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terça-feira, 31 de agosto de 2010

Chocolate




Berenice era a gostosa do bairro.
A luz que iluminava os olhos dos homens desde os velhos sem-vergonha da frente do botequim até os adolescentes repletos de espinhas e hormônios sentados na mureta da dona Rose ouvindo Hip-Hop.
Tinha figura de deusa da luxúria. Seios volumosos e quadris avantajados separados por uma cinturinha de pilão. Suas coxas eram grossas como as do Roberto Carlos, o lateral, não o cantor, e suas panturrilhas firmes fariam o zagueiro índio, do Inter, enrubescer de vergonha.
Berenice tinha cabelos longos e escorridos, eram negros e lhe caíam bem, mas ela, por alguma razão, os descoloriu, tornando-se loura e atiçando com ainda mais intensidade o imaginário dos vizinhos.
Berenice, porém, tinha em orgulho a mesma abundância que tinha em curvas. Se achava superior a todos. Considerava seus vizinhos pobres-coitados e sequer dignava-se a responder às saudações que recebia quando passava pela rua com os seios e o nariz apontados para o céu.
Berenice tinha planos de usar sua bela estampa para subir na vida. Todos suburbanos, é verdade.
Sonhava participar de um reality show, ou, quem sabe, dançar no palco de algum programa de humor e gosto duvidosos, quiçá, na pior das hipóteses, engravidar de um craque emergente do futebol.
Berenice, a despeito da pequenez de seus propósitos, era centrada, e não queria acabar como outras moças da vizinhança.
Ela não seria a mãe boazuda de um fedelho ranhento da redondeza, casada com um mequetrefe local, não mesmo.
Era, porém, um mequetrefe local que estava enamorado por Berenice.
Clécio era seu nome.
E ele não se considerava um mequetrefe. Muito antes pelo contrário, considerava-se um afortunado.
Clécio era o mais velho de uma família de seis irmãos órfãos de pai. Ele tivera que, desde cedo, ajudar a mãe a garantir o sustento da família, e conseguira isso ás custas de seus estudos. Apenas mais velho, quando seus irmãos já com alguma idade puderam ajudar a si próprios e tinham criação encaminhada, Clécio pôde pensar no próprio futuro.
Fez supletivos onde concluiu o ensino fundamental e médio. Chegou a flertar com a ideia de cursar a universidade, entretanto o custo proibitivo o dissuadiu. Trabalhou duro como assistente de obras, feirante, e office-boy até conseguir à expensa de muito suor, fazer um curso técnico e tornar-se metalúrgico, profissão que garantiu-lhe algum conforto, e até, almejar algo mais da vida.
Clécio não era ganancioso, pra ele ter o bastante para viver com o conforto de uma TV a cabo, férias no litoral norte uma vez por ano e uma pequena extravagância como uma nova chuteira de seis em seis meses lhe deixavam satisfeito, o "algo mais" que Clécio almejou foi, imaginem, Berenice.
Há que se ressaltar que Clécio, inocente que era, confundia o orgulho e a altivez vazia de Berenice com virtude, imaginando que a moça apenas daria ouvidos a um homem que fosse, de fato, comprometer-se para com ela.
Ideia que não se afastava em demasia da realidade, apenas não era um pensamento completo, afinal de contas, Berenice, de fato, estava disposta a dar ouvidos unicamente a um homem que fosse comprometer-se com ela, contanto que esse homem fosse rico. Ou, pelo menos, abastado o bastante para garantir-lhe, não apenas uma vida desprovida de sobressaltos de qualquer espécie, mas também uma dose de prosperidade perene e luxos como viagens semestrais à Europa, carros caros e roupas de estilistas afamados.
Clécio ignorava isso, e começou, então, a fazer côrte à ela.
Coisas simples, em um primeiro momento, como segurar a porta da venda para ela passar, ou carregar suas compras até em casa. Ela, porém, permanecia ignorando-o, sequer percebia sua presença.
O que era desdém em estado puro, foi encarado por Clécio como desafio, e ele não se furtaria de aceitá-lo.
Resolveu aproximar-se de dona Catarina, a mãe de Berenice, para ver se a sogra de seus sonhos lhe dava o mapa de como chegar ao coração da moça.
Extremamente honesta, dona Catarina advertiu Clécio das intenções da filha. Ressaltou que não aprovava, mas que Berenice era obstinada, e não mudaria sua forma de ser, o que significava que ela não iria sequer tomar conhecimento de Clécio e seus modestos galanteios.
Todavia, Clécio também era obstinado.
Muito.
E não desistiria fácil. Suplicou à dona Catarina que lhe desse uma luz, qualquer coisa que ele pudesse usar como arma para vencer a guerra que travaria pelo coração de Berenice.
Dona Catarina pensou, pensou, pensou, e então, como se iluminada, disse subitamente:
-Chocolate!
Clécio não entendeu.
-Chocolate? - Perguntou confuso.
-Sim, chocolate. Mas não chocolate porcaria, desses que tu compra na venda do Joca. - Explicou dona Catarina. -Chocolate bom de verdade. Não precisa ser finíssimo chocolate suíço, mas esses chocolates gostosos da Kopenhagen, aqueles bombons com licor e cereja, a Berenice adora essas coisas. Compra pra ela, manda entregar como se fosse um admirador secreto, quem sabe funciona. - Sugeriu a velha.
Clécio aceitou o conselho.
Comprou uma caixa de chocolates língua de gato e deixou-os embrulhados com um cartão sob a porta da casa de Berenice.
No cartão não se identificava, apenas dizia que a doçura do chocolate não se equiparava à doçura dos lábios de Berenice, e assinava como "Um apaixonado".
Não sabia se daria certo, mas sentiu-se orgulhoso de toda a produção. No outro dia, ao passar em frente ao prédio de Berenice, a viu na sacada, a caixa de bombons aberta sobre o parapeito, saboreando a guloseima enquanto revirava os olhos.
Chocolates, pensou Clécio.
Chocolates de todo o tipo, esse seria o caminho para o coração de Berenice. Clécio se tornou frequentador assíduo da Kopenhagen. Não só de lá, frequentava várias lojas de importados onde pudessem haver chocolates deliciosos e diferentes.
Mandava-os para Berenice três vezes por semana, secretamente se encontrava com dona Catarina para perguntar se já era momento de se revelar. A mãe de Berenice, contudo, disse que a filha continuava com seus propósitos inabalados, e que Clécio seria ridicularizado por ela se assumisse a autoria dos presentes e dos cartões, que talvez devesse desistir.
Mas, se Clécio chegou a imaginar que devia desistir, abandonou essa alternativa em seguida.
Cruzou com Berenice na rua e, ao cumprimentá-la, a surpresa: ela respondeu ao seu comprimento, até sorriu!
O chocolate, pensou Clécio, estava amolecendo o coração da mulher de seus sonhos, rompendo com seu sabor cremoso e doce a barreira de gelo que se interpunha entre ela e ele.
Mas os chocolates que ele comprava ainda não eram o suficiente, ele precisava fazer mais e melhor.
Conheceu um gourmet que fabricava chocolate, inscreveu-se em um curso, e aprendeu ele mesmo, a fazer as iguarias. Não apenas comprar aquelas barras grandes no super-mercado e derretê-las, oh, não.
Clécio passou a fazer tudo desde o cacau. Fazia o chocolate desde a matéria prima. Acrescentava aromas, sabores, nozes, flores! Temperava suas receitas não apenas com condimentos, mas também com seu inabalável amor.
Seus amigos e parentes eram as cobaias que experimentavam maravilhados as delícias que saíam da cozinha de Clécio, obcecado pelo coração de Berenice, que recebia apenas o supra-sumo da produção apaixonada do tolo enamorado.
Ela, porém, seguia aberta apenas ao chocolate, dando-lhe pouca abertura além de um eventual "oi", ou um aceno aos quais ele recebia como se fossem tesouro.
Clécio, alheio às dificuldades, seguia inabalável em sua missão de conquistar Berenice pelo estômago. Largou o emprego e torrou suas economias, viajou para a Europa para aprender novas receitas, estudou por três anos, tornou-se um mestre chocolateiro, formou-se com louvor em uma conceituada escola de culinária e fez estágios em grandes fábricas.
Voltou para o brasil ainda obcecado por Berenice, porém ao chegar, a decepção:
Sua amada estava casada.
Casara com um empresário 18 anos mais velho que ela, e que, se não era rico como ela almejava, pelo menos tinha dinheiro o bastante para garantir dois ou três dos inúmeros luxos com os quais ela sonhava.
Dona Catarina lhe explicou que não avisara antes pois não queria tirar o combustível de Clécio, tão empolgado que estava com seus cursos na Europa.
De coração partido, Clécio trancou-se em casa e, em uma noite de melancolia particularmente dolorida, debruçou-se sobre suas anotações e bolou uma receita de chocolate.
Não, qualquer receita.
A mãe de todas as receitas de chocolate.
Após experimentar à exaustão, aperfeiçoando detalhes e proporções, ele soube que alcançara o ápice, o cume, o apogeu do que um chocolate podia ser.
Escreveu a receita em uma folha de papel e a escondeu. Fez uma pequena leva do doce, e o deu para que familiares e amigos próximos experimentassem.
Sucesso.
Ninguém conseguia resistir e comer apenas um bocadinho, todos queriam mais. Cada mordida era como olhar no rosto de um anjo e receber um sorriso de volta. As pessoas reviravam os olhos ao comer o doce bolado por Clécio, sentiam as pernas tremerem, e sentiam que aquele seria um bom momento para morrer.
Clécio preparou uma porção generosa do seu chocolate secreto, que batizou de "Berê", uma porção muito generosa, e enviou para Berenice em segredo. Fez aquilo quatro vezes por semana durante seis meses.
Só então, munido da receita secreta do Berê e de amostras, foi até algumas das mais tradicionais fábricas de chocolate do país e fez um leilão de sua gloriosa criação, que foi disputada a tapas entre as companhias e vendida por uma fábula sob a condição de ele receber royalties vitalícios sobre as vendas do produto.
Clécio tornou-se rico, muito rico.
Comprou casas, carros, viajava frequentemente para a Europa para aperfeiçoar suas técnicas de fabricação de doces, colocou sua família no ramo e acabou montando sua própria fábrica, que produzia outros chocolates deliciosos.
Acabou vendendo a sua fábrica para um conglomerado internacional alguns anos depois, e ficou ainda mais rico.
Possuía tudo o que um homem podia querer, casou com uma bela e direita moça que conheceu na Bélgica, Chantal, teve três filhos e, vez por outra, ainda pensava com carinho em Berenice, a quem nunca mais viu, de modo que não soube que, após seis meses de remessas generosíssimas do Berê, se tornara uma gorducha mãe de família.
O que Clécio soube, foi que ás vezes, das mazelas da vida se pode colher frutos muito positivos, e que, de vez em quando, a amargura de um coração partido pode tornar um doce muito mais doce.

3 comentários:

  1. ''das mazelas da vida se pode colher frutos muito positivos, e que, de vez em quando, a amargura de um coração partido pode tornar um doce muito mais doce. '' - Hã, sei...( modo pessimista de plantão ativado ) rs



    Adorei o texto de hoje :)

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  2. Hum, língua de gato... me parece familiar!!!
    Além de dar água na boca, acho que vou seguir a profissão do camarada... hahaha

    Olha, eu queria ser a Berê desse cara! Nem que fosse pelo chocolate!

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