Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
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quinta-feira, 16 de outubro de 2014
Pra Não Desmoronar
Entraram no apartamento, ela, depois ele. Ela, vestida com uma saia curta e solta, azul-marinho com estampa floral e um casaquinho branco de lã sobre uma regata, também branca, tirou os tênis all-star usando apenas os pés, e abriu a geladeira sem pegar nada, apenas se apoiou na porta e inclinou o tronco esguio pra dentro do refrigerador, suspirando alto:
-Aaaaaaaaaaah... Que calorão nessa rua, Deus o livre...
Ele, sorrindo diante da visão, perguntou:
-Onde eu deixo essas sacolas?
-Qualquer lugar... - Ela respondeu com pouco caso, enquanto enfiava a cabeça dentro do freezer fazendo graça num óbvio hipérbole do calor, ainda perfeitamente suportável àquela altura do ano.
-Eu te falei que tu tava louca de andar de casaco... - Ele disse enquanto largava as sacolas de compras sobre o balcão de mármore branco rachado da pia.
-Não é casaco. - Ela protestou, fechando a porta da geladeira e tirando a peça. -É um casaquinho. E quado eu saí de manhã não tava tão quente...
-Se tu usasse bolsa que nem uma mulher normal, tu poderia ter guardado teu casaquinho na bolsa... - Ele aferiu enquanto tirava as coisas dela de dentro da sacola.
-Se tu fosse um cavalheiro, tu teria te oferecido pra levar meu casaquinho nessa tua mochilona. - Ela retorquiu.
Ele ergueu a sobrancelha:
-É justamente por eu ser um cavalheiro que eu não me ofereci pra levar teu casaco na mochila. Minha mochila tá imunda. E fedendo. Ontem tomei chuva com ela. Só vou poder lavar no final de semana. - Ele explicou.
-Eu tava brincando. - Ela disse. -Se tem uma coisa nessa vida de que ninguém pode te acusar, é de não ser cavalheiro.
-Deve ser a única... - Ele constatou olhando pra ela de canto.
Ela sorriu, inclinou-se pra frente mas ele a evitou.
-Que foi? - Ela perguntou, surpresa enquanto estacava. -Eu não ia...-
-Eu sei... Eu sei. - Ele disse, virando de costas para o balcão e se apoiando nele com as mãos espalmadas pra baixo. Fechou os olhos:
-Eu não achei que tu fosse... Eu só... Sabe aqueles momentos em que tu pensa que, se alguém te tocar, tu vai te debulhar em lágrimas que nem uma guriazinha?
Ela parou na frente dele. O espaço exíguo da cozinha dela forçando uma aproximação que não o deixava confortável. Apoiou-se, da mesma forma que ele, na mesinha de fórmica amarela que havia entre a geladeira e a máquina de lavar:
-O que houve, Ned?
-Eu não sei pra onde essas coisas vão. - Ele disse, apontando as compras que acabara de tirar de dentro das sacolas. Frutas, leite, iogurte, maionese, massa, uma lasanha congelada, peito de peru, queijo, requeijão, uma garrafa de dois litros de Pepsi...
-Fala comigo... - Ela suplicou.
-Tu esqueceu o pão. - Ele balbuciou, tentando distraí-la.
-Esqueci o pão! - Ela disse, fazendo cara de triste diante das compras.
-Acontece. - Ele disse, olhando pras compras, mas vendo através delas, muito longe. Lá longe...
Saiu de seu mini-transe e viu que ela o encarava sorrindo triste.
-Bueno... O leite, o iogurte e os frios vão pra geladeira... As frutas, também? - Ele perguntou, começando a apanhar as coisas.
-Sim. - Ela respondeu, ainda com o sorriso, enquanto apanhava o refrigerante e a lasanha e os recolhia ao freezer.
Tudo guardado, ele passou as mãos nas pernas e disse que ia indo.
-Peraí. - Ela disse, detendo-o. Eu quero te mostrar uma coisa. Correu até a sala e voltou com um molho de chaves na mão.
-Uh, chaves! - Ele disse, fingindo empolgação.
-Cala a boca, palhaço, não é isso. - Ela o repreendeu, rindo. -Vem comigo.
O pegou pela mão e o conduziu pra fora do apartamento. Andaram até o fim do corredor, pararam junto à uma grade que impedia o acesso à escada a partir daquele andar. Ela apanhou o molho de chaves, e testou uma antes de acertar a segunda, que entrou na fechadura e liberou-lhes a passagem.
Subiram a escada, com ela à frente. Ele, atrás dela, perguntou:
-Estamos indo pro teu laboratório, doutora Von Frankenstein?
Ela fez um "shhh!" alto, que o levou a crer que eles não tinham permissão para estar ali. Ela se deteve diante de uma porta enferrujada de metal, e ali, acertou a chave de primeira, abrindo a porta e lhe mostrando o terraço do prédio.
Não era particularmente impressionante dali. Uma lage surrada, fustigada por toda a sorte de intempérie, e cercada por três paredes bem mais altas, visto que, tanto o prédio à direta quanto o prédio à esquerda e mais o prédio ao fundo, eram pelo menos meia dúzia de andares mais altos.
Ele externou seu desapontamento:
-Uau... Com certeza é um quarto com pé direito beeeeeeeeem alto...
Ainda alongava o "e", quando ela o pegou pelas orelhas e o virou, de modo a fazê-lo ver o que ela, de fato, queria mostrar. A vista para a frente.
Da sacada do apartamento dela se via bastante céu, já que o prédio da frente tinha um andar a menos. Mas a vista ficava obstruída por conta do que, eles supunham, fosse a sala de máquinas do elevador do edifício, que também tinha o pé direito pouco mais alto, de modo que, o grande barato da vista da sacada, era a rua Duque, e o fato de ter sol uma boa parte do dia.
Mas de onde estavam agora, no terraço, o prédio da frente não obstruía nada. E eles podiam ver os morros à caminho da Zona Sul, o parque do Marinha, o Beira-Rio, a usina do gasômetro, além de uma grande quantidade do Guaíba.
O sol estava se pondo, e uma iluminação dourada e laranja tomava conta do céu à direita, e ia se tornando rosa e então púrpura conforme se voltavam à esquerda num espetáculo de cor tão bonito que eles podiam até esquecer do barulho e da poluição que se erguiam do tráfego cinco andares abaixo.
-E aí? - Ela perguntou. Valeu a pena?
Ele sorriu olhando adiante.
-Valeu, alemoa. Obrigado.
Ele limpou os olhos, que se encheram d'água, e ela se aproximou dele já se desculpando:
-Olha... Não me leva a mal... Mas se tu quiser te debulhar em lágrimas, esse é um bom momento.
E o abraçou forte. De maneira fraternal. Como ele não era abraçado havia tanto tempo que nem se lembrava. E ele chegou a soluçar pensando no quanto precisava daquilo, mas foi só. À exceção de uma lágrima que lhe escorreu de cada olho, ele não se desmanchou chorando como temia que pudesse acontecer, e aquele abraço somado àquele pôr-do-sol que tinham por perto, o ajudaram a aguentar o que fora um dia e uma noite particularmente infernais. E talvez fossem mantê-lo inteiro por mais algum tempo.
Àquela altura da vida, com tudo o que vinha acontecendo, talvez fosse o máximo que ele pudesse esperar. E ele estava verdadeiramente agradecido.
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