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quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Papel confortável


Eriberto entrou ligeiro no mini mercado, andou entre os corredores apanhando coisas das prateleiras rápida e mecanicamente.
Pegou um pacote de pão, uma embalagem de presunto, uma de queijo, um vidro de maionese, uma Coca-Cola dois litros e foi pro balcão.
Cara de poucos amigos.
Brigara com a namorada, Joyce, antes de sair de casa. Esquecera de ir ao mercado, ela ligara lembrando-o cerca de meia hora antes de ele sair do trabalho, e mandara uma mensagem de texto no momento em que ele batia o cartão no relógio-ponto, saindo da empresa. Ainda assim ele esquecera.
Ele era assim, esquecia das coisas. Perdia-se em pensamentos e deixava passarem algumas obrigações menores, especialmente aquelas que não faziam parte de sua rotina diária.
Desde pequeno era assim. Se sua mãe, antes de ele ir à escola, lhe dizia que ele deveria encontrar ao seu pai e á ela no restaurante onde almoçariam, e não em casa, ainda assim, ele acabava indo em casa, primeiro.
Se tinha que levar algo de diferente à escola para um trabalho, esquecia os itens pedidos.
Se tinha que encontrar a avó que chegava de Caçapava na rodoviária, esquecia da pobre velha por horas até ser alertado do compromisso.
Era distraído, as pessoas se acostumavam. Ao que as pessoas não conseguiam se acostumar era à dificuldade de Eriberto em admitir que estava errado.
Ao invés de dizer que esquecera, pedir desculpas, e prometer melhorar, e de fato, tentar melhorar, Eriberto dava desculpas. Inventava mentiras das mais diversas e elaboradas tentando esquivar-se da responsabilidade por suas ações e arrolando-se no papel de vítima.
Ao chegar atrasado e esbaforido ao encontro dos pais no restaurante, inventava que fora acossado por um larápio.
Quando a professora cobrava o material para o trabalho diferenciado, Eriberto dizia que seu cachorro comera o papel celofane e o giz de cera, e que havia passado a noite em claro com os pais na clínica veterinária.
Ao encontrar a avó quarando no sol das quatro da tarde em frente á rodoviária dizia que se atrasara por culpa de um policial corrupto que o ameaçara após ser flagrado por Eriberto surrando um indigente.
Tinha imaginação fértil, o Eriberto.
Claro, na maior parte das vezes suas desculpas não funcionavam, em outras tantas, porém, a inventividade e a riqueza de detalhes da lorota acabavam valendo-lhe vantagens, de modo que Eriberto, sendo humano, via a vantagem adquirida e se agarrava á ela, mentindo e fazendo-se de vítima sempre que a situação apertava.
Não que ele fosse um vil gênio da mentira.
Raramente prejudicava alguém que não ele mesmo, e, quando causava prejuízo á outrem, era mínimo.
Eriberto cresceu daquela forma, distraído e cobrindo os rastros da própria distração com mentiras, então, pra ele, tornou-se quase natural ver-se como vítima de uma situação fora de seu controle, até por que, era extremamente confortável.
Ao conhecê-lo, Joyce, que se tornaria sua namorada, logo notou como funcionava aquela faceta de Eriberto, e, á despeito de achar ridículo um homem feito mentir á respeito de bobagens, Eriberto tinha predicados que, na maior parte do tempo, compensavam essa pequena falha de caráter.
Vez por outra, claro, Joyce explodia em fúria com as pataquadas dele, e isso resultava em discussões acaloradas em que ela gritava que não podia sustentar uma relação com um homem-criança incapaz de assumir responsabilidade pelas suas ações, ao que ele replicava clamando ser um incompreendido, ou algo do tipo.
Fora o que acontecera horas antes.
Eriberto chegara em casa, começara á despir as roupas de trabalho para tomar banho, quando Joyce aproximou-se sorrateira como uma grande felina e perguntou-lhe onde estavam as compras:
-Cadê as coisas que eu pedi, Eriberto?
-Hân?
-As compras. A massa, os tomates, a carne moída... As coisas pra eu fazer o espaghetti à Bolonhesa? Cadê?
-Tu não vai acreditar.
-...Acho que não.
-Não, não, olha, eu fui ao mercado, comprei tudo, menos os tomates, tavam feios, comprei um vidro de molho pronto, é quase a mesma coisa-
Esse era uma característica recorrente nas lorotas de Eriberto, ele acrescentava detalhes casuais para dar veracidade ao conto, e depois, agarrava-se a eles até a morte.
-Comprei tudo, mas o sistema daquela porcaria de mercado estava fora do ar, e eu tive que deixar tudo lá, pois não tinha levado dinheiro.
-Ah, é mesmo? -Perguntou Joyce, sem expressão no rosto.
-Sim. -Respondeu Eriberto, casual, tirando as calças. -Mas olha, a gente pode sair pra comer fora, que tal?
-Eriberto, não me conta...
-O quê? É verdade, tô falando.
-Eriberto, são seis e quinze. Tu sai do trabalho ás seis. Não tem como tu sair do trabalho, passar no mercado, precisar deixar tudo no caixa por causa do sistema e estar aqui em quinze minutos.
-Eu sou um mentiroso, agora?
-Agora? Não. Tu é um mentiroso desde que a gente se conheceu, e eu sou uma trouxa de acreditar que tu podia amadurecer.
-Ah, é? Se tu é trouxa o que sobra pra mim? Que invisto em uma relação onde eu sempre sou culpado de tudo?
-Tu não é sempre culpado de tudo, tu é culpado de não assumir responsabilidade por nada, é culpado por inventar essas desculpas esdrúxulas pra tudo, e de se fazer de vítima!
Eriberto pensou em contra-argumentar, mas o papel de vítima pareceu-lhe uma boa cartada naquele momento. Vestiu-se em silêncio sob o olhar acusador de Joyce, e disse enquanto calçava os sapatos:
-Eu vou ali no mercadinho pegar algo pra gente comer, se o sistema não estiver fora do ar, ainda.
E saiu, com ar trágico de quem fora injustamente acusado de um crime hediondo.
E aí chegamos ao começo. Eriberto apanhou os ingredientes de um sanduíche, e, ao chegar ao caixa, deparou-se com um homem pouco mais jovem que ele próprio, de arma em punho, ameaçando o balconista. O jovem encarou-o com uma expressão horrorizada, estava tão nervoso quanto Eriberto e o balconista.
-Me dá a carteira, velho!- Sentenciou o bandido.
Foi um ato reflexo, Eriberto largou tudo no chão para alcançar a carteira, as compras caíram no chão fazendo um grande ruído quando o vidro de maionese estourou, a garrafa de refrigerante, porém, quase não fez barulho ao cair precisamente em cima do dedão do pé do assaltante, que, sem nenhuma intenção, apertou o gatilho da arma, que estava apontada pra cabeça de Eriberto.
A última coisa que passou pela cabeça de Eriberto, antes da bala calibre .38, foi que ele adoraria ver a cara de culpada de Joyce ao receber a notícia da Brigada.
Não adiantava, ele gostava mesmo de ser vítima.

2 comentários:

  1. hahahahahahahahahahahahahahaha muito obrigado por me fazer rir MUITO 4 hs da tarde em pleno horário de expediente !!!!!
    hahahahaha o ''-Eu vou ali no mercadinho pegar algo pra gente comer, se o sistema não estiver fora do ar.'' foi ótimo ! Que cínico ele ! Até o ultimo suspiro foi canastrão o menino !

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  2. Pois é, isso é um sujeito de princípios como não se faz mais hoje em dia, eheheheh.

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