Pesquisar este blog

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Linha Cruzada



A culpa, ou mérito, dependendo do tipo de pessoa que tu é, foi da companhia telefônica.
Não fosse pela incompetência da companhia telefônica, nada daquilo teria acontecido.
Dá pra acreditar? Linha cruzada.
O telefone da irmã da Danielle por alguma razão, durante naquela noite, tocava na casa do Afrânio.
-Alô.
-Quem tá falando?
-Pra quem foi que tu ligou?
Aquele papo de "quem tá falando" na sua própria casa irritava bastante o Afrânio.
-Pra Suzana. -A voz do outro lado da linha respondeu, cheia de razão.
-Não é aqui. -Respondeu Afrânio, dando o assunto por encerrado e desligando.
Mas, claro, como Danielle tinha acertado o número, ela ligou de novo, e falou, outra vez, com o Afrânio.
-Alô.
-Suzi?
-Não, aqui não tem nenhuma Suzi.
-Mas que inferno do cacete!
Afrânio desligou, mas já ficou parado ao lado do telefone. Atendeu antes que o toque se completasse.
-Alô.
-Ah, pelo amor de Deus, cacete... Qual teu número?
-É esse pra onde tu tá ligando, moça.
-Não, não é, eu tô ligando 30288028 porcaria, que é o número da minha irmã, Suzana!
-Olha, se tu discou esse número nas três vezes, sem erro, então pode ser problema com a linha. Tenta o celular dela.
-É, vou tentar. Obrigada.
-Tudo bem.
Afrânio desligou, pensando no ridículo da situação. Contaria aquilo no trabalho no dia seguinte, na pausa pro cafezinho. Quando seus colegas xaropes começassem a contar causos onde alardeavam suas peripécias sexuais ele contaria um caso de linha cruzada... Patético. Talvez inventasse que as coisas foram mais além.
"É, ela ligou errado de novo, aí eu disse que a gente já tava quase íntimo, e deveríamos nos encontrar, aí eu fui com ela pra um motel e...".
Não.
Não era o tipo do Afrânio. Ele nem se sentiria bem inventando uma coisa daquelas, e nem teria coragem de ficar alardeando mesmo se fosse verdade.
Afrânio jantou com seu cachorro, como fazia sempre, assistiu algumas séries de TV e o noticiário, viu um pedaço de um filme que já vira mil vezes até uma parte que lhe trazia boas lembranças, depois jogou video-game. God of War Collection. Pensou em jogar God of War III, mas refreou-se. Precisava terminar os outros dois, antes.
Saiu com seu cachorro, e depois voltou pra casa, onde adormeceu bebendo coca-cola e assistindo Clube dos Cinco, pescado ao acaso na TV á cabo.
Devia ser quase meia-noite quando o telefone tocou. Afrânio acordou sobressaltado, catando o telefone com dificuldade.
-Alô?
-Oi, a Suzana tá aí?
-Pelo amor de-
-Não, não, brincadeira, olha, eu só queria me desculpar pela grosseria mais cedo, tá? É que a minha irmã tá doente, e eu tô tentando respeitar a privacidade dela, então não me enfio na casa dela, mas fico aflita pra saber notícias... Então...
-Não, não... Não tem problema, eu entendo. Conseguiu falar com ela?
-Sim, consegui, sim.
-E tudo bem com ela?
-Tudo, tudo bem, obrigada.
-Que bom...
-É, então, bom, desculpa de novo, e obrigada pela paciência. Boa noite e desculpa te atrapalhar.
Afrânio estava desligando quando foi tomado por um impulso.
-Ah! Alô!
-Sim?
-Qual teu nome?
Ela titubeou do outro lado da linha, hesitando, claro, em se apresentar pra um completo estranho que sabia o número de telefone da sua irmã.
-Hã... Danielle. E o teu?
Foi Afrânio quem hesitou dessa vez. "Afrânio". Sério. O que a mãe dele estava pensando?
-É... Hã... Afrânio.
-Afrânio?
-É... Eu sei.
-Não, não. É bonito. Era o nome do meu bisavô. Bom, boa noite, então, Afrânio. E desculpa outra vez.
-Boa noite, Danielle.
Afrânio gostou da voz da Danielle. Era uma voz bonita. "Deve ser gorda, velha e feia.", pensou. Ainda assim, tinha uma bela voz e parecia gente boa, se preocupava com a irmã e foi educada o suficiente pra pedir desculpas pela rudeza de antes.
Afrânio podia se ver apaixonado por uma mulher que tinha essas qualidades. Mas poderia uma mulher de tais predicados se apaixonar por Afrânio? Poderia, qualquer mulher, se apaixonar por Afrânio? Com aquele nome? Nutrindo os hábitos juvenis que ele nutria? Inseguro como ele era? Com a sua aparência?
Dormiu pensando a respeito.
No dia seguinte trabalhou, foi à aula, levou seu cachorro pra esticar as pernas. Quis ligar pra Danielle. Afrânio se perguntou por que ficara tão fixado por aquela voz ao telefone? A verdade era uma só. Afrânio era tão carente que se apaixonava por qualquer mulher que lhe desse um pingo de atenção, e era tão tímido que não podia ignorar as raras oportunidades que tinha de conversar com uma mulher sem precisar "xavecar", a conversa com Danielle apresentara os dois fatores.
Seria ela solteira? Mesmo se fosse, o que Afrânio faria? Ligaria pra ela e diria "Oi, é o Afrânio, quer ir ao cinema qualquer dia desses?", não, Afrânio não se imaginava fazendo isso... E se ela dissesse que não? Que não queria?
Ou pior! E se ela dissesse que sim?
E ele tivesse que ir ao encontro às cegas?
Ou pior ainda! E se ela quisesse conversar antes? E perguntasse como ele era? E ele respondesse um metro e oitenta e cinco de altura, cabelos pretos, olhos castanhos, uns noventa e cinco quilos.
E ela perguntaria "noventa e cinco quilos? Tu malhas?", e ele teria que responder que não, que estava acima do peso, mesmo. E ela iria querer saber se ele era um gordo, e ele admitiria que sim, envergonhado. E ela iria querer saber "Gordo como quem? Como o Tom Hanks no começo de O Náufrago, como o Russel Crowe em Intrigas de Estado ou como o John Goodman?", e ele riria, nervoso e responderia que tinha pensado no Phillip Seymour Hoffman, só que sem o charme, e ela diria que estava ocupada naquela estação mas que ele podia tentar de novo no outono.
Afrânio tinha medo da rejeição. Era um covarde com relação á isso. Não saberia lidar com uma rejeição direta. Ficou encarando o telefone e pensando se deveria ligar, ou não.
Longe dali, em outro bairro, Danielle pensava na linha cruzada da noite anterior. Gostara da voz do sujeito do outro lado da linha. "Afrânio"... Parecia um bom homem. Tinha uma voz paciente, era educado, soube ser firme quando ela dera uma de maluca por causa do nervosismo e da aflição. Tentou imaginar como seria um homem com aquela voz... Talvez parecesse um pouco com o Russel Crowe, em Mestre dos Mares. Pensou que seria bom sair com alguém, estava sozinha já havia alguns meses, devia ligar pra ele?
Não... Já ligara uma vez se desculpando, se ele era livre e desimpedido, entendera o recado, a bola agora estava com ele.

Um comentário:

  1. God of War + coca-cola + tv á cabo....cruzes, como isso me soa familiar hahaha, super natural se sentir tentado a jogar o III sem ter terminado os outros, muito familiar isso também!

    Ótima as categorias de gordos, enquanto ela tava achando que ele tava pra Gladiador na verdade ele tava mais pra Phillip S. hahahahahaha, muito bom.
    Pena que existe essa coisa de insegurança né? Agora fica os dois esperendo uma forcinha do acaso novamente, pena que essa coisa de acaso e linhas cruzadas não acontece todo dia :(

    ResponderExcluir