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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Chocolate




Berenice era a gostosa do bairro.
A luz que iluminava os olhos dos homens desde os velhos sem-vergonha da frente do botequim até os adolescentes repletos de espinhas e hormônios sentados na mureta da dona Rose ouvindo Hip-Hop.
Tinha figura de deusa da luxúria. Seios volumosos e quadris avantajados separados por uma cinturinha de pilão. Suas coxas eram grossas como as do Roberto Carlos, o lateral, não o cantor, e suas panturrilhas firmes fariam o zagueiro índio, do Inter, enrubescer de vergonha.
Berenice tinha cabelos longos e escorridos, eram negros e lhe caíam bem, mas ela, por alguma razão, os descoloriu, tornando-se loura e atiçando com ainda mais intensidade o imaginário dos vizinhos.
Berenice, porém, tinha em orgulho a mesma abundância que tinha em curvas. Se achava superior a todos. Considerava seus vizinhos pobres-coitados e sequer dignava-se a responder às saudações que recebia quando passava pela rua com os seios e o nariz apontados para o céu.
Berenice tinha planos de usar sua bela estampa para subir na vida. Todos suburbanos, é verdade.
Sonhava participar de um reality show, ou, quem sabe, dançar no palco de algum programa de humor e gosto duvidosos, quiçá, na pior das hipóteses, engravidar de um craque emergente do futebol.
Berenice, a despeito da pequenez de seus propósitos, era centrada, e não queria acabar como outras moças da vizinhança.
Ela não seria a mãe boazuda de um fedelho ranhento da redondeza, casada com um mequetrefe local, não mesmo.
Era, porém, um mequetrefe local que estava enamorado por Berenice.
Clécio era seu nome.
E ele não se considerava um mequetrefe. Muito antes pelo contrário, considerava-se um afortunado.
Clécio era o mais velho de uma família de seis irmãos órfãos de pai. Ele tivera que, desde cedo, ajudar a mãe a garantir o sustento da família, e conseguira isso ás custas de seus estudos. Apenas mais velho, quando seus irmãos já com alguma idade puderam ajudar a si próprios e tinham criação encaminhada, Clécio pôde pensar no próprio futuro.
Fez supletivos onde concluiu o ensino fundamental e médio. Chegou a flertar com a ideia de cursar a universidade, entretanto o custo proibitivo o dissuadiu. Trabalhou duro como assistente de obras, feirante, e office-boy até conseguir à expensa de muito suor, fazer um curso técnico e tornar-se metalúrgico, profissão que garantiu-lhe algum conforto, e até, almejar algo mais da vida.
Clécio não era ganancioso, pra ele ter o bastante para viver com o conforto de uma TV a cabo, férias no litoral norte uma vez por ano e uma pequena extravagância como uma nova chuteira de seis em seis meses lhe deixavam satisfeito, o "algo mais" que Clécio almejou foi, imaginem, Berenice.
Há que se ressaltar que Clécio, inocente que era, confundia o orgulho e a altivez vazia de Berenice com virtude, imaginando que a moça apenas daria ouvidos a um homem que fosse, de fato, comprometer-se para com ela.
Ideia que não se afastava em demasia da realidade, apenas não era um pensamento completo, afinal de contas, Berenice, de fato, estava disposta a dar ouvidos unicamente a um homem que fosse comprometer-se com ela, contanto que esse homem fosse rico. Ou, pelo menos, abastado o bastante para garantir-lhe, não apenas uma vida desprovida de sobressaltos de qualquer espécie, mas também uma dose de prosperidade perene e luxos como viagens semestrais à Europa, carros caros e roupas de estilistas afamados.
Clécio ignorava isso, e começou, então, a fazer côrte à ela.
Coisas simples, em um primeiro momento, como segurar a porta da venda para ela passar, ou carregar suas compras até em casa. Ela, porém, permanecia ignorando-o, sequer percebia sua presença.
O que era desdém em estado puro, foi encarado por Clécio como desafio, e ele não se furtaria de aceitá-lo.
Resolveu aproximar-se de dona Catarina, a mãe de Berenice, para ver se a sogra de seus sonhos lhe dava o mapa de como chegar ao coração da moça.
Extremamente honesta, dona Catarina advertiu Clécio das intenções da filha. Ressaltou que não aprovava, mas que Berenice era obstinada, e não mudaria sua forma de ser, o que significava que ela não iria sequer tomar conhecimento de Clécio e seus modestos galanteios.
Todavia, Clécio também era obstinado.
Muito.
E não desistiria fácil. Suplicou à dona Catarina que lhe desse uma luz, qualquer coisa que ele pudesse usar como arma para vencer a guerra que travaria pelo coração de Berenice.
Dona Catarina pensou, pensou, pensou, e então, como se iluminada, disse subitamente:
-Chocolate!
Clécio não entendeu.
-Chocolate? - Perguntou confuso.
-Sim, chocolate. Mas não chocolate porcaria, desses que tu compra na venda do Joca. - Explicou dona Catarina. -Chocolate bom de verdade. Não precisa ser finíssimo chocolate suíço, mas esses chocolates gostosos da Kopenhagen, aqueles bombons com licor e cereja, a Berenice adora essas coisas. Compra pra ela, manda entregar como se fosse um admirador secreto, quem sabe funciona. - Sugeriu a velha.
Clécio aceitou o conselho.
Comprou uma caixa de chocolates língua de gato e deixou-os embrulhados com um cartão sob a porta da casa de Berenice.
No cartão não se identificava, apenas dizia que a doçura do chocolate não se equiparava à doçura dos lábios de Berenice, e assinava como "Um apaixonado".
Não sabia se daria certo, mas sentiu-se orgulhoso de toda a produção. No outro dia, ao passar em frente ao prédio de Berenice, a viu na sacada, a caixa de bombons aberta sobre o parapeito, saboreando a guloseima enquanto revirava os olhos.
Chocolates, pensou Clécio.
Chocolates de todo o tipo, esse seria o caminho para o coração de Berenice. Clécio se tornou frequentador assíduo da Kopenhagen. Não só de lá, frequentava várias lojas de importados onde pudessem haver chocolates deliciosos e diferentes.
Mandava-os para Berenice três vezes por semana, secretamente se encontrava com dona Catarina para perguntar se já era momento de se revelar. A mãe de Berenice, contudo, disse que a filha continuava com seus propósitos inabalados, e que Clécio seria ridicularizado por ela se assumisse a autoria dos presentes e dos cartões, que talvez devesse desistir.
Mas, se Clécio chegou a imaginar que devia desistir, abandonou essa alternativa em seguida.
Cruzou com Berenice na rua e, ao cumprimentá-la, a surpresa: ela respondeu ao seu comprimento, até sorriu!
O chocolate, pensou Clécio, estava amolecendo o coração da mulher de seus sonhos, rompendo com seu sabor cremoso e doce a barreira de gelo que se interpunha entre ela e ele.
Mas os chocolates que ele comprava ainda não eram o suficiente, ele precisava fazer mais e melhor.
Conheceu um gourmet que fabricava chocolate, inscreveu-se em um curso, e aprendeu ele mesmo, a fazer as iguarias. Não apenas comprar aquelas barras grandes no super-mercado e derretê-las, oh, não.
Clécio passou a fazer tudo desde o cacau. Fazia o chocolate desde a matéria prima. Acrescentava aromas, sabores, nozes, flores! Temperava suas receitas não apenas com condimentos, mas também com seu inabalável amor.
Seus amigos e parentes eram as cobaias que experimentavam maravilhados as delícias que saíam da cozinha de Clécio, obcecado pelo coração de Berenice, que recebia apenas o supra-sumo da produção apaixonada do tolo enamorado.
Ela, porém, seguia aberta apenas ao chocolate, dando-lhe pouca abertura além de um eventual "oi", ou um aceno aos quais ele recebia como se fossem tesouro.
Clécio, alheio às dificuldades, seguia inabalável em sua missão de conquistar Berenice pelo estômago. Largou o emprego e torrou suas economias, viajou para a Europa para aprender novas receitas, estudou por três anos, tornou-se um mestre chocolateiro, formou-se com louvor em uma conceituada escola de culinária e fez estágios em grandes fábricas.
Voltou para o brasil ainda obcecado por Berenice, porém ao chegar, a decepção:
Sua amada estava casada.
Casara com um empresário 18 anos mais velho que ela, e que, se não era rico como ela almejava, pelo menos tinha dinheiro o bastante para garantir dois ou três dos inúmeros luxos com os quais ela sonhava.
Dona Catarina lhe explicou que não avisara antes pois não queria tirar o combustível de Clécio, tão empolgado que estava com seus cursos na Europa.
De coração partido, Clécio trancou-se em casa e, em uma noite de melancolia particularmente dolorida, debruçou-se sobre suas anotações e bolou uma receita de chocolate.
Não, qualquer receita.
A mãe de todas as receitas de chocolate.
Após experimentar à exaustão, aperfeiçoando detalhes e proporções, ele soube que alcançara o ápice, o cume, o apogeu do que um chocolate podia ser.
Escreveu a receita em uma folha de papel e a escondeu. Fez uma pequena leva do doce, e o deu para que familiares e amigos próximos experimentassem.
Sucesso.
Ninguém conseguia resistir e comer apenas um bocadinho, todos queriam mais. Cada mordida era como olhar no rosto de um anjo e receber um sorriso de volta. As pessoas reviravam os olhos ao comer o doce bolado por Clécio, sentiam as pernas tremerem, e sentiam que aquele seria um bom momento para morrer.
Clécio preparou uma porção generosa do seu chocolate secreto, que batizou de "Berê", uma porção muito generosa, e enviou para Berenice em segredo. Fez aquilo quatro vezes por semana durante seis meses.
Só então, munido da receita secreta do Berê e de amostras, foi até algumas das mais tradicionais fábricas de chocolate do país e fez um leilão de sua gloriosa criação, que foi disputada a tapas entre as companhias e vendida por uma fábula sob a condição de ele receber royalties vitalícios sobre as vendas do produto.
Clécio tornou-se rico, muito rico.
Comprou casas, carros, viajava frequentemente para a Europa para aperfeiçoar suas técnicas de fabricação de doces, colocou sua família no ramo e acabou montando sua própria fábrica, que produzia outros chocolates deliciosos.
Acabou vendendo a sua fábrica para um conglomerado internacional alguns anos depois, e ficou ainda mais rico.
Possuía tudo o que um homem podia querer, casou com uma bela e direita moça que conheceu na Bélgica, Chantal, teve três filhos e, vez por outra, ainda pensava com carinho em Berenice, a quem nunca mais viu, de modo que não soube que, após seis meses de remessas generosíssimas do Berê, se tornara uma gorducha mãe de família.
O que Clécio soube, foi que ás vezes, das mazelas da vida se pode colher frutos muito positivos, e que, de vez em quando, a amargura de um coração partido pode tornar um doce muito mais doce.

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Perfeição


O Tato e a Clarice se amavam. Se amavam muito. Nossa, como se amavam. O Tato e a Clarice se amavam de um jeito doce. Não melado, mas doce na medida. Se respeitavam, muito, confiavam um no outro, não eram daqueles casais que parecem desesperados pela ateção um do outro o tempo inteiro, não.
O Tato e a Clarice estavam sempre tocando um no outro quando estavam perto. Mãos dadas, carícias, coisas que, ás vezes, passavam despercebidas para os outros, como o fato de ele sempre colocar a mão nas costas dela quando a fazia passar na frente ao entrar em algum lugar, ou ela sempre pousar a mão na perna dele quando sentavam lado a lado, mas ninguém jamais viu o Tato buscando desesperadamente a mão da Clarice quando andavam na rua, ou ela virar seu rosto até amassar-lhe a pele durante um jantar para beijá-lo quase á força. Tudo entre Clarice e Tato era espontâneo. Leve.
Chegava a ser ostensiva, não apenas a cumplicidade e o amor, mas a qualidade e na pureza do amor que Tato e Clarice partilhavam.
Não havia nenhuma anormalidade em Clarice amar Tato. Tato era um bom rapaz. Não era feio, tinha até alguma beleza, de um tipo antigo e pouco óbvio, como aqueles galãs de cinema dos anos cinquenta. Tato era educado, atencioso, não se importava de ver comédias românticas no cinema, sabia cozinhar e não tinha vergonha de demonstrar afeto publicamente, era engraçado e inteligente. Tinha um emprego decente como analista de sistemas, e era fiel. Caninamente fiel à Clarice. E era fiel por que a amava.
E, claro, não era gratuito. Tato amava Clarice por que qualquer homem de posse de suas faculdades mentais amaria Clarice. Ela era linda, inteligente, gentil e amorosa. Era veterinária e além de trabalhar em uma clínica, abnegadamente também fazia plantões voluntários em um abrigo de animais. Ela não era moça afeita a frescurites, não abominava futebol, tampouco filmes de ação. Gostava de praticar esportes e de fazer programas que envolviam passar algum trabalho, como acampar.
Enfim, eram perfeitos individualmente e ainda mais perfeitos como par. Se em um primeiro momento os amigos em comum do casal ficavam um pouco reticentes com relação aos dois, afinal, ter um casal perfeito por perto nunca é bom para os casais comuns, logo aprendiam a admirar o amor dos pombinhos.
De maneira muito espontânea, Tato e Clarice se tornaram o norte da bússola de todos os outros casais, apontando que caminho seguir em nome de uma relação saudável, eram o nirvana que todos os outros casais queriam atingir. Os amigos do grupo até diziam, quando um casal estava no início de uma relação, naquela fase em que não se desgrudam e um acha tudo o que o outro faz um amor, que eles estavam no ETC da relação.
ETC significava, não tão secretamente, "Estágio Tato e Clarice".
Os outros casais copiavam-lhes os movimentos, alguns estavam satisfeitos em ter metade, até um quarto, do amor, da pureza e da cumplicidade que partilhavam Tato e Clarice, copiavam-lhes os movimentos e faziam programas com eles pois o amor e a naturalidade dos dois pareciam contagiar o ambiente.
Um casal em particular, Amaury e Rosane, invejavam Tato e Clarice.
Não era dessas invejas mesquinhas e maléficas, eles não queriam roubar a felicidade e o amor de Tato e Clarice, eles queriam ter uma igual.
Amaury e Rosane haviam passado por problemas em seu namoro-quase-casamento. Ele a traíra, ela revidara, também com uma traição. Se separaram por algum tempo, depois reataram, mais por conveniência, perdoando um ao outro da boca pra fora, e isso fora péssimo para ambos. Ela entrou em depressão, ele se transformou em um rabugento. Mas acabaram superando aquilo. Resolveram se dar outra chance, fizeram terapia juntos, não funcionou, mas pelo menos deu-lhes combustível para resolverem seus problemas sozinhos. Se perdoaram novamente, dessa vez com sinceridade, e estavam tentando ser o casal que foram nos primeiros anos da relação.
Por isso, andavam bastante com Tato e Clarice, que, além de todos os outros atributos eram, também, extremamente compreensivos e ansiosos por ajudar.
Foi durante um jantar, apenas os dois casais à mesa, que Amaury e Rosane, muito sinceros, mãos dadas, perguntaram, aflitos, qual era o segredo da relação bem-sucedida de Tato e Clarice. Conversaram muito ao longo daquela noite, estavam dispostos a tentar qualquer coisa para salvarem sua relação, e, quem sabe, ter uma que se aproximasse da relação dos amigos. Foi no fim da noite, depois de jantarem, comerem a sobremesa e beberem mais uma garrafa de vinho, que Clarice olhou para Tato e perguntou com gravidade:
-Contamos pra eles, Tato?
Ele respondeu com tranquilidade que, se ela quisesse contar e se sentisse á vontade para isso, ele aceitaria.
Rosane e Amaury ficaram aflitos esperando pela fórmula mágica que garantia o secesso, do amor puro e franco que Tato e Clarice partilhavam.
Depois de pedir segredo por duas vezes, Clarice respirou fundo e disse após um suspiro:
-Olha, gente... O Tato e eu temos, sim, um segredo pra nossa felicidade. Nós, pelo menos uma vez por mês, frequentamos uma casa de swing sado-masoquista.
Amaury e Rosane, se tivessem combinado, não teriam conseguido um uníssono de horror tão franco:
-Quê?
Tato continuou:
-Foi ótimo pra nós. Sério. A gente foi só pra ver na primeira vez, mas aí, tinha outro casal lá que foi super gentil com a gente, e nós aceitamos uma proposta pra dividir um ambiente com eles, daí pra troca foi um salto, e nós-
-Tá bem! Obrigado! - Gritou Amaury, querendo poupar Rosane dos detalhes conforme via os olhos dela se esbugalharem enquanto Tato fazia seu relato.
Agradeceram a ajuda e foram embora dizendo que precisavam se ver de novo.
Já no elevador Rosane e Amaury comentavam:
-Mas que horror...
-Gente pervertida...
-Imagina, só... A mulher que tu ama, o homem que tu ama, envolvidos em...
-Amor - Começou Rosane -Me promete que a gente nunca vai chegar á esse ponto.
-Nunca, meu amor. Nunca. -Prometeu Amaury, abraçando a esposa e a beijando com paixão, e selando o saudável reinício de seu casamento, e deixando pra trás os pervertidos Clarice e Tato, que na verdade jamais haviam sequer estado na mesma calçada de um bar de swing, mas se divertiam muito com esse tipo de história, e tinham a esperança de afastar o rótulo de "casal perfeitinho" que era, de tudo em seu namoro, a única coisa que os incomodava de fato.

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Resenha Cinema: O Último Mestre do Ar


Foi meio no susto que ontem fui ao cinema assistir O Último Metre do Ar, adaptação do desenho animado Avatar, da Nickelodeon, que perdeu o nome por causa dos Na'vi de James Cameron.
Não sou fã de animações nem em longa metragem, imagine, então, de animações em série? Não gosto de animes, imagine, então, de um desenho norte-americano fingindo ser um anime?
Mas gosto de M. Night Shyamalan, o diretor de ascendência indiana que realizou filmaços como O Sexto Sentido, Sinais e Corpo Fechado (meu preferido na filmografia do cara.), além de bons filmes como A Vila, e o espinafrado Fim dos Tempos (Sério, ainda não sei por que detestaram tanto o filme. A sequência na casa da velha eremita quase me matou de tensão quando assisti.), e, pra mim, só tinha errado mesmo a mão em A Dama na Água.
Fui, então, munido de alguma curiosidade acadêmica ver o seu primeiro trabalho com um roteiro adaptado, e, bom... Não foi o pior dos resultados, mas também não foi dos melhores.
No filme conhecemos a realidade do mundo dos Avatares, onde algumas pessoas nascem com o dom de controlar um dos quatro elementos. Essas pessoas são chamadas de dobradores. Os dobradores vivem divididos em nações, e essas nações viviam em harmonia com o mundo e umas com as outras graças ao Avatar, uma pessoa capaz de dobrar os quatro elementos. O avatar dessa geração, contudo, desapareceu muitos anos atrás, com sua ausência, a Nação do Fogo passou a dominar o mundo através da opressão, obrigando os povos dos demais elementos a viverem econdidos ou isolados e proibindo os dobradores de usarem seus dons.
Pessoas como o povo da água do sul, tribo com uma única e inexperiente dobradora, Katara (Nikola Peltz, de atuação fraquinha), que caça com seu irmão, Sokka (Jackson Rathbone, um jovem canastrão) quando encontra um menino envolto em gelo.
Ele é Ahng (Noah Ringer, esforçado), que é um dobrador do ar, o Avatar dessa geração, e passou os últimos anos congelado. Uma vez desperto, Ahng passa a ser alvo da nação do fogo, que quer impedí-lo de usar seus poderes e reequilibrar o mundo, do príncipe renegado Zuko (Dev Patel, de Quem Quer Ser um Milionário), que precisa capturar Ahng para provar seu valor e retornar ao convívio de seu pai, o senhor do fogo Ozai (Cliff Curtis), e das esperanças de todas as nações, ao mesmo tempo em que aprende a manipular os demais elementos e a aceitar seu papel e descobrir seu lugar no mundo.
Agora, falando sério, viu quanta informação tinha nessas últimas linhas? É muita coisa pra saber e muito personagem pra conhecer em menos de duas horas de filme.
Tudo acontece rápido demais e, ainda assim, em alguns momentos, o filme se arrasta. Os personagens surgem em cena vomitam um monte de informações e somem, alianças são formadas, amores jurados, sacrifícios feitos e não tem peso nenhum pois não houve tempo para se afeiçoar aos personagens.
As atuações de alguns dos atores não ajudam, Noah Ringer se esforça, e não estraga o filme, Dev Patel faz um príncipe Zuko bem intencionado, e Shaun Toub, como o tio Iroh é a melhor coisa do filme, os demais membros do elenco, porém, especialmente Nikola Peltz e Jackson Rathbone, têm atuações que ficam entre péssimas e insossas.
O didatismo excessivo espalhado pelo filme não ajuda, e o fato de O Último Mestre do Ar querer passar uma mensagem zen de não-agressão o tranforma em um filme de ação onde a ação, muitas vezes, acaba na ameaça, tudo isso embalado em um 3-D que não diz á que veio.
Há de positivo as belas coreografias de artes marciais combinadas com a manipulação do elementos, efeitos visuais bastante competentes (O que, se não chega a ser uma novidade em termos de blockbuster hollywoodiano, certamente o é no tocante a filmografia de Shyamalan), mas no final das contas é pouco pra segurar a peteca e garantir a sequência que o filme termina louco pra encarreirar.
Uma pena, pois conforme somos bombardeados com informação, percebemos todo o potencial que O Último Mestre do Ar continha, e não deixa de dar um pouco de pena de a ideia ser mal executada.
Melhor sorte na próxima, Shyamalan.

"Ele começará a mudar corações. E é no coração que todas as guerras são vencidas."

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Surto



-Pro raio que parta essa porcaria toda!
Foi o que gritou Gregori, a plenos pulmões, sentado na mesma mesa onde estivera sentado nos últimos dez anos, dentro do cubículo onde ficava isolado dos colegas com um computador com acesso restrito à internet pelos últimos dez anos. Ele se levantou, enfurecido, arrancando o teclado do suporte articulado, e golpeando com fúria o monitor de LCD.
Gregori andou até Berenice, que trabalhava no cubículo ao lado, com passos decididos e agarrou-a pelos cabelos erguendo-a enquanto a beijava com sofreguidão e apertava-lhe as nádegas com mãos ansiosas e famintas arrancando gritos e gargalhadas dos colegas.
Quando Sérgio, o gerente, se aproximou furioso perguntando o que estava acontecendo, Gregori soltou Berenice, que caiu sentada no chão, e segurou Sérgio pelo colarinho, o empurrou até a parede, e tentou socá-lo.
Sérgio, porém, era mais alto e mais forte do que Gregori, e começou a gritar pela segurança enquanto se protegia dos golpes.
Gregori segurou, então, os pulsos de Sérgio, e o mordeu no nariz, arrancando-lhe um naco de pele e fazendo jorrar sangue.
Sérgio deu um grito agudo e caiu no chão, sendo amparado por outros funcionários, atônitos.
Os seguranças chegaram, viram o pandemônio instaurado e sacaram seus cassetetes.
Olharam para Gregori, avaliando-o, escolhendo que rumo de ação tomar.
Gregori, com uma expressão furiosa no rosto sujo do sangue de Sérgio, apanhou um grampeador em uma mesa próxima, e agarrou dona Zorayde, a senhora que servia o café e estava encolhida junto à uma parede próxima.
-Cheguem mais perto e essa vaca come grampo, putinhas!
Pois é... Ninguém entendeu por que Gregori usara uma fala de filme americano, mas enfim, os seguranças entenderam o recado, se afastaram dois passos, erguendo as mãos como que pedindo calma ao colega ensandecido.
Gregori ordenou que eles abrissem caminho, ao que eles obedeceram, e foi andando, com o grampeador junto ao pescoço de dona Zorayde, em direção à saída.
-Se me seguirem eu mato ela, entenderam? Mato!
Ninguém o seguiu, talvez porque não se perguntaram como é que se mata alguém com um grampeador.
Gregori chegou ao elevador, ficou ali, ameaçando dona Zorayde com o grampeador, as pessoas saíam das outras salas e o olhavam curiosas ou apavoradas ou ambos.
Ouviu o "ping" que indicava a abertura das portas, e entrou de costas no elevador, soltando dona Zorayde antes.
Gargalhou quando as portas se fechavam.
Virou-se e percebeu que a ascensorista, Silvana, e mais dois sujeitos de gravata o olhavam com olhos esbugalhados.
Deu um grito primevo enquanto agarrava os dois pelas gravatas e os estrangulava. Ao mesmo tempo, com o pé, prensou a cabeça de Silvana contra o painel do elevador. As calças sociais que usava, porém, não garantiam a mobilidade necessária para aquela manobra, e Gregori se desequilibrou, a única coisa que impediu sua queda foi a porta do elevador, mas apenas por breves segundos.
No andar abaixo a porta do elevador se abriu, e Gregori caiu pela porta afora, estabacando-se violentamente no chão, para só então soltar as gravatas que segurava com fúria.
Levantou-se com dificuldade, dois sujeitos vieram ampará-lo, mas Gregori não queria ajuda, desvencilhou-se dos dois com um movimento amplo, e correu para dentro de um escritório, lá, esmurrou no queixo uma velha de tailleur, deu uma voadora no peito do homem da limpeza, e roubou sua vassoura.
Usou a vassoura para tentar quebrar o vidro de uma janela enquanto gritava "Eu estou louco feito o diabo e não vou tolerar mais nada!", é, Gregori devia ver muitos filmes.
Não conseguiu quebrar a janela, de qualquer forma, era uma vassoura de alumínio contra uma janela de vidro temperado.
Os seguranças chegaram, Sérgio, banhado no sangue que escorria abundantemente de seu nariz, também, e Berenice.
Pararam a pouco mais de um metro de Gregori quando ele se virou brandindo a vassoura como se fosse uma alabarda.
-Sai! Sai, que senão vai ter! - Ameaçou ele, sem especificar muito bem o que ia ter.
-Calma, amigão -Disseram os seguranças.
-Qual o problema, Gregori? - Perguntou Sérgio.
-Eu te amo - Declarou Berenice.
Um dos seguranças, agindo rápido, agarrou a vassoura, enquanto os outros dois correram e derrubaram Gregori contendo-o no chão.
Tiveram que algemá-lo e enrolar seus tornozelos com fita durex para que ele parasse de chutar, chamaram a polícia, que, precebendo o estado de nervos de Gregori, chamaram uma ambulância. Ele foi retirado do prédio sedado e amarrado à uma maca, não recebeu visitas de ninguém do trabalho, exceto de Berenice, que, aos 43 anos de idade e solteira, já estava toda animada com a ideia de casar com o Gregori, mesmo que o "relacionamento" com o colega tivesse surgido de um colapso nervoso.
Ninguém soube o motivo do acesso de Gregori, teve quem apostasse que havia sido por causa de um coração partido, houve quem arriscasse em uma condição psicológica pré-existente, e até quem achou que era "endemoninhamento", mas estavam todos errados, e também um pouco certos.
Na verdade, Gregori foi acometido por uma combinação de males. Ele estava estagnado em um emprego que odiava havia mais de uma década, encontrara mulheres ideais várias vezes ao longo da vida, mas jamais fora o homem ideal de nenhuma delas, vivia sob a pressão de ser educado, bem sucedido e másculo como vivem todos os homens modernos, e de ser vítima de um sistema onde estava na base da pirâmide, o que significava ser explorado por gente desde o Sérgio, seu chefe, até os políticos que comandavam o país.
Foi a súbita compreensão de que essa situação não iria mudar, e de saber que ele não podia fazer nada, que levou Gregori a enlouquecer. Foi perceber que ele é, sim, o maior responsável pela própria situação e pelo status quo que mantém, entra ano, sai ano, sua vida estagnada.
Gregori surtou ao assumir responsabilidade pela própria tragédia. Em outubro tem eleições. Não seja como o Gregori, assuma sua responsabilidade antes do surto.

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Satisfação


Há quem diga que a vida é uma eterna guerra dos sexos. Tolice rematada, claro. Guerra requer dois em pé de igualdade, e, na luta entre os sexos, os homens têm que comer muito arroz com feijão pra chegar perto do poderio feminino.
Claro, eu admito, os homens, na maior parte dos casos, são fisicamente mais aptos para a violência, os homens são brutos e sanguíneos, as mulheres são doces e comedidas, mas a verdade é que as mulheres lutam em frentes que os representantes do sexo masculino são incapazes de compreender pois, mesmo na guerra, pra tudo há limite.
Os homens convivem com essa falsa sensação de domínio global por que as mulheres deixam, no final das contas, todas as mulheres são capazes de apertar o botão vermelho e arrasar o seu alvo.
Basta o deslize ou a afronta correta, e todas elas estarão prontas para colocar de lado a doçura e a delicadeza em nome da completa aniquilação do inimigo.
Foi o caso da Sandrinha, uma moça bonita, delicada, pequenininha, que durante quatro meses foi cortejada pelo Paulão. O Paulão era, na falta de palavra melhor, o garanhão da repartição.
Trabalhava a pouco mais de um ano na empresa e, nas suas próprias palavras, passara o rodo no setor de RH e no de telefonia. As recepcionistas, ele conhecia, no sentido bíblico, menos de uma semana depois de ser admitido. também estivera rapidamente envolvido com uma das contadoras e, dizia-se, até com uma das diretoras.
Era bonito, o Paulão, expansivo, era alto e forte, tinha cabelos negros ondulados e uma tez morena que lhe conferiam uma aparência de amante latino que flutuava entre o atraente e o brega, mas fazia sucesso com as mulheres.
Exceto com a Sandrinha. A Sandrinha, que trabalhava no setor de vendas, onde era a única mulher, e que já havia tido sua cota de homens errados e decidira sossegar por um tempo enquanto esperava que o homem certo aparecesse, ignorava solenemente Paulão e seu aspecto de jovem Sidney Magal.
Não importava quantas vezes o Paulão se debruçasse charmosamente sobre a sua mesa perguntando se estava tudo bem com ela, não importava quantas trufas de cereja com licor ele largasse na sua mesa após o almoço ou quantas vezes ele abrisse os três primeiros botões de sua camisa deixando seu peito peludo e musculoso á mostra, Sandrinha não parecia se impressionar.
Paulão, em um primeiro momento, gostou muito daquilo. Era um desafio, geralmente Paulão estalava os dedos e as moças já estavam lhe entregando as chaves de sua gaveta de roupas íntimas, Sandrinha, porém, parecia uma rocha. Inabalável, inacessível, distante.
Paulão passou á investir com mais afinco na conquista de Sandrinha.
Flores, DVDs de filmes românticos, convites abertos, e não mais velados, para sair.
Nada, porém, parecia romper a muralha de distância de Sandrinha.
Paulão começou a ficar nervoso, as mulheres passaram a olhá-lo como se fosse um homem comum. Seus colegas e amigos passaram a fazer piadas quanto á suas habilidades de conquistador, até uma bolsa de apostas surgiu na repartição:
Quanto tempo Paulão levaria para comer a Sandrinha?
Todo o tempo do mundo estava liderando a bolsa interna da empresa.
Paulão, com seu tolo orgulho masculino ferido tomou uma atitude deseperada, e, como toda a atitude desesperada foi infantil, idiota e mal-pensada.
Paulão comprou uma daquelas calcinhas de vovó beges e pouco sexies tamanho 34, e levou pra empresa.
Na hora do almoço, ele perguntou onde Sandrinha iria almoçar, e perguntou se ela podia trazer pra ele uma trufa quando voltasse, ao que ela, educada que era, assentiu.
Na volta da pausa, Sandrinha, inocente que estava diante das maquinações de Paulão, deixou a trufa na mesa do colega diante de todos, ele agradeceu acariciando a mão de Sandrinha com uma insuspeita desfaçatez.
Assim que ela se dirigiu ao banheiro pra escovar os dentes, o calhorda, diante dos olhares curiosos dos demais, sacou da gaveta a calcinha e sorriu com cara de quem diz "O que eu posso fazer?", arrancando gargalhadas e congratulações de todos e recuperando seu tolo e frágil amor-próprio.
A questão foi que, eventualmente, como era esperado, Sandrinha ficou sabendo da trama que Paulão criara envolvendo-a, e, claro, não ficou nem um pouco satisfeita.
Pensou em subir nos tamancos e fazer uma cena na frente de todos, pensou, também em ir até a mesa diretora e fazer uma queixa formal quanto ao comportamento de Paulão, ou, até mesmo, abrir um processo judicial contra o pulha. Por fim, porém, escolheu outro curso de ação.
Na primeira roda de conversa da semana seguinte, em meio às demais colegas, quando perguntada sobre o Paulão, não titubeou:
-Ah, não foi ruim. Pena que foi tão rápido e uma vezinha só.
Outro dia, na fila do cafezinho, quando falavam sobre vexames, ela disparou:
-Ah, não, vexame, mesmo foi quando o Paulão e eu saímos e ele, na hora de sair do restaurante deixa cair o frasco de viagra.
Naquela semana inteira, Sandrinha entrou em mais rodas de conversa do que estivera desde que começara a trabalhar na empresa, em nenhum momento desmentiu a farsa de Paulão, apenas acrescentou detalhes.
"O problema, mesmo, era o cheiro, Avanço misturado com budum é pra matar.", ou "Tão bonitinho, parecia uma minhoquinha.", ou ainda "Eu achei que ele tinha terminado, mas ele tinha só parado um minutinho pra soltar um pum." foram ouvidos aos quatro cantos da repartição.
Claro, houveram mulheres que defenderam Paulão, houveram homens que não acreditaram, mas a semente do fiasco fora plantada por Sandrinha, e ela germinava fácil.
Paulão passou a ouvir risinhos maliciosos atrás de si, via sorrisos irônicos quando começava a falar de como havia sido fantástica sua conquista do final de semana. E, sendo inseguro como era, Paulão não suportou a pressão, e acabou pedindo demissão, desaparecendo da vida de todos.
Sandrinha não teve problemas, muitas mulheres da empresa haviam sido conquistadas pela aparência e pela lábia de Paulão, ela era apenas uma delas, e, secretamente, tinha uma satisfação que nenhuma das outras conhecia.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Linha Cruzada



A culpa, ou mérito, dependendo do tipo de pessoa que tu é, foi da companhia telefônica.
Não fosse pela incompetência da companhia telefônica, nada daquilo teria acontecido.
Dá pra acreditar? Linha cruzada.
O telefone da irmã da Danielle por alguma razão, durante naquela noite, tocava na casa do Afrânio.
-Alô.
-Quem tá falando?
-Pra quem foi que tu ligou?
Aquele papo de "quem tá falando" na sua própria casa irritava bastante o Afrânio.
-Pra Suzana. -A voz do outro lado da linha respondeu, cheia de razão.
-Não é aqui. -Respondeu Afrânio, dando o assunto por encerrado e desligando.
Mas, claro, como Danielle tinha acertado o número, ela ligou de novo, e falou, outra vez, com o Afrânio.
-Alô.
-Suzi?
-Não, aqui não tem nenhuma Suzi.
-Mas que inferno do cacete!
Afrânio desligou, mas já ficou parado ao lado do telefone. Atendeu antes que o toque se completasse.
-Alô.
-Ah, pelo amor de Deus, cacete... Qual teu número?
-É esse pra onde tu tá ligando, moça.
-Não, não é, eu tô ligando 30288028 porcaria, que é o número da minha irmã, Suzana!
-Olha, se tu discou esse número nas três vezes, sem erro, então pode ser problema com a linha. Tenta o celular dela.
-É, vou tentar. Obrigada.
-Tudo bem.
Afrânio desligou, pensando no ridículo da situação. Contaria aquilo no trabalho no dia seguinte, na pausa pro cafezinho. Quando seus colegas xaropes começassem a contar causos onde alardeavam suas peripécias sexuais ele contaria um caso de linha cruzada... Patético. Talvez inventasse que as coisas foram mais além.
"É, ela ligou errado de novo, aí eu disse que a gente já tava quase íntimo, e deveríamos nos encontrar, aí eu fui com ela pra um motel e...".
Não.
Não era o tipo do Afrânio. Ele nem se sentiria bem inventando uma coisa daquelas, e nem teria coragem de ficar alardeando mesmo se fosse verdade.
Afrânio jantou com seu cachorro, como fazia sempre, assistiu algumas séries de TV e o noticiário, viu um pedaço de um filme que já vira mil vezes até uma parte que lhe trazia boas lembranças, depois jogou video-game. God of War Collection. Pensou em jogar God of War III, mas refreou-se. Precisava terminar os outros dois, antes.
Saiu com seu cachorro, e depois voltou pra casa, onde adormeceu bebendo coca-cola e assistindo Clube dos Cinco, pescado ao acaso na TV á cabo.
Devia ser quase meia-noite quando o telefone tocou. Afrânio acordou sobressaltado, catando o telefone com dificuldade.
-Alô?
-Oi, a Suzana tá aí?
-Pelo amor de-
-Não, não, brincadeira, olha, eu só queria me desculpar pela grosseria mais cedo, tá? É que a minha irmã tá doente, e eu tô tentando respeitar a privacidade dela, então não me enfio na casa dela, mas fico aflita pra saber notícias... Então...
-Não, não... Não tem problema, eu entendo. Conseguiu falar com ela?
-Sim, consegui, sim.
-E tudo bem com ela?
-Tudo, tudo bem, obrigada.
-Que bom...
-É, então, bom, desculpa de novo, e obrigada pela paciência. Boa noite e desculpa te atrapalhar.
Afrânio estava desligando quando foi tomado por um impulso.
-Ah! Alô!
-Sim?
-Qual teu nome?
Ela titubeou do outro lado da linha, hesitando, claro, em se apresentar pra um completo estranho que sabia o número de telefone da sua irmã.
-Hã... Danielle. E o teu?
Foi Afrânio quem hesitou dessa vez. "Afrânio". Sério. O que a mãe dele estava pensando?
-É... Hã... Afrânio.
-Afrânio?
-É... Eu sei.
-Não, não. É bonito. Era o nome do meu bisavô. Bom, boa noite, então, Afrânio. E desculpa outra vez.
-Boa noite, Danielle.
Afrânio gostou da voz da Danielle. Era uma voz bonita. "Deve ser gorda, velha e feia.", pensou. Ainda assim, tinha uma bela voz e parecia gente boa, se preocupava com a irmã e foi educada o suficiente pra pedir desculpas pela rudeza de antes.
Afrânio podia se ver apaixonado por uma mulher que tinha essas qualidades. Mas poderia uma mulher de tais predicados se apaixonar por Afrânio? Poderia, qualquer mulher, se apaixonar por Afrânio? Com aquele nome? Nutrindo os hábitos juvenis que ele nutria? Inseguro como ele era? Com a sua aparência?
Dormiu pensando a respeito.
No dia seguinte trabalhou, foi à aula, levou seu cachorro pra esticar as pernas. Quis ligar pra Danielle. Afrânio se perguntou por que ficara tão fixado por aquela voz ao telefone? A verdade era uma só. Afrânio era tão carente que se apaixonava por qualquer mulher que lhe desse um pingo de atenção, e era tão tímido que não podia ignorar as raras oportunidades que tinha de conversar com uma mulher sem precisar "xavecar", a conversa com Danielle apresentara os dois fatores.
Seria ela solteira? Mesmo se fosse, o que Afrânio faria? Ligaria pra ela e diria "Oi, é o Afrânio, quer ir ao cinema qualquer dia desses?", não, Afrânio não se imaginava fazendo isso... E se ela dissesse que não? Que não queria?
Ou pior! E se ela dissesse que sim?
E ele tivesse que ir ao encontro às cegas?
Ou pior ainda! E se ela quisesse conversar antes? E perguntasse como ele era? E ele respondesse um metro e oitenta e cinco de altura, cabelos pretos, olhos castanhos, uns noventa e cinco quilos.
E ela perguntaria "noventa e cinco quilos? Tu malhas?", e ele teria que responder que não, que estava acima do peso, mesmo. E ela iria querer saber se ele era um gordo, e ele admitiria que sim, envergonhado. E ela iria querer saber "Gordo como quem? Como o Tom Hanks no começo de O Náufrago, como o Russel Crowe em Intrigas de Estado ou como o John Goodman?", e ele riria, nervoso e responderia que tinha pensado no Phillip Seymour Hoffman, só que sem o charme, e ela diria que estava ocupada naquela estação mas que ele podia tentar de novo no outono.
Afrânio tinha medo da rejeição. Era um covarde com relação á isso. Não saberia lidar com uma rejeição direta. Ficou encarando o telefone e pensando se deveria ligar, ou não.
Longe dali, em outro bairro, Danielle pensava na linha cruzada da noite anterior. Gostara da voz do sujeito do outro lado da linha. "Afrânio"... Parecia um bom homem. Tinha uma voz paciente, era educado, soube ser firme quando ela dera uma de maluca por causa do nervosismo e da aflição. Tentou imaginar como seria um homem com aquela voz... Talvez parecesse um pouco com o Russel Crowe, em Mestre dos Mares. Pensou que seria bom sair com alguém, estava sozinha já havia alguns meses, devia ligar pra ele?
Não... Já ligara uma vez se desculpando, se ele era livre e desimpedido, entendera o recado, a bola agora estava com ele.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Resenha DVD: Um Olhar do Paraíso


Fui à locadora no sábado depois do trabalho e saí procurando algo pra assistir, foi quase por acaso que esbarrei com Um Olhar do Paraíso, filme de Peter Jackson que adapta o romance Uma Vida Interrompida e ficou pouco tempo em cartaz nos cinemas de Porto Alegre.
Sou fã de Peter Jackson, adorei O Senhor dos Anéis (E alguém não adorou?), achei seu King-Kong uma ótima homenagem ao filme original, e até nutria uma velada simpatia por Os Espíritos e Almas Gêmeas, filmes menores do diretor, além de agradecê-lo muito por empenhar uma grana em Distrito 9, me pareceu, então, um caminho natural dar uma conferida na nova adaptação literária do diretor kiwi, que tinha, inclusive, rendido uma indicação ao Oscar para o ator Stanley Tucci.
Bueno, na mesma noite conferi a história de Susie Salmon (Saoirse Ronan, ótima), uma menina de quatorze anos, bastante normal, que, em dezembro de 1973 foi violentada, assassinada e retalhada por um vizinho, mas que, ao invés de ir para o Céu ou para o Inferno, ficou presa em um mundo intermediário de onde podia observar o modo como a tragédia de sua morte afetou sua família, em especial seu pai (Mark Whalberg, limitado mas bem intencionado.) e sua mãe (Rachel Weizs, no piloto automático.), ao mesmo tempo em que esperava desesperadamente que seu assassino, o senhor Harvey (Tucci, muito bem.), fosse descoberto.
Ao mesmo tempo, Susie ainda luta para se ambientar ao seu purgatório particular, de onde só poderá sair quando estiver pronta.
Tinha tudo pra ser um belo filme. Se fosse tratado com franqueza e, quem sabe, uma pequena dose de acidez, Um Olhar do Paraíso poderia ser um tremendo filme sobrenatural, ou, quem sabe, um bom e pesado drama com toques de fantasia.
Porém, pesou a mão de Peter Jackson, que em busca de algum tipo de apoteose visual exagera nos efeitos especiais (O "purgatório" de Susie parece um parque temático visitado durante uma viagem no ácido ou algo do tipo.), e trata a dor da família de Susie como coadjuvante, dando pouca, ou ás vezes nenhuma voz, aos personagens que podiam fazer o público se identificar mais com a trama.
Claro, talvez o filme de Jackson tenha sido prejudicado pela substituição de Ryan Gosling por Whalberg no papel de pai, mas isso não justifica, sozinho, ineficiência do roteiro, que não cria tensão nos momentos de suspense (Exceto na sequência sob o campo de milho, aquela é bem tensa.), nem ternura nos momentos que deveriam ser belos.
No final das contas, Um Olhar do Paraíso não engrena, se arrasta em certos momentos, e não consegue nem sequer ser um espetáculo visual, pois os efeitos não chema a empolgar. Melhor sorte na próxima vez, Peter. Quem sabe com O Hobbit?

"Meu assassino era um homem da nossa vizinhança. Eu tirei sua foto, uma vez; Ele surgiu do nada e arruinou a foto. Ele arruinou uma porção de coisas."

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Rapidinhas do Capita bi-campeão da América.


-Vou te meter a mão na cara.
-Tu e mais quantos, bichona?
Era assim que conversavam o Marcos e o Sérgio. Aos solavancos. As pessoas ao redor ficavam escandalizadas, chegavam a se afastar alguns passos com medo de levar algum rescaldo da inevitável briga.
Mas não brigavam. Eram amigos. Muito. Íntimos. Sempre acabavam discutindo, as discussões geralmente quase acabavam em pancadaria. O resto da turma que frequentavam, em mais de uma oportunidade chegou a cogitar a ideia de não convidar os dois pros mesmos programas, mas foi inútil, um ligava pro outro.
-Alô.
-No teu rabo, viado.
-Que tu quer, trouxa?
-Tá ocupado?
-Tô, tô comendo a tua irmã.
-Lerdo, a tua saiu cedo daqui. Vamo no bar com a gurizada?
-Vamo.
Quem se escandalizava não sabia que, entre amigos de verdade como eram os dois, o peso das ofensas equivale ao grau de amizade.
O problema foi quando Sérgio se apaixonou pela Dora, namorada do Marcos. Apaixonou mesmo, de não poder mais andar com o casal por causa da dor.
Sérgio conhecera Dora antes de Marcos, mas o segundo fora mais rápido na hora da paquera e ficara com ela. Após semanas evitando o casal foi confrontado pelo amigo e admitiu explicando a situação.
-Olha, mané... Tô caído pela tua namorada desde que conheci ela. Sério. Acho ela tudo de bom, o único defeito dela foi cair na trova de uma bichona enrustida feito tu.
-Escuta aqui, franchona, se tu acha que por isso vai parar de andar com a gurizada e de ouvir meus desaforos só por causa disso é ainda mais burro que parece. Vai falar com ela, deixa ela decidir entre o homem e o espantalho.
A moça, incrédula, ouviu d que ambos gostavam dela, e que ela podia escolher com quem queria ficar. Dora explicou, delicadamente, que não se sentira atraída por Sérgio, e que o considerava apenas um amigo e nada mais. Sérgio foi embora com o coração em pedaços.
No dia seguinte Marcos apareceu em sua casa.
-Olha, ô viado. Não tô mais com a Dora. Terminamos. Vai ter churrasco do pessoal hoje e eles querem que tu vá apesar dessa tua cara deixar todo mundo com ânsia de vômito.
-Mas... Imbecil, tu terminou com a Dora por minha causa?
-Não... Bom, mais ou menos... Eu sempre preferi comer a tua mãe, mesmo.
Entre amigos vale tudo. Até colocar a mãe no meio.
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Parecia uma rocha. Constante, não oscilava. Opiniões, disposições, tudo sempre no lugar, pra mudar levava tempo e custava latim e saliva, montes de latim e de saliva, e ainda assim, não era garantia de que mudaria. Distraído ao extremo, ás vezes parecia não ter medo de nada. Só parecia.
Claro que ás vezes ele tinha medo. Muito. Não de fantasmas, violência urbana ou das contas do fim do mês, até por que, na opinião dele, a primeira coisa não existe, a segunda pode acontecer, ou não, e a terceira é inevitável.
O que apavora ele, o que de fato enche o coração dele de terror, é ela perceber que ele é um rematado xaropão, e que tudo o que, á distância, pode ser confundido com charme, de perto não passariam de defeitos.
Perímetro de segurança, ele pensa o tempo todo. Um perímetro de segurança vai manter as pessoas á uma distância segura. E naqueles momentos em que ele fica parado olhando pra ela pensando no quanto gostaria de beijá-la, uma daquelas cornetas antigas soa em seu subconsciente:
Arrooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooooga!
-Perímetro comprometido! Perímetro comprometido!
E ele se afasta de novo, louco de medo que ela tenha reparado.
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TRADUÇÃO:
Ela saiu do trabalho e ele estava lá, conforme prometera, mas parecia abatido. Se aproximou dela cabisbaixo e simulou um sorriso perguntando se estava pronta.
-Sim, tô pronta, tudo bem contigo? -Ela perguntou.
Ele maneou a cabeça e começou:
-Ah... Tudo. Tô só um pouco cansado. O dia lá na empresa foi meio pesado, corrido. Mas tá tudo bem. Se tivesse opção eu confesso que iria querer chegar em casa, tomar banho, comer uma coisinha rápida e ir pra baixo das cobertas ver um filme enquanto faço cafuné e uma massagem em ti, mas a gente já tinha combinado de ir jantar com a Larissa e o Jorge, então, vamos lá, eles devem estar esperando a gente já...
Mas na verdade ele quis dizer:
-Ah... claro que não tem nada bem. Não viu minha cara? Fiz cagada no trabalho logo cedo e passei o dia inteiro tendo que consertar. Foda. Ainda pensei que tava tranquilo, ia chegar em casa, tomar um banho, ver a Série B enquanto tu fazia a janta e depois iria me deitar e tentar te convencer a dar pra mim com um cafuné de três segundos e uma massagem de meio minuto, aí lembrei que tu tinha marcado essa porcaria de jantar com a vagaba da Larissa e o mané do Jorge, então, vamo lá...

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Rapidinhas do Capita bi-campeão da América.


Foi com as unhas roídas, a voz rouca e cara de quem não dormiu direito que eu me acordei hoje de manhã sabendo que era campeão da Libertadores da América.
De novo.
Fiquei me perguntando, enquanto rumava para o banheiro com cara de zumbi e gosto de cabo de guarda-chuva na boca, sentindo a dor abdominal de quem passou setenta e três minutos com os músculos da barriga contraídos de pânico, se valia a pena tanta dor e tanta tensão por causa de uma coisa tão besta quanto um esporte.
Se valia a pena ficar sentado no sofá feito um lunático, em pleno ano de eleições, agradecendo ao Rafael Sóbis por ter cutucado a bola cruzada pelo Kléber com o bico da chuteira, ao Damião por ser sem noção o suficiente pra dar um chutaço em cima do goleiro adversário, ao Giuliano por desconsiderar suficientemente o perigo pra aplicar um vai-cavalo no zagueiro-boxeador Reynoso antes de cavar a bola por cima do arqueiro mexicano...
A conclusão á que cheguei quando cruzei com meu vizinho gremista de cara amarrada no corredor do prédio?
Vale horrores á pena.
Saudações Coloradas.
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Quando Soraia acordou naquela manhã sentindo ainda os olhos inchados, não de sono, mas de tanto chorar na noite anterior, ela decidiu, enquanto escovava os cabelos, que jamais amaria homem algum novamente. Não depois do que o cretino do Heitor fizera a ela e ao seu coração.
Ela não abriria mão do amor, acreditava que uma pessoa que não amava ou era amada, na prática, não existia. Talvez enveredasse pelo caminho do homossexualismo, quem sabe não encontrava uma mulher que despertasse seus sentimentos?
Torceu o nariz quando pensou nisso. Ela não tinha nem sequer sombra de tendência gay em seu corpo. Se imaginar acariciando outra mulher era perspectiva nada agradável para Soraia, enfim, ela não queria mais saber de homens. Abdicaria dos homens, se absteria de homens.
Talvez comprasse um gato. Ou um cachorro, para facilitar a transição.
Vestiu-se e saiu para almoçar.
No restaurante, um sujeito bem apessoado sentado cerca de três mesas adiante da sua a encarava com um sorriso discreto, flertando de maneira charmosa.
Soraia, á despeito de sua recente decisão, achou-o atraente.
Ele se levantou da mesa vindo em sua direção e, surpresa, Soraia viu que era baixinho. Não devia medir mais de um metro e sessenta.
Perguntou se podia sentar com ela. Ela sorriu assentindo.
"Perfeito.", pensou Soraia, enquanto ele sentava, abriria mão dos homens, sim.
Mas faria isso aos poucos.
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TRADUÇÃO:
Gustavo parou perto de Joana, segurou as mãos dela entre as suas e disse:
-Olha, Jô... Eu preciso de um tempo. Tô confuso. Tem uma moça no trabalho, a Clarice, que meio que... Sei lá. Mexe comigo, sabe? E, tipo, se ela mexe comigo á ponto de me deixar confuso, é por que alguma coisa na nossa relação não tá certa. Então, apesar de eu te amar muito, prezar muito a nossa relação, talvez fosse um bom momento pra gente desanuviar as coisas, sair com os amigos, pensar no que queremos pro nosso futuro como casal, e depois, retomar nossa relação com mais segurança e sem ressentimentos.
Mas na verdade ele quis dizer:
-Olha, Jô... Tem uma biscate lá no trampo que quer dar pra mim. Eu sei que ela, não só dá no primeiro encontro, como ainda topa fazer coisas que tu iria achar nojentas.
Então, já que eu quero aproveitar a chance, mas eu sei que essa mina é a maior piranha, e não quero acabar meu namoro seguro contigo por causa dela, seria um bom momento pra tu sair com aquelas tuas amigas malas por uns dias e eu poder dar essa bimbada garantida com a tua permissão, e depois voltar covardemente como se nada tivesse acontecido.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Resenha Cinema: Os Mercenários


Não é de hoje que eu vinha dizendo que, se havia um filme de macho prestes á ser lançado no cinema, esse filme de macho era Os Mercenários.
Se você é homem e quer honrar sua masculinidades, se quer gritar, babar, bater no peito e gritar que é muito macho, antes de fazer isso deve ir até o cineplex mais próximo e encarar os 103 minutos de declaração de amor, amor, não, que amor é coisa de frutinha, a declaração de camaradagem incondicional ao cinema porrada que é Os Mercenários.
Dirigido, produzido, co-escrito e estrelado por Sylvester Stallone(ótimo astro de ação, péssimo piadista.), Os Mercenários mostra Barney Ross (Stallone) e seu grupo de soldados da fortuna, composto por Lee (Jason Statham), Ying (Jet Li), Gunnar (Dolph Lundgren), Hale (Terry Crews) e Toll (O lutador de MMA Randy Couture), que são contatados pelo misterioso senhor Church (Bruce Willis) para viajar até uma pequena ilha na américa central e eliminar o ditador local, General Garza ( David Zayas).
Antes de se decidir por aceitar ou rejeitar a missão, Barney e Lee vão até a ilha para realizar o reconhecimento do local, onde conhecem Sandra (Gisele Itié, falando inglês melhor do que o Schwarzenegger), jovem local que é seu contato.
Após serem descobertos eles têm que fugir, e conseguem, mas Sandra recusa-se a escapar com eles, ficando á mercê de Garza e seu financiador, o ex-agente da cia Munroe (Eric Roberts, canatra como de hábito.).
O sacrifício de Sandra toca o coração de Barney, que após conversar com seu amigo Tool (Mickey Rourke, gênio.), percebe que tem uma chance de redenção após tantos anos vivendo de assassinato e guerra.
Tá aí a premissa, basicona, de Os Mercenários. Óbvio que não parece uma grande obra cinematográfica, e nem é pra ser, é um filme que evoca a aura do cinema de ação dos anos oitenta com uma premissa básica e recheada de clichês do gênero que não é mais senão uma desculpa para todas as sequências de ação sensacionais que recheiam o filme, a diferença de outros filmes recentes que tentavam se apoiar na mesma muleta é que, ao contrário dos G. I. Joe e Dragonball evolution da vida, as sequências de ação de Os Mercenários são realmente boas e funcionam.
Nem podia ser diferente se levarmos em conta que o diretor do filme é um dos papas do gênero, e já havia mostrado em Rocky Balboa e Rambo IV que não perdera a mão.
O elenco formado por cascas-grossas de toda a espécie (Conta ainda com Steve Austin, astro da luta livre e Gary Daniels, campeão de Kick-Boxing)não tem pontos muito altos em termos de atuação, ainda assim, se destaca Rourke, que aparece bem nas suas cenas, Stallone faz o trabalho de sempre, mais falante do que em Rambo, mas menos carismático do que em Rocky, Statham não estraga, e Jet Li tem a fala mais engraçada do filme, quando argumenta por que precisa de um aumento. De qualquer forma, mesmo que o filme fosse mudo, ainda valeria a pena assistir nem que fosse apenas pela excelente sequência de combates simultâneos no sub-solo do palácio de Garza, ou pelo prazer oitentista de ver uma cena protagonizada por Stallone, Willis e Arnold Schwarzenegger, interpretando um rival de Ross.
Não é um filme que vá agradar a platéia feminina, mas pode ser a sua chance de se vingar se tiver sido obrigado a assistir Ele Não Está Tão Afim de Você, Sex and the City 2, ou algum dos filmes de vampiremos da saga Crepúsculo.
Que venha uma sequência com Steven Seagal, Chuck Norris e Van Damme!
Os Mercenários é produto de macho, e se você não gostou, ou é guria ou é frozô!

"Sabe, não é fácil ser seu amigo."

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Resenha DVD: Capitalismo: Uma História de Amor


Desde que assisti Roger & Eu, pescado ao acaso durante uma madrugada insône de TV vários anos atrás, eu me tornei fã de Michael Moore.
Li alguns dos livros do sujeito (Stupid White Man, e Cara Cadê meu País? estão na minha estante.), e sigo fielmente seus documentários.
Não sou ingênuo á ponto de acreditar que o sujeito faz "cinema verdade". Eu sei que Michael Moore edita seus filmes com extremo cuidado e joga com as emoções da platéia. Sei que seu "cinema verdade" é tão cinema quanto cinema pode ser, baseado nos cuidados da produção, da trilha e montagem.
Michael Moore é panfletário, também. É militante, mesmo. Mas, talvez pela saída de George W. Bush da Casa Branca, Moore, nesse seu último trabalho, parece um pouco mais leve, ainda mais do que esteve no bom S.O.S. Saúde.
Capitalismo: Uma História de Amor mostra como o sistema econômico que tornou os EUA a maior potência do planeta demorou pra cobrar seu preço mas o cobrou com juros e correção monetária.
O filme de Moore é um bem fundamentado documento de como a América vergou ante o peso do corporativismo, de como o povo dos EUA foi colocado em segundo plano pelas classes dominantes e no quanto as pessoas estão dispostas á sacrificar em nome de uma margem de lucros maior.
Como em seus filmes anteriores o cineasta mistura elementos reais e ficcionais, embasamento histórico e retórica pura, não para mostrar um cenário amplo e deixar que o espectador tire suas conclusões, mas contando uma história onde ele aponta acusadoramente quem são os mocinhos e quem são os vilões.
É impossível não ter vontade de esganar Alan Greenspan, Bernie Madoff, Regan, Bush Jr., e outros "vilões" do filme quando somos confrontados com o resultado que o sistema gera, como as pobres famílias sendo despejadas de suas casas.
Pra muita gente esse é o principal defeito da filmografia de Moore, o fato de o cineasta manipular de forma bastante clara a mensagem que quer que seu filme passe. Quem não se importa de ser conduzido, ou consegue flutuar acima da correnteza de argumentos do diretor sem dúvida irá aproveitar o passeio.
Mais do que câmeras fechando nos olhos marejados de uma senhora de meia idade que tem que limpar a casa pra entregá-la ao banco que lhe tomou a propriedade Capitalismo: Uma História de Amor é um filme divertido, bem construído, e que ainda oferece ao espectador no que pensar.
Michael Moore pode ser panfletário, militante, manipulador e o que mais quiserem chamar ele, mas faz cinema de qualidade, e, quando vou ao cinema, é isso que eu quero ver.
Se no futuro ele dirigir um documentário que achincalha os niilistas misantrópicos talvez eu me sinta atingido e o deteste, até lá, sigo sendo fã de Moore e seu cinema "verdade".

"Isso é o capitalismo. Um sistema de dar e retirar... Normalmente retirar."

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Testosterona


Houve um tempo, quando os anos oitenta se transformavam nos noventa, em que a vida era boa.
Era uma época em que criança era criança e agia feito criança, em que os adultos trabalhavam, e agiam feito adultos. Eu lembro que eles se queixavam bastante da inflação, dos milicos, e depois do Sarney, e depois do Collor.
Não existia a TV á cabo, não existia internet e até era bom, por que com a inflação que tínhamos na época, sabe Deus quanto pagaríamos mensalmente por uma sky, net ou banda larga.
Mas nem tudo era ruim, havia bons programas brasileiros na TV. Sério, não me refiro a novelas, embora, naquela época, tenham havido algumas que eram boas, ou, pelo menos, pareciam boas. Havia seriados como TV Pirata e Armação Ilimitada que eram tão divertidos pra nós, na época, como Lost e Heroes são pra rapaziada de hoje.
Video cassete era um luxo ao que poucas pessoas tinham acesso, pelo menos no começo, e cinema era coisa pra casais de namorados, então se via filmes na TV aberta, mesmo, em especial na Globo.
Dia de filme na TV era segunda-feira, Tela Quente (que permanece até hoje, embora passando filmes que todo mundo já viu trocentas vezes.), que passava os filmes inéditos mais maneiros.
Foi como um legítimo filho dos anos oitenta e noventa que eu acompanhei as aventuras dos meus heróis cinematográficos preferidos na época da Tela Quente, todos os sujeitos durões que estrelavam filmes recheados de explosões ou pancadaria ou ambos e eram, claro, regados com muita testosterona.
Sylvester Stallone, com Rambo II (O primeiro Rambo passou no SBT no mesmo dia em que o segundo ia passar na Globo, concorrência total!) e Rocky 3, Arnold Schwarzenegger com Comando Para Matar, O Predador, e Conan - O Destruidor (Conan - O Bárbaro eu só vi bem mais velho, apesar de ser o primeiro filme.), Bruce Willis em Duro de Matar e Encontro ás Escuras (Eu sei, era uma comédia romântica, mas ele era o David de A Gata e o Rato, e, além de o filme ser divertido, tinha a Kim Basinger que era linda e o John Laroquette que tava hilário.).
Ainda tinha o Dolph Lundgren fantasiado de He-Man em Mestres do Universo e de "Punidor" em Justiceiro, o Van Damme quebrando tudo em O Grande Dragão Branco, Steven Segall jovem e magro, batendo em todo mundo, Chuck Norris distribuindo round-house kicks pra tudo quanto é lado, enfim, era um tempo simples, com heróis simples que tinham soluções simples pra tudo.
As histórias, via de regra, eram bem pobrinhas, eram pirotécnicos Homem x Exército reduzidos á duas premissas:
Vingança, onde matavam alguém querido ao mocinho (esposa e filhos costumavam ser as melhores pedidas), fazendo-o jurar vingança, vingança essa que geralmente envolvia matar batalhões e cometer algumas barbáries, ou Dever, onde não era mais, senão a obrigação profissional do mocinho (Policial ou soldado, eram profissões bem frequentes.) que o colocava em rota de colisão com o vilão.
Os vilões, aliás, eram um capítulo á parte. Unidimensionais até não poder mais, eram apenas malvados, não tinham lá muitas aspirações ou personalidade, eles eram cruéis e era isso (Pegue Clarence Boddicker, de Kurtwood Smith em Robocop, ou o Bennett de Vernon Wells em Comando para Matar, por exemplo.).
Isso pode parecer falha de roteiro ou desenvolvimento, mas serve á um propósito, por que, nos anos oitenta, os heróis eram sombrios e violentos, dominavam o cinema caras sem lá muita finesse, que estavam prontos pra explodir, esmigalhar ou triturar o crânio de seus inimigos como fosse possível, e que quase sempre tinham uma faca, pistola, escopeta, metralhadora ou um lança-granadas para ajudá-los a cumprir esse objetivo.
Por isso os vilões eram tão abjetos, sendo o vilão detestável, era mais fácil para a audiência curtir o momento em que o mocinho faria atrocidades com ele sem ter dó do desgraçado.
Os heróis, aliás, salvo raras exceções, também não tinham lá muita personalidade. Se no primeiro Rambo o personagem interpretado por Stallone ainda tinha um background e um espectro de emoções, nos demais ele era pouco mais que uma máquina de matar (o que Schwarzenegger encarnava com perfeição nos filmes de Exterminador do Futuro), tirando Martin Riggs (Mel Gibson em Máquina Mortífera) e John McLane (Willis em Duro de Matar.), heróis dos anos oitenta eram quase nada além de músculos, bofetões, tiros e uma dose cavalar de determinação e testosterona, basta comparar James Braddock, Nico Toscani e Jack Caine.
Hoje, olhando em perspectiva, podemos pensar que aqueles filmes eram ruins, mas eles não eram, eram aventuras despretenciosas e divertidas que apenas traduziam a eterna luta de bem contra mal sob as luzes de uma época sem lá grandes inspirações.
É pensando em como aqueles tempos eram divertidos e simples que eu estou seco pra ver Os Mercenários (The Expendables) que estréia hoje no Brasil.
Uma ode ao cinema de pancadaria e explosões dos anos oitenta dirigida, co-escrita e estrelada por um dos papas do gênero, Sly Stallone, com elenco de cascas-grossa da nova era e participações especiais de Schwarza e Willis.
Se eles explodirem tudo e distribuirem pancada á valer, sem duvida será o filme que eu espero.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Rapidinhas do Capita


O guri, com aquela cara de moleque que fez bobagem, estava sentado em uma banqueta de madeira no corredor que ligava a sala de estar à cozinha.
Sua expressão era bastante clara:
Aguardava um castigo.
Contrariando as ordens de sua mãe, o piá jogara bola dentro de casa quebrando a compoteira de cristal que ficava em lugar de honra na estante da sala.
Em sua defesa, ele dissera que fora sem querer, que fora um acidente. Ainda assim, a mãe lhe disse, enquanto juntava os cacos de cristal do chão:
-Tu vais ver quando teu pai chegar.
Aquela frase apavorou o piá. O pai era um sujeito duro, literal em suas ações e palavras. Quando dizia algo, cumpria, jamais deixara de cumprir uma promessa. O menino, mesmo com tenra idade, sabia que seu pai era homem de palavra, e que suas ações sempre davam lastro à suas promessas.
A revolta da mãe era justificada. A tal comporteira de cristal era, de fato, bem bonita, ela apanhara na casa da avó quando esta morrera. Não quis mais nada, mas a compoteira trazia á ela lembranças dos verões que passara na casa da avó. Agora estava destruída por conta da desobediência do fedelho.
A desobediência do fedelho não era, também, totalmente gratuita, era um dia chuvoso de verão, a primeira semana de férias, ele precisava de alguma atividade para gastar toda a energia acumulada. Acabou desobedecendo a mãe, e, agora, teria de enfrentar a plenitude da ira de seu pai, um homem austero e resoluto.
Ás seis da tarde o pai chegou, sua chave fazendo grande alarido enquanto ele destrancava a porta. Entrou, viu o pequeno sentado perto da cozinha e perguntou à esposa o que acontecera.
Ela narrou em detalhes toda a epópeia que culminara na destruição da compoteira de cristal.
O pai não disse nada. Soltou o primeiro e o segundo botões da camisa, tirou o casaco, pegou o filho pela mão e o levou até seu quarto. Acendeu a luz, abriu a janela e tirou o cinto.
Mandou que o filho ficasse parado e disse:
-Isso vai doer mais em mim do que em você.
Girou a peça de couro no ar e golpeou as próprias pernas. Repetiu a operação outras quatro vezes sob o olhar atônito do moleque.
Após terminar, olhou para o menino e disse:
-Que isso não se repita, entendido?

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Cristina amava adolfo. Que amava Camila. Que amava Fábio. Que era uma tremenda bichona, mas tinha medo de assumir por causa da família, então não saía com mulheres nem homens.
Camila não sabia disso, se soubesse, talvez tivesse dado abertura ás investidas de Adolfo, nesse caso, Cristina, que não sabia por que era ignorada pelo homem que amava, saberia o por quê e talvez não tivesse se unido aos Médicins sans-frontiére e morrido em Ruanda num conflito com as milícias armadas locais, nem teria deixado a carta que foi entregue ao Adolfo onde dizia com riqueza de detalhes por que tinha ido para a África.
A culpa não teria consumido Adolfo e ele não teria se recolhido à solidão e esquecimento, onde morreu sozinho. E Camila não teria desperdiçado a vida perseguindo Fábio até ficar velha e sozinha, e amarga depois que o rapaz sumiu.
Ele, no final das contas, foi o único que terminou feliz, se mudou para o Rio de Janeiro sem se despedir de ninguém, e lá, passou a ganhar a vida como Fabi Ferrari, travesti de programa.

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Ele era um tremendo chato. Não que não soubesse conversar, mas depois de vinte minutois conversando com ele, chegava-se á conclusão de que era o mais incrédulo dos homens, ele não acreditava em nada.
Religião, pra ele era tudo bobagem. Formas de a humanidade lidar com seu medo da morte e apego aos entes queridos, além de um mecanismo de controle.
Políticas sociais, pra ele era só uma ferramenta de um governo corrupto para se manter nas boas graças das camadas mais empobrecidas de uma população ignorante e que é a mais numerosa, o que, obviamente, garante reeleição.
Homem na lua, pre ele era um engodo, um filminho porcaria filmado atrás de um quintal em Houston, mal dirigido, mal editado e que se prestava apenas ao papel de propaganda americana pra fingir estar na dianteira da corrida espacial contra os Soviéticos. Outra maneira de manter o povo na coleira.
O que ninguém sabia, porém, é que ele acreditava que ela podia amá-lo como ele era, e isso, á despeito de todo o seu ceticismo, fazia dele o mais crédulo entre os homens.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

O Poder do Argumento


Ele entrou no quarto rindo amarelo sob gritos de "babão", vindos da sala.
Tirou a camiseta e a jogou no banheiro contíguo. Ele ouvia os convidados conversando na sala quando ela entrou, também rindo.
Ele parara em frente ao guarda-roupas procurado uma outra camiseta para substituir a camisa suja de molho de tomate que acabara de tirar. Ela parou ao seu lado sorrindo, não estava embriagada, mas certamente bebera um pouquinho.
Ele perguntou se ela vira sua camiseta do seu Madruga. Ela se aproximou casualmente olhando o fundo do armário, e, sem aviso, virou-se para ele, beijando-o de forma ardente.
Sem parar, virou as costas dele para o armário empurrando-o para dentro e fechando a porta em seguida.
-Tá maluca? -Ele perguntou em um estranho misto de grito e sussurro com a cabeça entre os cabides.
-Shhh, ninguém vai perceber.
-Como ninguém vai perceber, mulher? Tá doida? E se alguém abre esse armário?
-Por que alguém abriria o armário?
-Hã... Pra procurar o casal que sumiu de repente da festa, quem sabe?
-O pessoal tá ocupado festejando, ninguém vai procurar a gente.
-"O pessoal"... Eu subitamente me vejo na obrigação de lembrar, são quatro casais. Acredite quando eu digo, em um grupo de oito pessoas, duas fazem uma falta danada.
-Mas os seis que sobraram falam pra caramba.
-Com a gente, Roberta, os seis que sobraram falam pra caramba com a gente, entre eles, não tanto.
-Ai, Anderson, não seja chato.
-Desculpa, desculpa, que cabeça a minha, que tipo de estraga-prazeres eu sou por querer que nós façamos isso depois que os convidados forem embora.
Ela soltou ele.
-Qual o problema?
-Como qual o problema? Lá fora tá cheio de gente que nós, não, não, que tu convidou.
-E daí?
-E daí que, se os anfitriões desaparecem eles provavelmente irão procurar antes de ir embora.
-Tá bem, se tu quer tanto ir pra lá ficar com eles...
-Eu quero? Eu quero? Eu nem queria essa gente toda aqui! Tu convidou eles! Eu odeio gente. A única coisa que eu odeio mais do que receber gente estranha em casa é gente estranha me flagrando fazendo sexo no guarda-roupa da minha própria casa, uma perspectiva, diga-se de passagem, cada vez mais palpável.
-Antes tu gostava...
-Ainda gosto, mas há uma questão importantíssima que tu está obviamente deixando de lado. O timming. E adoro fazer sexo escondido em lugares públicos, mas não num jantar pra oito pessoas, onde pelo menos cinco delas são íntimas da anfitriã, e, sem sombra de dúvida sentir-se-ão não só á vontade, mas também no direito, e até por que não dizer, no dever, de procurar pelos donos da casa se eles desaparecerem inexplicávelmente por meia hora durante a festa.
-Meia hora? Eu tinha pensado numa rapidinha de dez, quinze minutos.
-Tu sabe... Tu sabe que eu não consigo desenvolver em quinze minutos, em quinze minutos eu não aproveito nada. E, se por uma eventualidade a gente começasse e tu ficasse mandando eu me apressar, aí, sim, eu não iria conseguir aproveitar nada, mesmo. Preciso de tempo, tempo que nós não temos. Já tô até vendo a cara da enxerida da Veridiana aparecendo aqui na porta do armário, rindo feito um macaco e se desculpando, depois ela ia prometer que ficava entre nós, mas assim que eles entrassem no elevador ela ia contar pra todo mundo.
-Bom... Eles certamente não iriam mais querer vir aqui em casa.
O rosto dele se iluminou. Agarrou ela pela perna, fazendo-a enlaçá-lo pela cintura enquanto a beijava e dizia:
-Tá, mas faz bastante barulho.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Resenha DVD: Zumbilândia


Nesse exato instante, enquanto eu teclava essas palavras, e enquanto você as lê, há um armazém do governo norte-americano cercado por arame farpado e guardas armados. No interior desse armazém, não há nada, apenas um elevador, que leva para o bunker subterrâneo ao qual esse armazém serve de fachada.
Nesse bunker há um laboratório, e nesse laboratório os militares estão estudando novas formas de guerra. A mais promissora envolve um composto capaz de animar tecido morto.
Outra:
A humanidade está abusando em demasia do mundo. Ninguém é capaz de precisar que tipo de prejuízo a ação do homem já acarretou na natureza. Todos os produtos químicos que despejamos na natureza podem acabar reagindo de maneira surpreendente em um ambiente onde não haja supervisão, como aquele despejo de detritos industriais próximo ao velho cemitério da cidade.
Mais uma?
A superpopulação humana acarreta alterações na naureza em níveis que nem sequer sonhamos. Agora mesmo, vírus e bactérias sofrem alterações que a ciência nem sequer poderia imaginar. Como a que criou um vírus que mata as zonas do cérebro responsáveis pelo raciocínio e hipertrofia as zonas responsáveis pela auto-preservação e pela fome, gerando hordas de dementes que visam unicamente saciar essa fome, da maneira que for.
Aí estão, de maneira meio porca, eu admito, três motes para filmes de um subgênero muito especial dos filmes de terror:
Os filmes de zumbi.
Se puxar pela memória, certamente irá lembrar de ter visto pelo menos um filme de mortos-vivos que tinha um mote semelhante á esses lá de cima. E funcionava, não é? Desde os elegantes vampiros da literatura até os zumbis-corredores de filmes como Madrugada dos Mortos, passando pelas alegorias zumbificadas de George Romero, o medo de ver mortos se erguendo dos túmulos para se alimentarem da carne dos vivos sempre rendeu filmes interessantes com diferentes toadas.
Há os filmes de horror trash, como A Noite dos Mortos-Vivos, os que flertam mais com o lado psicológico do terror, como Extermínio, e até comédias, algumas excelentes, como Todo Mundo Quase Morto, outras bem ruinzinhas, como Zombie Strippers.
Zumbilândia, que eu assisti em DVD ontem, é uma das boas comédias que tem o "fenômeno Z" como mote.
No filme o mundo está tomado por zumbis surgidos de uma mutação do mal da vaca louca. A maior parte da população se transformou em criaturas dementes comedoras de carne humana, e os EUA são agora, um lugar inabitado onde os desmortos imperam.
Nesse cenário hostil, conhecemos Columbus (Jesse Eisenberg), jovem nerd que ruma para sua cidade natal em Ohio tentando reencontrar sua família.
Columbus sobreviveu à praga por duas razões:
A primeira é ter formulado um rígido conjunto de regras para a crise, regras que segue religiosamente não importa a situação.
A segunda é que, mesmo antes de o mundo ser infestado pela praga ele já tinha medo de tudo, então, viver com medo não é novidade para ele.
Columbos conhece, então, Talahasse (Woody Harrelson, impagável, dono do filme.), seu extremo oposto.
Se Columbos é contido e afeito á regras, Talahasse é expansivo ao extremo, e caótico. Um matador de zumbis nato e experimental que sente prazer genuíno em triturar os crânios dos comedores de gente.
Os dois resolvem viajar juntos para o leste, onde dizem, não há zumbis.
No caminho, além de seguir exterminando mortos-vivos e procurando Twinkies (Os bolinhos que Talahasse venera.), eles conhecem outras duas sobreviventes, Wichita (Emma Stone) e Little Rock (Abigail Breslin), que não são indefesas como parecem, e, ao contrário de Columbus, com suas dezenas de regras, têm apenas uma: Não confiar em ninguém, exceto uma na outra.
As irmãs rumam para o Pacific Playland, parque de diversões na Califórnia onde, elas acreditam, não há zumbis.
Os dois grupos acabam unindo forças e seguem juntos, mas a jornada de sobrevivência deles não será tranquila, e pode acabar mal.
O filme, que segue a cartilha de filmes de zumbis no tocante à mitologia da coisa (tiros na cabeça, fome insaciável, as mordidas infeciosas), tem espaço, também, para a crítica social Romerista, além de fazer justiça á uma geração que cresceu jogando games violentos e assistindo filmes de horror, e, pra qual uma infestação zumbi poderia, sim, ser um imenso playground.
Junte á isso um bom elenco, piadas eficientes, ação convincente e uma participação especialíssima, e Zumbilândia não fica devendo nada ás melhores produções de zumbis do cinema.
Vocês, eu não sei, mas quando os mortos se erguerem dos túmulos para se alimentarem da carne dos vivos, eu estarei preparado.

"Vamos lá! Alguém está com fome? Talahasse é ótimo nessa época do ano!"

sábado, 7 de agosto de 2010

Resenha Cinema: A Origem


Foi na noite fria de sexta-feira que eu corri pra um dos cinemas de Porto Alegre pra assistir ao mais recente filme do diretor Christopher Nolan, o mesmo de Batman Begins, Cavaleiro das Trevas, Amnésia e Insônia, e que, entre um Batman e outro lançou o excelente O Grande Truque.
Bem, novamente, entre um Batman e outro (O terceiro longa do morcegão deve ser seu próximo trabalho.), Nolan lança um filmaço.
Ao contrário do que os trailers e o próprio mistério que os envolvidos faziam ao falar sobre o filme, A Origem não é um bicho de sete cabeças, não é um filme complexo, nem complicado, requer apenas um pouquinho de atenção e que o espectador abra mão de alguns conceitos pré-definidos do que é possível, ou não.
Não é um filme mais difícil de absorver do que, por exemplo, o excelente Brilho Eterno de Uma Mente sem Lembrança.
Na trama conhecemos Dom Cobb (Leonardo Di Caprio, um dos melhores atores em atividade no cinema ultimamente.), e seu parceiro Arthur (Joseph Gordon-Levitt, fazendo outro bom papel.), eles são especialistas em um tipo de espionagem industrial muito específico, em que se rouba ideias da mente do alvo conectando-se ao subconciente do indivíduo através de uma máquina de partilhamento de sonhos.
Os dois são contratados pelo industrial Saito (Ken Watanabe, outro baita ator.) para uma operação um pouco diferente.
Invadir o subconciente do herdeiro do maior concorrente de Saito, não para extrair uma ideia, mas para inserir uma, algo que muitos acreditam ser impossível, ou, pelo menos, extremamente difícil.
Entretanto, como o sucesso da inserção pode ser a única forma de Cobb, que tem um passado conturbado que literalmente o assombra na forma de sua esposa, Mal (Marion Cotillard), voltar pra casa, ele aceita formar uma nova equipe e tentar realizar o serviço.
As peças necessárias para o golpe surgem na forma do químico Yusuf (Dileep Rao), do falsário Eames (Tom Hardy), e a arquiteta Ariadne (Ellen Page), que, como a novata do grupo, serve de peão (Veja o filme pra entender esse chiste.) para o espectador entender as regras do compartilhamento de sonhos.
A equipe se une para bolar um modo de invadir a mente de Robert Fischer (Cillian Murphy) e inserir a ideia de Saito de modo a fazê-lo acreditar que a inspiração foi sua.
Não parece trama de filme complicado, não é? E não é, mesmo.
Á despeito da pinta de intrincado filme psico-filosófico que o longa ganhou nos meses anteriores á sua estréia, a trama não tem nada de ininteligível.
Trata-se de um filme sobre sonhos, sim, mas ao mesmo tempo é um trhiller de assalto como Efeito Dominó ou Onze Homens e Um Segredo, há uma equipe com talentos variados unida em torno de um objetivo e que precisa agir de forma sincronizada de modo á suceder em sua missão.
Há a parte do planejamento, do ensaio e, por fim, a prática, onde surgem os indispensáveis imprevistos.
É um filme divertido e instigante, com um elenco afiado (que além dos atores já citados ainda conta com Tom Berenger, Pete Postlethwaite, Lukas Haas e Michael Caine), ritmo interessante, e que, em momento algum oferece quebra-cabeças inúteis (apenas charadas relevantes ou divertidas aparecem na tela).
Se A Origem tem algum defeito, talvez seja o de dar demasiado crédito à platéia, que mesmo depois de filmes como Quero ser John Malkovich e Matrix ainda parece carecer de respostas fáceis mastigadinhas no final da projeção.

"Você está esperando por um trem; Um trem que irá levá-lo pra bem longe. Você sabe pra onde espera que esse trem te leve, mas não sabe com certeza. Mas não importa - Por que você estarão juntos."

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Bobagem.


É bem verdade que o homem não entende a alma feminina, isso se dá por sua complexidade. A mulher tem camadas demais, particularidades demais, funciona em dezenas de níveis paralelos ao mesmo tempo, é capaz de ser multi-tarefa, ninguém consegue imaginar um homem passando roupa, vestindo os filhos, falando ao telefone, preparando café da manhã e se vestindo pra trabalhar ao mesmo tempo, enquanto uma mulher é capaz de fazer todas essas coisas e ainda estar de olho na previsão do tempo e avisar o marido que tem que trazer leite na volta.
A mulher é ininteligível ao homem por que possui uma personalidade demasiado profunda, a mulher tem humores e sabores que variam o tempo inteiro, e por vezes, de forma caótica.
Mas o inverso não é menos verdade. A mulher não entende o homem. Pelo motivo oposto.
Como a Dora. A Dora estava aflita.
Já fazia alguns dias que ela tinha uma má impressão de como estava seu namoro com o Patrique. Desde a quinta á noite, quando ele foi buscá-la na faculdade após a aula, ela achou ele meio calado, meio abatido.
-Oi, amor. Tudo bem?
-Tudo... E tu?
-Tô ótima. Por que essa carinha?
-Nada, não. Bobagem. Quer comer?
-Não, já jantei. Mas se tu quiser eu vou contigo, tu tá com fome?
-Não, não... Não precisa. Tô meio cansado, tenho que acordar cedo amanhã. Te deixo em casa.
Foram em silêncio a maior parte do tempo. Dora tentou puxar assunto, mas Patrique respondia unicamente com monossílabos. Parecia abatido. Ela achou que ele podia estar apenas cansado, mas ficou com uma proverbial pulga atrás da orelha.
Dora era uma moça bonita, inteligente, e independente. Trabalhava, estudava, era dona do próprio nariz. Havia passado um longo tempo sozinha após uma final de namoro traumático quase cinco anos antes, achou que jamais amaria de novo, exagerada que era no tocante a coisas do coração. Até que Patrique surgiu. Patrique, com sua cara de cachorro que caiu da mudança imediatamente cativou Dora, e ela aceitou suas investidas assim que elas ocorreram. Namoravam fazia quase um ano, e ela jamais vira ele daquela forma. Enfim, esperava que na sexta as coisas fossem melhorar, se fosse, afinal, apenas cansaço como ele havia dito, a iminência do fim de semana haveria de curá-lo.
Entretanto, quando Dora encontrou Patrique na sexta-feira á tardinha, ele não estava cabisbaixo como estivera na noite anterior, parecia irritadiço, mal-humorado, e distante.
Durante o jantar, sugestão de Dora, para tentar melhorar o ânimo do amado, recebia menssagens de texto no telefone o tempo todo, e bufava feito um boi emburrado ao ler cada uma delas.
Dora á certa altura, precisou perguntar:
-O que houve?
-Nada. Meus amigos.
-Se são teus amigos por que tu fica bravo?
-Não tô bravo.
Ele respondeu visivelmente bravo enquanto desligava o celular.
Dora não tocou mais no assunto, e o resto da noite transcorreu em silêncio, com Patrique emburrado e distante. No caminho pra casa, Dora novamente tentou conversar, perguntando o que fariam no final de semana, mas ele não tinha ideias, e disse que ela escolhesse algo pra fazerem.
Ela teve certeza de que havia outra mulher na jogada. Não se daria ao papelão de vistoriar o celular do namorado, mas por certo sentiu-se curiosa.
Quem poderia ser?
Alguma piranha do trabalho dele? Alguma ex-namorada daquelas sobre as quais ele jamais falava? Alguma aventura em um rendez-vous com os amigos que tomava proporções de atração fatal? Ela deeria comprar um coelho para encontrar dentro de uma panela mais tarde? Bem, se havia outra mulher, não tomaria o namorado de Dora sem luta.
Ao chegarem em casa, Dora imediatamente foi para o banheiro. Tomou um banho caprichado, se perfumou, e vestiu uma lingerie daquelas que ficam em uma caixa de vidro sob um martelo e a inscrição "Em caso de emergência quebre o vidro".
Ao sair do banheiro, exalando Violetta di Parma, Dora estava disposta á fazer coisas que deixariam sua avó de cabelos em pé. Por mais que Patrique tivesse outra, e, se ela descobrisse que era o caso, daria-lhe um merecido chute nos fundilhos, antes disso daria ao cretino uma amostra de tudo o que ele perderia.
Chegou no quarto lânguida como uma corsa, e subiu na cama quase ronronando.
Patrique estava jogado na cama, de bruços, usando uma medonha samba-canção xadrez de azul e branco.
Dora passou a unha suavemente pela coluna de Patrique, da altura das omoplatas até próximo do cóccix, e suspirou em sua nuca com o hálito de menta. Ele se virou rapidamente, dando-lhe um beijo sem graça nos lábios.
-Hoje não, tá? Tô podre.
Virou-se novamente e pôs-se á dormir.
Dora foi ao banheiro, vestiu seu pijama normal, e chorou. Chorou de raiva de Patrique, o imbecil, chorou de raiva da suposta piranha que intrometera-se em sua felicidade, e de raiva de si mesma por lamentar a perda daquele imbecil.
No outro dia de manhã, Patrique e Dora tiveram uma conversa séria, e, entre lágrimas, ela disse á ele que sabia de tudo. Quando ele perguntou "Tudo o quê?" ela se enfureceu, e a conversa se transformou em uma discussão, e a discussão em briga.
Briga essa que culminou em Patrique, deixando a casa de Dora com uma sacola recheada com seus pertences.
Ao chegar em casa e largar suas coisas perto do guarda-roupa ele sentou e pensou consigo mesmo que aquela semana terminara muito mal. Nem os maus resultados do Grêmio, na zona do rebaixamento, e a classificação do Inter à final da Libertadores, que o tinham deixado de péssimo humor desde quinta-feira, o deixaram tão chateado quanto o final do namoro com a Dora. Enfim, domingo tinha Grêmio e Fluminense, e ele afogaria as lágrimas lá.
Se alguém dissesse à Dora que Patrique não tinha outra mulher, e que seu distanciamento e seu mal-humor e cansaço eram apenas efeitos colaterais do mal momento do time do coração combinados aos triunfos do rival e às gozações dos amigos, ela não acreditaria. Por que era incapaz de entender a alma masculina.
Pois ao contrário das mulheres, os homens são simples. Não temos camadas, e nossas aflições são profundas, mas fugazes, pois nos afligimos com bobagens e não sabemos gerenciar tarefas múltiplas.
Talvez por isso, á despeito das Doras e Patriques do mundo, homens e mulheres não se entendam, mas sejam feitos um para o outro.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Papel confortável


Eriberto entrou ligeiro no mini mercado, andou entre os corredores apanhando coisas das prateleiras rápida e mecanicamente.
Pegou um pacote de pão, uma embalagem de presunto, uma de queijo, um vidro de maionese, uma Coca-Cola dois litros e foi pro balcão.
Cara de poucos amigos.
Brigara com a namorada, Joyce, antes de sair de casa. Esquecera de ir ao mercado, ela ligara lembrando-o cerca de meia hora antes de ele sair do trabalho, e mandara uma mensagem de texto no momento em que ele batia o cartão no relógio-ponto, saindo da empresa. Ainda assim ele esquecera.
Ele era assim, esquecia das coisas. Perdia-se em pensamentos e deixava passarem algumas obrigações menores, especialmente aquelas que não faziam parte de sua rotina diária.
Desde pequeno era assim. Se sua mãe, antes de ele ir à escola, lhe dizia que ele deveria encontrar ao seu pai e á ela no restaurante onde almoçariam, e não em casa, ainda assim, ele acabava indo em casa, primeiro.
Se tinha que levar algo de diferente à escola para um trabalho, esquecia os itens pedidos.
Se tinha que encontrar a avó que chegava de Caçapava na rodoviária, esquecia da pobre velha por horas até ser alertado do compromisso.
Era distraído, as pessoas se acostumavam. Ao que as pessoas não conseguiam se acostumar era à dificuldade de Eriberto em admitir que estava errado.
Ao invés de dizer que esquecera, pedir desculpas, e prometer melhorar, e de fato, tentar melhorar, Eriberto dava desculpas. Inventava mentiras das mais diversas e elaboradas tentando esquivar-se da responsabilidade por suas ações e arrolando-se no papel de vítima.
Ao chegar atrasado e esbaforido ao encontro dos pais no restaurante, inventava que fora acossado por um larápio.
Quando a professora cobrava o material para o trabalho diferenciado, Eriberto dizia que seu cachorro comera o papel celofane e o giz de cera, e que havia passado a noite em claro com os pais na clínica veterinária.
Ao encontrar a avó quarando no sol das quatro da tarde em frente á rodoviária dizia que se atrasara por culpa de um policial corrupto que o ameaçara após ser flagrado por Eriberto surrando um indigente.
Tinha imaginação fértil, o Eriberto.
Claro, na maior parte das vezes suas desculpas não funcionavam, em outras tantas, porém, a inventividade e a riqueza de detalhes da lorota acabavam valendo-lhe vantagens, de modo que Eriberto, sendo humano, via a vantagem adquirida e se agarrava á ela, mentindo e fazendo-se de vítima sempre que a situação apertava.
Não que ele fosse um vil gênio da mentira.
Raramente prejudicava alguém que não ele mesmo, e, quando causava prejuízo á outrem, era mínimo.
Eriberto cresceu daquela forma, distraído e cobrindo os rastros da própria distração com mentiras, então, pra ele, tornou-se quase natural ver-se como vítima de uma situação fora de seu controle, até por que, era extremamente confortável.
Ao conhecê-lo, Joyce, que se tornaria sua namorada, logo notou como funcionava aquela faceta de Eriberto, e, á despeito de achar ridículo um homem feito mentir á respeito de bobagens, Eriberto tinha predicados que, na maior parte do tempo, compensavam essa pequena falha de caráter.
Vez por outra, claro, Joyce explodia em fúria com as pataquadas dele, e isso resultava em discussões acaloradas em que ela gritava que não podia sustentar uma relação com um homem-criança incapaz de assumir responsabilidade pelas suas ações, ao que ele replicava clamando ser um incompreendido, ou algo do tipo.
Fora o que acontecera horas antes.
Eriberto chegara em casa, começara á despir as roupas de trabalho para tomar banho, quando Joyce aproximou-se sorrateira como uma grande felina e perguntou-lhe onde estavam as compras:
-Cadê as coisas que eu pedi, Eriberto?
-Hân?
-As compras. A massa, os tomates, a carne moída... As coisas pra eu fazer o espaghetti à Bolonhesa? Cadê?
-Tu não vai acreditar.
-...Acho que não.
-Não, não, olha, eu fui ao mercado, comprei tudo, menos os tomates, tavam feios, comprei um vidro de molho pronto, é quase a mesma coisa-
Esse era uma característica recorrente nas lorotas de Eriberto, ele acrescentava detalhes casuais para dar veracidade ao conto, e depois, agarrava-se a eles até a morte.
-Comprei tudo, mas o sistema daquela porcaria de mercado estava fora do ar, e eu tive que deixar tudo lá, pois não tinha levado dinheiro.
-Ah, é mesmo? -Perguntou Joyce, sem expressão no rosto.
-Sim. -Respondeu Eriberto, casual, tirando as calças. -Mas olha, a gente pode sair pra comer fora, que tal?
-Eriberto, não me conta...
-O quê? É verdade, tô falando.
-Eriberto, são seis e quinze. Tu sai do trabalho ás seis. Não tem como tu sair do trabalho, passar no mercado, precisar deixar tudo no caixa por causa do sistema e estar aqui em quinze minutos.
-Eu sou um mentiroso, agora?
-Agora? Não. Tu é um mentiroso desde que a gente se conheceu, e eu sou uma trouxa de acreditar que tu podia amadurecer.
-Ah, é? Se tu é trouxa o que sobra pra mim? Que invisto em uma relação onde eu sempre sou culpado de tudo?
-Tu não é sempre culpado de tudo, tu é culpado de não assumir responsabilidade por nada, é culpado por inventar essas desculpas esdrúxulas pra tudo, e de se fazer de vítima!
Eriberto pensou em contra-argumentar, mas o papel de vítima pareceu-lhe uma boa cartada naquele momento. Vestiu-se em silêncio sob o olhar acusador de Joyce, e disse enquanto calçava os sapatos:
-Eu vou ali no mercadinho pegar algo pra gente comer, se o sistema não estiver fora do ar, ainda.
E saiu, com ar trágico de quem fora injustamente acusado de um crime hediondo.
E aí chegamos ao começo. Eriberto apanhou os ingredientes de um sanduíche, e, ao chegar ao caixa, deparou-se com um homem pouco mais jovem que ele próprio, de arma em punho, ameaçando o balconista. O jovem encarou-o com uma expressão horrorizada, estava tão nervoso quanto Eriberto e o balconista.
-Me dá a carteira, velho!- Sentenciou o bandido.
Foi um ato reflexo, Eriberto largou tudo no chão para alcançar a carteira, as compras caíram no chão fazendo um grande ruído quando o vidro de maionese estourou, a garrafa de refrigerante, porém, quase não fez barulho ao cair precisamente em cima do dedão do pé do assaltante, que, sem nenhuma intenção, apertou o gatilho da arma, que estava apontada pra cabeça de Eriberto.
A última coisa que passou pela cabeça de Eriberto, antes da bala calibre .38, foi que ele adoraria ver a cara de culpada de Joyce ao receber a notícia da Brigada.
Não adiantava, ele gostava mesmo de ser vítima.