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sexta-feira, 5 de setembro de 2014
Tens Que Perder Essa Mania
-Tu tem que perder essa mania... - Ela disse, logo após limpar a boca com o guardanapo, olhando pra ele, inclinada pra frente, com a cabeça meio abaixada de modo que precisava mover os olhos pra cima para encará-lo.
Estavam sentados um de frente para o outro no restaurante, ele, sentado com as costas bem eretas e os ombros alinhados, ela, encolhida de uma maneira surpreendente pra uma pessoa tão alta.
Ele olhou em volta, procurando em si mesmo algo que a tivesse feito tecer tal comentário. Não tendo encontrado nada, viu-se obrigado a perguntar:
-O quê? Que mania? Que foi que eu fiz?
Ela riu:
-Erguer os dedos mínimos quando come.
Ele protestou:
-Mas eu não ergo! Eu erguia, mesmo... Era um lance natural... Faltava espaço no cabo dos talheres e eu ficava com os mingos no ar, aí esticava eles... Mas não faço mais isso.
Ela balançou a cabeça enquanto tomava um gole generoso de Pepsi:
-Tu não faz mais quando segura os talheres... mas tu sempre faz quando vira o prato, e principalmente, empinando o copo.
Ele repassou brevemente os próprios movimentos durante o almoço. Até virou o prato, como fazia quando queria alterar a configuração da comida diante de si. E de fato, seus dois dedos mínimos se espicharam instintivamente.
Ele riu:
-Ah... Isso não conta, ninguém percebe...
-E o copo? - Ela inquiriu. -Ninguém percebe esse mingo espetado pra cima, também?
-Isso é a reprodução do gesto típico de beber, lôura. É um ato de ironia contra a sociedade estabelecida e de cumplicidade com os garçons, é por isso que a gente é sempre tão bem atendido em restaurantes. - Ele se defendeu, repetindo o gesto de fingir que bebe com a mão em posição de "hang loose" como se o polegar fosse um gargalo.
Ela riu uma gargalhada gostosa:
-Mas que barbaridade, quase me engasguei... - Disse, contendo o riso e limpando uma lágrima.
Quase imediatamente, um garçom assomou, e, olhando pra ele perguntou:
-Mais uma Fanta, chefe?
Ele, confirmou com um "Arram", enquanto a encarava com um sorriso cínico que a fez, novamente, explodir em risadas.
Enquanto o garçom se afastava sem entender a risada dela, ele disse, ainda com aquele sorriso pretensioso:
-Não falei?
-Não... Fala sério... Que barbaridade... - Ela disse tomando mais um gole de refrigerante do copo e respirando fundo. -Se vocês tivessem combinado não dava tão certinho...
-Até eu me assustei quando ele apareceu aqui perguntando se eu queria outro refresco... - Ele admitiu, rindo.
-De qualquer forma... - Ela continuou, mudando de tom. -Tu precisa, mesmo, parar de esticar o mindinho quando come.
-Vou me policiar, madame. - Ele garantiu. -Nem que tenha que prender os mingos com durex, ou desenvolver a doença aquela que o Bill Nighy tem nas mãos...
-Quê doença? Que é Bill Nairri? - Ela perguntou.
-Bill Nighi... - Ele corrigiu com uma afetada imitação de pronúncia britânica. -É o ator inglês, aquele... Fez o pirata com cara de polvo no Piratas do Caribe 2 e 3...
-Me lembro do bicho, não do ator... - Ela disse, fazendo uma expressa adorável de desentendimento.
-Ele é o roqueiro Billy Mack no Simplesmente Amor... O pai do cara ruivo em Questão de Tempo... - Ele testou.
-Ah, tá, tá, tá, tá, tá... Eu sei quem é! Adoro ele... - Ela disse, animando-se. -Adorei esse filme... Tu assistiu?
-Questão de Tempo? - Ele perguntou, e continuou sem esperar resposta. -Assisti, sim. Foi uma experiência de quase-morte. Senti meu coração ser arrancado do peito mais de uma vez durante o filme. Chorei de soluçar, foi horrível. - Ele admitiu.
Ela sorriu olhando pra ele. Parecia enternecida.
-Isso é engraçado... Tu é uma da pessoas mais frias que eu conheço...
-Obrigado - Ele disse. -Eu me esforço. Meus modelos masculinos são Batman, Clint Eastwood e o Rambo. Todos reconhecidos pela frieza psicopata.
-Ai, cala a boca. - Ela disse, rindo forçado. -Tô falando sério. Sério, mesmo... Conheço pouca gente com mais dificuldade de demonstrar sentimentos que tu. Até quando tu te abre e fala o que tá sentindo, fica uma ponta de dúvida, por causa da tua distância... Eu já te vi chorando... Sei que tu chora, mas... Não sei, volta e meia eu tenho a impressão de que as tuas lágrimas em certas situações são solidárias... Tu chora com quem tá chorando contigo...
Ele não disse nada. Tinha um par de ocasiões como as mencionadas por ela bem frescas na memória.
Ela continuou:
-Mas ainda assim... Tu é, certamente o homem que mais chora vendo filme que eu conheci na minha vida inteira!
Ele riu, mas ela continuou:
-Sério! Eu me lembro uma vez, aaaaaaanos atrás, que meus pais viajaram e tu foi dormir comigo, e a gente tava vendo filme e comendo... O quê, meu Deus... Amendoim carapinha!
-Amendoim carapinha branco... Minha vó tinha feito... Tão bom aquilo... - Ele lembrou.
-Muito! - Ela concordou. -Mas aí, tu tinha levado um filme pra gente ver no DVD, e era um filme velho, preto e branco... Com o Clark Gable?
-Gregory Peck. - Ele corrigiu. -Era O Sol É para Todos, com Gregory Peck. O meu filme preferido em todos os tempos, e ainda me magoa tu ter dormido...
-Pois então! - Ela disse sem ligar para a recriminação dele. -Eu dormi no teu colo, e acordei quando o filme já tinha acabado, e tu tinha lágrimas no rosto! Os olhos vermelhos... Fungando...
Ele riu:
-Tem filmes que eu sempre choro assistindo. Não adianta...
-E tu sabe? Aquilo foi logo depois daquele lance com o César na faculdade...
-Ah, a briga... - Ele admitiu envergonhado.
-Briga, não... Tu te botou nele... Acho que a orelha dele nunca mais foi a mesma...
-Ele por acaso era pirata ou cigano pra andar de brinco por aí?
Ela riu brevemente, mas conteve-se:
-Não... Não, Ned... Aquilo não se faz...
Ele riu, olhando pra cima como quem se lembra:
-É... Foi uma boa briga... De qualquer forma, aquele cara falou coisas que não se diz pra outro homem sem esperar apanhar um pouco...
-Não importa - Ela disse. -Não era o meu ponto. O lance é que foi logo depois de tu bater no César-
-Brigar com o César. - Ele corrigiu. -O escroto do César não tava amarrado numa cadeira, era do mesmo tamanho que eu e revidou. Foi uma briga.
-Tá... Foi logo depois da briga com o César... E eu tinha ficado com uma ideia tua... De que... Sabe? Tu era um desses... Desses caras brigões... Que se impõe pela força e tal. Eu tava crente nisso. E eu confesso que, naquele momento, eu fiquei com dúvidas quanto à gente. Porque eu pensei "cara, que futuro eu vou ter com um ignorante desses?"... E aí, a gente viu o filme, e tu chorou vendo... Sozinho. Não reagindo às minhas lágrimas ou às lágrimas de ninguém. Tu chorou porque tu te emocionou com alguma coisa, e eu vi que tu não era só um bruto... Que dava pra ficar contigo.
O garçom chegou e serviu a Fanta dele. Marcou o refrigerante na comanda, ao que ele agradeceu com um "obrigado" baixo. Quando o sujeito se afastou, ele tomou um gole do refrigerante. Olhou pra ela e perguntou com um meio sorriso:
-E por que tu foi embora?
Ela olhou pra ele com uma expressão triste. Ele sorriu:
-Se tu tivesse achado que eu era um bruto brigão, tu teria ficado nem que fosse por medo de eu te bater?
Ela abanou a cabeça em um sinal negativo indiscernível entre "não" e "larguei de mão".
Ele pegou a mão dela por cima da mesa:
-Eu tô brincando.
-Eu sei. - Ela disse. -Eu tava falando exatamente disso. Dessa tua dificuldade patológica pra demonstrar sentimentos...
-Verbalmente conta? - Ele perguntou.
Ela o encarou brevemente e assentiu com um maneio de cabeça.
-Tu é, fácil, uma das minhas pessoas preferidas no mundo. E eu adoro te ter na minha vida, seja da maneira que for.
Ela olhou pra ele apertando os olhos como quem está desconfiada, e ele continuou:
-E se tu precisa de lágrimas pra legitimar, deixa eu trazer uma pinça e arrancar uns pelos das coxas por dentro do bolso da calça enquanto repito o que acabei de dizer.
Ela finalmente riu de verdade outra vez. Se desvirou toda de maneira ligeira e lépida, e passou a mão no rosto dele.
Ele olhou o relógio e disse:
-Bah, olha a hora... Vamos indo?
Ela concordou. Ele tomou todo o refrigerante do copo num gole só. Ela ria quando ele baixou o copo.
-Quê? - Ele perguntou.
-Tu tem que perder essa mania... - Ela disse enquanto pegava a bolsa.
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