sua ideia era usar o carro para trabalhar. Colocaria um anúncio nas páginas amarelas como tecnico em eletrônica que atendia à domicílio.
Infelizmente as coisas não saíram como Zéfiro planejara. Tirando eventuais chamados de velhinhas que não tinham condições de levar suas TVzonas antigas ao técnico, eram poucas as pessoas que ainda procuravam por aquele tipo de serviço na lista telefônica. E os chamados eram raros. O dinheiro começou a escassear, o seguro desemprego se aproximava do fim, e Zéfiro precisava encontrar outra coisa pra fazer. Ele procurou emprego e após alguns meses em que teve que fazer malabarismo pra viver de serviços esporádicos e entrar em um acordo com Isabela, que acabou entendendo que não era má vontade de Zéfiro, apenas má sorte, ele conseguiu um emprego em um frigorífico, carregando aquelas peças enormes de carne crua dos caminhões para dentro dos açougues.
Era um emprego, nas suas próprias palavras, de merda, e pagava um salário, também em suas palavras, de merda. Mas havia a estabilidade em saber que no final de cada mês seus parcos rendimentos o estariam aguardando na conta bancária. Claro, áquela altura a maior parte do seu ordenado ia para Beatriz, que estava em idade escolar e precisava sempre de um sapatinho novo, mais um caderninho, mais um livrinho, mais uma coisinha aqui e ali. Zéfiro não ficava bravo, nem achava-se injustiçado. Como não podia, ou não queria estar presente na vida da filha, achava importante fazer o que pudesse para tornar as coisas menos difíceis pra ela. Não devia ser fácil, ele supunha, ser a filha de um lar desfeito, de modo que ele não gostaria que ela passasse por ainda mais necessidades.
Durante quase três anos Zéfiro seguiu trabalhando no frigorífico, chegou a pensar que ficaria por lá. Mas um surto de febre aftosa acabou por fazer com que o gado brasileiro não fosse bem visto no exterior, o que causou uma queda vertiginosa no faturamento dos criadores, dos donos de matadouros e de frigoríficos, o que acarretou em uma nova demissão de Zéfiro. Dessa vez, unilateral.
Foram outros seis meses de susto, com a ameaça de a corda apertar de vez no pescoço. Mas Zéfiro não desistiu. Fez bicos em uma casa bem mequetrefe de vendas e consertos de eletrônicos usados, não pagava quase nada, não assinava carteira, nem recolhia benefícios, mas dava ao Zéfiro uma mínima sensação de segurança, indo trabalhar todo o dia no mesmo lugar, ou, pelo menos indo diariamente ao mesmo lugar ver se havia serviço. Nem sempre havia, e, sem mais nada pra fazer, Zéfiro ficava por ali, em frente à loja, esperando que, eventualmente, o dono chamasse por seu nome.Zéfiro viu seu dinheiro minguar. Precisou sair do apartamento onde morava, e mudou-se para um quarto de pensão. Como era cada vez mais difícil encontrar um trabalho temporário, e mais ainda um emprego fixo, Zéfiro resolveu apelar. Vendeu o carro que comprara anos antes, e entregou todo o dinheiro à Isabela. Disse-lhe que era para Beatriz. Pediu que Isabela poupasse, pois ele não sabia quando teria mais. Iria sair da capital, tentar procurar por trabalho no interior, onde havia carência de mão de obra em vários setores da indústria. Quem sabe não se estabelecia e mais tarde, convidava a filha para ver sua casa nova em uma cidade diferente, não é?
Quando Isabela lhe perguntou se queria se despedir de Beatriz, negou. Disse que tinha passagem comprada e que não podia se demorar. Pediu que Isabela lhe desse um beijo, a lembrasse de se dedicar aos estudos, e que quando as coisas ficassem difíceis, era pra ela ter sangue nos olhos. Enquanto Isabela, muito séria, insitia para que entrasse e falasse com a filha, Zéfiro foi embora acenando após mentir.
Não estava com passagem comprada, tampouco iria para o interior ou qualquer outra parte. Sabia que a oferta de emprego existia, mas era pra pessoas mais qualificadas que ele. E não se despediu da filha tanto por saber que era um estranho para ela quanto por ter vergonha de sua situação.
Zéfiro passou os meses seguintes trabalhando na loja de usados quando havia trabalho. Pouco depois, a loja fechou. O dono da loja foi tão direito quanto podia com Zéfiro. Deu-lhe a soma de um salário mínimo no dia em que fechou as portas, apesar de Zéfiro não ter sido chamado para consertar nada durante aquela semana inteira, e desejou-lhe sorte.
Zéfiro também desejava sorte. Ao menos melhor sorte do que aquela da qual desfrutava ultimamente.
Mas a sorte de Zéfiro não melhorou. Ele seguiu sendo castigado pelo mundo dia após dia, semana após semana, mês após mês. E aqueles meses viraram anos. Anos difíceis. E Zéfiro só não alcançou o fundo do poço e se tornou um mendigo pois mantinha a certeza de que podia melhorar, quem sabe voltar a ser quem fora um dia. Talvez, até, melhor.
Numa de suas andanças pela cidade a procura de um serviço como os que andava fazendo ultimamente, que incluiam limpar o banheiro de bares, cortar a grama de propiedades com jardim, carregar entulho em residências passando por obras, Zéfiro acabou na porta de uma casa bonita no Bom Fim. A grama estava alta, e Zéfiro tocou a campainha para oferecer seus préstimos em troca de algum dinheiro. Enquanto esperava que atendessem a porta, ajeitou-se o melhor que pôde, enfiando a camisa pra dentro das calças e estapeando a sujeira acumulada nas côxas.
Quando um sujeito de estatura baixa e cabelo enrolado começando a rarear na cabeça surgiu na porta, Zéfiro teve vontade de fugir. Era o seu Saverin. Dono do Bugre da Vila Nova, se ex-time. Zéfiro teve vontade de fugir, mas não fugiu. Estacou ali onde estava, em dúvida se seria ou não reconhecido pelo ex-patrão. Não era mais o sujeito atlético de treze anos antes. Muito pelo contrário. Era pouco mais que um farrapo de pessoa. Porém, seu Saverin o reconheceu. De imediato. Saiu da casa sorrindo, abriu o portão e o abraçou.
"Tu me caiu do céu, Zéfiro!", disse-lhe.
Entraram na casa e conversaram por horas. Zéfiro contou, por alto, suas desventuras, não queria dar a impressão de estar desesperado, mais ouviu que falou.
Seu Saverin, por outro lado, falou muito. Ainda era o dono do Bugre da Vila Nova. Mas o time não estava bem. Zéfiro ouvira pouco além de rumores desde que se desligara do time. Fora tratar da vida. Mas descobriu que o Bugre não andava bem das pernas não era de hoje. Na verdade, desde sua saída, o Bugre despencara ladeira abaixo e em mais de uma oportunidade o seu Saverin flertara com a ideia de fechar o time e parar de investir dinheiro em algo que mal e mal empatava o custo. Se o bugre ainda uncionava não era por mais senão o amor de saverin pelo futebol.
Zéfiro ouviu a tudo atentamente enquanto tomava uma medonha bebida de soja oferecida pelo ex-chefe. Não sabia o que dizer. Fora apaxonado pelo Bugre, se não fosse pela idade, Zéfiro tomaria pra si a camisa nove de seu antigo time e daria o sangue para ver a equipe alcançar novamente as glórias passadas. Explicou isso a Saverin, mas explicou-lhe também que já tinha quase cinquenta anos. E que não tinha mais condição nem físicas de jogar futebol duas vezes por semana por cem reais e mais um cachorro quente com coca-cola por jogo.
Saverin respondeu que entendia perfeitamente. E que nem sequer pensara em Zéfiro para a posição de centroavante. Mas pensara nele para outra posição.
-Técnico, Zéfiro. Tinha um filho de uma puta trabalhando lá, mas eu demiti o calhorda têm uma semana e não achei ninguém pra pôr na função. Fica no lugar dele! Eu te pago! Não é muito, o salário mínimo mais benefícios, como se tu trabalhasse na minha loja, mas pensa, tu ainda vai poder guiar o carro do time pra onde quiser quando não for dia de jogo, e te reerguer. O Burge precisa de tiu, Zéfiro, e tu precisa do Bugre!
Zéfiro ficou de pensar sobre a oferta. Despediu-se de Saverin com um caloroso abraço, e recebeu dele a recomendação de pensar direitinho.
A verdade é que Zéfiro queria muito voltar a fazer algo que gostava tanto. Futebol fora uma parte importante de sua vida, e se Isabela tivesse lhe apoiado em continuar jogando quando Beatriz nasceu, talvez ele e ela e ele pudessem estar em melhor situação, hoje. De qualquer forma, ele não queria colocar as suas mazelas na conta da ex-esposa. Entendia como deve ter sido assustador pra uma moça de vinte anos engravidar de repente sujeito de vinte e quatro anos sem nenhuma perspectiva de futuro.
Zéfiro sabia que podia ter sido um bom jogador de futebol, mas não tinha certeza se podia ser um técnico. Porém, quando chegou ao albergue onde passava as noitese deitou a cabeça no travesseiro de espuma sem fronha, teve certeza de que valia a tentativa.
Na manhã seguinte, foi cedo até a casa do seu Saverin e aceitou o cargo. O próprio dono do time o levou ao campinho usado pra treinamentos em um parque próximo, e o apresentou como novo treinador do Bugre da Vila Nova.
Não foi fácil pra Zéfiro assumir a função. Ele se sentia nervoso, duvidava da própria capacidade, questionava os próprios métodos, apesar de os atletas não o fazerem. Mas ele perseverou. Seguiu fazendo o melhor que sabia, o melhor que podia. No final das contas, era futebol, e de futebol Zéfiro sabia alguma coisa.
Quando era a cometido pela dúvida e pela insegurança, ele pensava em como haviam sido terríveis aqueles últimos anos. E quanta coisa perdera, e no quanto era importante aquela segunda chance pra ele, e, quem sabe, pra poder olhar sua filha sem sentir vergonha.
Funcionou. Zéfiro deu cara de time ao Bugre, novamente. Formatou a equipe para jogar favorecendo os melhores jogadores, e garimpou uma ótima dupla de atacantes em uma pelada de final de semana. O Bugre começou a empilhar vitórias. No intervalo das partidas, Zéfiro chamava os meninas e os orientava, assim que terminava a parte tática da coisa, bradava que podia faltar tudo: Fôlego, habilidade, cabeça, tudo era dispensável, contanto que houvesse sangue nos olhos.
E seus atletas tinham. Depois de suas preleções, cada um dos moleques do time entrava no campo disposto a se matar pela bola como se ela fosse o proverbial prato de comida. O Bugre avançou no novo campeonato que assumira o lugar do antigo Cidade de Porto Alegre, ganhou muitos jogos praticamente a pontapés, é verdade, mas é também verdade que empilhou outras tantas vitórias graças a habilidade e dedicação dos "guris do Zéfiro" como o Bugre passou a ser chamado entre os seguidores do futebol de várzea. Zéfiro sentia-se melhor, mais confiante, quase orgulhoso. Alugou uma casinha, voltou a enviar cheques para Beatriz, sentia-se gente novamente.
E, se a princípio, Zéfiro lamentou o fim do Cidade de Porto Alegre em nome de um roneio batizado com o nome de uma rede de lojas de material esportivo, a verdade é que o certame agora tinha muito mais visibilidade. Tanto, que antes mesmo da final, fotos dele e de vários de seus jogadores já haviam saído em um jornal popular da capital.
Quando da vésperado grande jogo, ele ligou para Isabela. Queria que Beatriz assistisse à partida, a única do torneio disputada em um estádio de verdade. Seria no Força e Luz, e Zéfiro conseguira, com seu Saverin, um ingresso na tribuna de honra que mandou para a filha. Queria saber em que horário poderia buscar a menina. Sua ex atendeu.
-Alô.
-Isa? Oi, é o Zéfiro.
-Oi.
-Tudo bem contigo e com a Isa? posso falar com ela?
-Ela não quer falar contigo.
-Por quê?
-Por que tu não quis falar com ela cinco anos atrás antes de sumir, Zéfiro. Por que tu acha que ia ser?
-Eu tava mal, Isa. Tava fodido. Me deixa... Deixa eu falar com ela. Olha, as coisas tão melhorando pra mim. Eu acho que eu tô melhor agora e-
-E tá pronto pra ser pai? Agora ela não precisa mais. Ela já tá bem criada. A Isa já tá com dezessete anos e encaminhada. E tudo isso sem precisar de ti por perto. Não te preocupa, ano que vem ela entra na faculdade e tu nem precisa mais mandar dinheiro pra ela. Ela não quer.
Zéfiro tentou argumentar, mas Isabela desligou. Ele voltou a ligar, mas ela tirouo fone do gancho. Ele ainda pensou em ir até a casa dela e obrigá-la a deixá-lo ver a filha, mas pensou melhor. Que direito tinha, afinal de contas, de impor sua presença agora? Quando a menina em plena criação precisava de um pai por perto ele se furtou ao dever. Agora, já com criação encaminhada, por que iria querê-lo por perto?
Conformou-se. Precisava colher o que plantara.
No dia da finalíssima contra o Cachorrada da Restinga, Zéfiro uniu seus atletas e lhes contou sobre as mazelas e dificuldades que passara na vida. Não haviam sido poucos os perrengues que vivera, mas ele sempre trouxera consigo a lembrança daquele título de treze anos atrás. E sempre teve a esperança de repetir aquela façanha, e saborear a glória novamente. E agora, ele disse, a oportunidade estava ali, não apenas pra ele, mas pra todos eles! Eram meninos com idade inferior a junior em sua maioria, poderiam ser vistos por olheiros de grandes clubes e seguir carreira além do amadorismo, ir jogar na europa, ou na ásia onde haviam grandes salários. Que entrassem e dessem o melhor de si! A vida nem sempre oferecia segundas chances, mas, nas raras vezes em que ela oferecia uma, era melhor tentar agarrá-la. Com vontade, sem medo, com sangue nos olhos!
Os meninos entraram em campo batendo palmas e vibrando. Zéfiro teve certeza de que aquele era o dia em que ele reencontraria as glórias de anos antes. Em que ele voltaria a ser feliz. O futebol lhe devolveria a glória que a vida lhe tirara por tanto tempo.
Após um pegadíssimo primeiro tempo que acabou empatado em zero a zero, Zéfiro orientou os meninos, mostrou-lhes o caminho do gol, e pediu que tivessem calma e que não deixassem de acreditar, pois eram bons o suficiente pra vencer aquela partida.
No segundo tempo, porém, a inexperiência do time do Bugre se fez sentir. Os jogadores do Cachorrada, todos cobras-criadas, começaram a intimidar e provocar os meninos do Zéfiro, e, após uma expulsão e vários cartões amarelos, acabou acontecendo, aos vinte e dois minutos do segundo tempo, o gol do time da Restinga.
Zéfiro ainda tentou mexer na equipe. Trocou um volante e um sagueiro por uma atacante e um meia. Mas não adiantou. Aquela não era sua tarde. O jogo terminou, comemoração dos atletas do Cachorrada, tristeza dos meninos do Bugre, consolados um a um por Zéfiro. Muito após o final da partida, Zéfiro, sozinho no vestiário do acanhado estádio do Força e Luz, recebeu um tapinha nas costas do seu Saverin.
-Não te mixa, Zéfiro. Hoje, mais que nunca, eu voltei a amar futebol. E tu vai ser o técnico do Bugre enquanto quiser o cargo.
Zéfiro apertou a mão do chefe, e permaneceu sozinho no vestiário escuro. Não reencontrara a glória de seus dias passados, não se sentia uma pessoa melhor do que noventa minutos antes, nem mais completo.
Apesar de saber que obtivera uma oportunidade que poucos conseguem, lamentou por não sentir que o que obtivera fosse um novo começo. Imaginou se estaria se sentindo de outra forma se tivesse vencido, se não tivesse fracassado de novo. E ali, na solidão sombria daquele vestiário abandonado, chorou.
Sentiu as lágrimas lhe escorrendo rosto abaixo, e quando a porta do vestiário se abriu, disse com voz embargada que sairia em um minuto. E uma voz feminina respondeu:
-Não precisa ter pressa, pai. Precisa só ter sangue nos olhos.