Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
Pesquisar este blog
segunda-feira, 17 de junho de 2019
Resenha Minissérie: Chernobyl
Quando criança, eu acredito já ter tido essa reminiscência por aqui, eu tinha uma liberdade surpreendente no que tange ficar acordado até altas horas da madrugada, ás vezes sem supervisão, e assistir filmes muito além de minha faixa-etária (além do programa Comando da Madrugada com Goulart de Andrade no SBT, que tinha strip-teases em alguns blocos, mas isso é outra história). Assisti grandes filmes naquela época, o Planeta dos Macacos original, 2001: Uma Odisseia no Espaço (cuja trilha me apavorava), ...E o Vento Levou, Lawrence da Arábia, O Tesouro de Sierra Madre, e outros não tão grandiosos, A Dama de Vermelho, na verdade quase toda a filmografia de Wilder e Pryor, e Lewis e Martin, os filmes catástrofes setentistas, Terremoto, Inferno na Torre, O Destino do Poseidon e ao menos um dos filmes da série Aeroporto, ainda que eu não lembre qual, e uma série de filmes de terror, de O Bebê de Rosemary a O Exorcista passando por grandes bombas como O Ataque das Aranhas Gigantes, Alligator e dúzias do incipiente cinema slasher. Nenhum filme, porém, me assustou da maneira de O Dia Seguinte assustou.
O longa de 1983 que mostra o resultado de um ataque nuclear contra os Estados Unidos foi uma das experiências mais aterrorizantes da minha infância, e me fez nutrir genuíno pânico de energia nuclear ao longo de muitos anos de minha vida, de uma forma que nem mesmo os milagres atômicos da Marvel (O Homem-Aranha era picado por uma aranha radioativa, o Demolidor recebia um isótopo nos olhos, os X-Men eram os "filhos do átomo"...) eram capazes de amainar.
Eu cresci interessado no assunto, sempre de maneira assombrada, e ao me tornar um estudante de História, as vezes em que estivemos no limiar de um desastre nuclear só não me apavoravam mais do que as ocasiões em que esse tipo de energia realmente fora usado contra seres humanos.
Quem jamais viu Robert Oppenheimer falando a respeito da bomba atômica deveria procurar esse vídeo. Quem não sabe o tamanho da tragédia que uma bomba nuclear causa deveria ler O último Trem de Hiroshima, quem não tem medo da fissão do átomo, deveria se informar a respeito.
Meu pavor por energia nuclear foi reavivado na última semana, quando assisti Chernobyl, minissérie da HBO que revisita o desastre ocorrido na usina nuclear de mesmo nome na madrugada de 26 de abril de 1986 na cidade de Pripyat, na Ucrânia, e suas consequências.
Brilhantemente estruturada e contando com atuações excepcionais de um grande elenco encabeçado por três cobras, Jared Harris, Emily Watson e Stelan Skarsgard, Chernobyl é uma série que a cada hora que assistimos parece ficar mais pesada e mais sombria, tornando-se mais poderosa e impressionante em mesma medida conforme o foco da narrativa é tanto no desastre quanto nas pessoas que "sofreram e se sacrificaram" (como nos diz o recordatório ao final do último episódio).
A série revisita uma tragédia de proporções inimagináveis através dos homens e mulheres que estiveram lá, que morreram na explosão ou nos esforços de contenção que se seguiram e aos cientistas que tentavam entender o que originara o mais trágico acidente nuclear da História da humanidade que, sob a lente de Johan Renck, se torna mais devastador quando leva o espectador para dentro do microcosmo do evento de carona com seus personagens.
Chernobyl começa bastante episódica. Após um prólogo, somos apresentados a vários personagens que orbitam os eventos daquela fatídica madrugada de 26 de abril quando um teste de segurança que fora adiado por conta do calendário de produção das fábricas soviéticas foi levado a cabo durante a noite, com funcionários de plantão inexperientes e/ou mal-informados quanto à natureza da operação que deveriam realizar liderados pelo engenheiro chefe Anatoly Dyatlov (Paul Ritter, simplesmente asqueroso, e isso é um elogio ao ator), um escroto abusivo querendo uma promoção a qualquer custo. Sob a batuta de Dyatlov os funcionários da usina foram, tanto levados a cometer erros, quanto expostos a perigos inimagináveis conforme seu superior se recusava a reconhecer a extensão da tragédia que suas ações haviam gerado. A recusa de Dyatlov em admitir a catástrofe coloca em risco a vida de todos os trabalhadores sob seu comando e massacra os bombeiros chamados para conter o que pensavam ser apenas um incêndio no telhado da usina, alheios à verdadeira natureza do fogo, mas é a ação dos políticos do governo soviético, mais interessados em manter as aparências frente a comunidade internacional que condena milhares de residentes de Pripyat nas horas que se seguiram à explosão do reator número 4.
É quando entra em cena um dos pilares da série, Valery Legasov (Jared Harris, excepcional), físico nuclear convocado para servir como consultor por sua expertise em reatores nucleares RBMK, modelo usado em Chernobyl. Legasov é o primeiro a perceber o que de fato ocorreu em Chernobyl, e o que isso realmente significa após ler o relatório que indica a presença de grafite fora do prédio. Ele imediatamente sabe que isso significa uma explosão no reator, e não um mero vazamento no tanque de resfriamento, a versão oficial passada adiante pelas autoridades. Após enfrentar a ferrenha oposição dos líderes locais do Partido Comunista, Legasov finalmente recebe carta branca para iniciar protocolos de contenção apropriados para o problema verdadeiro, e todas as consequências que ele poderia acarretar, inclusive explosões nos outros três reatores, ainda ativos na usina, um vazamento de radiação se espalhando pelo oeste da União Soviética, e a possibilidade do derretimento do reator danificado contaminar todo o suprimento de água do país e de partes da Europa oriental.
A minissérie nos leva a descobrir como, ao custo do sacrifício de dezenas de milhares de vidas humanas, cada um desses desastres em potencial foram evitados colocando homens em face de níveis de contaminação tão elevados que os aparelhos de medição simplesmente deixavam de funcionar por conta dos altíssimos índices de radiação, forçando Legasov, o oficial do primeiro-ministro Boris Shcherbina (Skarsgaard) e a física nuclear bielorussa Ulana Khomyuk (Emily Watson) a encontrar soluções para impedir o alastramento de um desastre jamais visto durante a passagem do Homem pela Terra.
Além deles, há ainda espaço para termos um vislumbre do impacto sobre as vítimas e seus familiares através de Lyudmilla (Jessie Buckley), esposa de um dos primeiros bombeiros a chegar ao reator, e, no quarto capítulo, "The Happiness of All Mankind", descobrirmos pormenores do esforço de contenção com Pavel (Barry Keoghan, de Dunkirk), que se junta a uma equipe encarregada de sacrificar animais que viviam nas imediações de Pripyat e se tornaram agentes contaminadores, incluindo animais domésticos abandonados em um episódio dolorosamente deprimente, sim, mas conduzido e atuado de maneira certeira garantindo que o soco no estômago não seja forte demais a ponto de afugentar a audiência.
Equilíbrio, aliás, é algo no cerne do que faz Chernobyl funcionar tão bem.
O escritor Craig Mazin (Cujo currículo abismal inclui os scripts de Super-Herói: O Filme, Todo Mundo em Pânico 3 e 4, Uma Ladra Sem Limites e Se Beber Não Case partes II e III) e o diretor sueco Johan Renck (egresso de videoclipes e de seriados como Bates Motel, Vikings e Breaking Bad) acertam tão na mosca na hora de destacar o elemento humano por trás do desastre que aqueles que, a exemplo de mim, ainda se lembram, apavorados, das notícias a respeito de Chernobyl nos telejornais conseguem ver o que antes era um evento entendido com distanciamento tão emocional quanto físico de forma totalmente nova. A abordagem da dupla é o que torna um material que poderia facilmente se tornar acadêmico e científico em algo inteligível, quase tátil.
Novamente, essa é uma tarefa onde a dupla tem o apoio de um elencaço na ponta dos cascos, começando pela trinca principal.
Stelan Skarsgard faz um dos grandes trabalhos de sua vida como o político carreirista do Partidão soviético que subitamente percebe que as falácias ideológicas que movem a máquina do socialismo bolchevique não vão resolver os problemas de Pripyat. A maneira como a abordagem de seus superiores vai mudando sua visão do governo soviético só não é melhor que sua química com Harris ou seu espetacular trabalho de atuação.
Emily Watson tem uma missão ingrata, a de viver Ulana Khomiyuk, criada para a série como avatar de parte da comunidade científica soviética da época, e o que ela consegue fazer com um personagem que poderia facilmente se transformar em um recurso narrativo ou uma máquina de exposição parecer uma pessoa mesmo à revelia de, frequentemente ser um veículo para expor o poder da KGB, a busca pela verdade ou apenas os horrores do rescaldo da tragédia.
Jared Harris, por sua vez, está monstruoso. A forma como ele imbui Legasov com intelectualismo o suficiente para nós sabermos que ele sempre é a pessoa mais inteligente na sala, mas não tanto a ponto de desumanizá-lo é espetacular. Somado à forma como sua voz frequentemente treme sob notas de desespero ou resignação, deixando dolorosamente claro que ele está tentando resolver um problema que talvez não possa ser resolvido, e que já causou tanto estrago que pode já ter matado todos os envolvidos, incluindo ele próprio tornam o seu trabalho uma obra-prima. Não e exagero colocá-lo como favorito em todas as listas de premiação do ano que vem.
E pode parecer, ao ler essa resenha, que Chernobyl é toda falatório, mas a verdade é que não faltam momentos de deixar o coração na garganta, especialmente no primeiro episódio, 1:23:45, que é um incessante pontapé nas gônadas, ou a forma como acompanhamos os técnicos e socorristas da usina literalmente se desmanchando como consequência de sua exposição ao grafite lançado de dentro do núcleo do reator exposto, e, novamente, isso não é gore gratuito, pois o enfoque de Chernobyl nos leva a pensar nos personagens passando por tais desgraças com mais pesar do que curiosidade.
Somado a isso uma fotografia belíssima, edição de primeiríssima categoria, orgânica e opressiva trilha sonora da compositora Hildur Guðnadóttir e um fidelíssimo design de produção, Chernobyl nos enche de pavor e assombro. Sem jamais se entregar à soluções fáceis ou espetáculo vazio, a minissérie ilustra um desastre de proporções inimagináveis e faz uma dolorosa pergunta:
Qual o custo das mentiras?
"-Não houve nada de são a respeito de Chernobyl."
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário