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segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Perfeição


O Tato e a Clarice se amavam. Se amavam muito. Nossa, como se amavam. O Tato e a Clarice se amavam de um jeito doce. Não melado, mas doce na medida. Se respeitavam, muito, confiavam um no outro, não eram daqueles casais que parecem desesperados pela ateção um do outro o tempo inteiro, não.
O Tato e a Clarice estavam sempre tocando um no outro quando estavam perto. Mãos dadas, carícias, coisas que, ás vezes, passavam despercebidas para os outros, como o fato de ele sempre colocar a mão nas costas dela quando a fazia passar na frente ao entrar em algum lugar, ou ela sempre pousar a mão na perna dele quando sentavam lado a lado, mas ninguém jamais viu o Tato buscando desesperadamente a mão da Clarice quando andavam na rua, ou ela virar seu rosto até amassar-lhe a pele durante um jantar para beijá-lo quase á força. Tudo entre Clarice e Tato era espontâneo. Leve.
Chegava a ser ostensiva, não apenas a cumplicidade e o amor, mas a qualidade e na pureza do amor que Tato e Clarice partilhavam.
Não havia nenhuma anormalidade em Clarice amar Tato. Tato era um bom rapaz. Não era feio, tinha até alguma beleza, de um tipo antigo e pouco óbvio, como aqueles galãs de cinema dos anos cinquenta. Tato era educado, atencioso, não se importava de ver comédias românticas no cinema, sabia cozinhar e não tinha vergonha de demonstrar afeto publicamente, era engraçado e inteligente. Tinha um emprego decente como analista de sistemas, e era fiel. Caninamente fiel à Clarice. E era fiel por que a amava.
E, claro, não era gratuito. Tato amava Clarice por que qualquer homem de posse de suas faculdades mentais amaria Clarice. Ela era linda, inteligente, gentil e amorosa. Era veterinária e além de trabalhar em uma clínica, abnegadamente também fazia plantões voluntários em um abrigo de animais. Ela não era moça afeita a frescurites, não abominava futebol, tampouco filmes de ação. Gostava de praticar esportes e de fazer programas que envolviam passar algum trabalho, como acampar.
Enfim, eram perfeitos individualmente e ainda mais perfeitos como par. Se em um primeiro momento os amigos em comum do casal ficavam um pouco reticentes com relação aos dois, afinal, ter um casal perfeito por perto nunca é bom para os casais comuns, logo aprendiam a admirar o amor dos pombinhos.
De maneira muito espontânea, Tato e Clarice se tornaram o norte da bússola de todos os outros casais, apontando que caminho seguir em nome de uma relação saudável, eram o nirvana que todos os outros casais queriam atingir. Os amigos do grupo até diziam, quando um casal estava no início de uma relação, naquela fase em que não se desgrudam e um acha tudo o que o outro faz um amor, que eles estavam no ETC da relação.
ETC significava, não tão secretamente, "Estágio Tato e Clarice".
Os outros casais copiavam-lhes os movimentos, alguns estavam satisfeitos em ter metade, até um quarto, do amor, da pureza e da cumplicidade que partilhavam Tato e Clarice, copiavam-lhes os movimentos e faziam programas com eles pois o amor e a naturalidade dos dois pareciam contagiar o ambiente.
Um casal em particular, Amaury e Rosane, invejavam Tato e Clarice.
Não era dessas invejas mesquinhas e maléficas, eles não queriam roubar a felicidade e o amor de Tato e Clarice, eles queriam ter uma igual.
Amaury e Rosane haviam passado por problemas em seu namoro-quase-casamento. Ele a traíra, ela revidara, também com uma traição. Se separaram por algum tempo, depois reataram, mais por conveniência, perdoando um ao outro da boca pra fora, e isso fora péssimo para ambos. Ela entrou em depressão, ele se transformou em um rabugento. Mas acabaram superando aquilo. Resolveram se dar outra chance, fizeram terapia juntos, não funcionou, mas pelo menos deu-lhes combustível para resolverem seus problemas sozinhos. Se perdoaram novamente, dessa vez com sinceridade, e estavam tentando ser o casal que foram nos primeiros anos da relação.
Por isso, andavam bastante com Tato e Clarice, que, além de todos os outros atributos eram, também, extremamente compreensivos e ansiosos por ajudar.
Foi durante um jantar, apenas os dois casais à mesa, que Amaury e Rosane, muito sinceros, mãos dadas, perguntaram, aflitos, qual era o segredo da relação bem-sucedida de Tato e Clarice. Conversaram muito ao longo daquela noite, estavam dispostos a tentar qualquer coisa para salvarem sua relação, e, quem sabe, ter uma que se aproximasse da relação dos amigos. Foi no fim da noite, depois de jantarem, comerem a sobremesa e beberem mais uma garrafa de vinho, que Clarice olhou para Tato e perguntou com gravidade:
-Contamos pra eles, Tato?
Ele respondeu com tranquilidade que, se ela quisesse contar e se sentisse á vontade para isso, ele aceitaria.
Rosane e Amaury ficaram aflitos esperando pela fórmula mágica que garantia o secesso, do amor puro e franco que Tato e Clarice partilhavam.
Depois de pedir segredo por duas vezes, Clarice respirou fundo e disse após um suspiro:
-Olha, gente... O Tato e eu temos, sim, um segredo pra nossa felicidade. Nós, pelo menos uma vez por mês, frequentamos uma casa de swing sado-masoquista.
Amaury e Rosane, se tivessem combinado, não teriam conseguido um uníssono de horror tão franco:
-Quê?
Tato continuou:
-Foi ótimo pra nós. Sério. A gente foi só pra ver na primeira vez, mas aí, tinha outro casal lá que foi super gentil com a gente, e nós aceitamos uma proposta pra dividir um ambiente com eles, daí pra troca foi um salto, e nós-
-Tá bem! Obrigado! - Gritou Amaury, querendo poupar Rosane dos detalhes conforme via os olhos dela se esbugalharem enquanto Tato fazia seu relato.
Agradeceram a ajuda e foram embora dizendo que precisavam se ver de novo.
Já no elevador Rosane e Amaury comentavam:
-Mas que horror...
-Gente pervertida...
-Imagina, só... A mulher que tu ama, o homem que tu ama, envolvidos em...
-Amor - Começou Rosane -Me promete que a gente nunca vai chegar á esse ponto.
-Nunca, meu amor. Nunca. -Prometeu Amaury, abraçando a esposa e a beijando com paixão, e selando o saudável reinício de seu casamento, e deixando pra trás os pervertidos Clarice e Tato, que na verdade jamais haviam sequer estado na mesma calçada de um bar de swing, mas se divertiam muito com esse tipo de história, e tinham a esperança de afastar o rótulo de "casal perfeitinho" que era, de tudo em seu namoro, a única coisa que os incomodava de fato.

2 comentários:

  1. Poxa, se esse era o segredo... pra que tanto puritanismo, né... e eu perdendo tanto tempo!
    Hahahaha!

    Achei espetacular esse texto!!!
    abraços!!!

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  2. -Imagina, só... A mulher que tu ama, o homem que tu ama, envolvidos em...
    hahahahahaahahahahaha, consigo visualizar a expressão de nojo dele.

    ''Caninamente fiel à Clarice''. Nunca tinha ouvido isso.



    Caninamente.
    Adorei.

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