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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Família.


Estavam no carro, haviam acabado de sair da festa com a família dela. Ela sorria satisfeita no banco do carona e massageava o ombro dele, que dirigia.
A satisfação dela era por que, durante os últimos 14 meses, doze dias e cinco horas e quinze minutos, ele vinha evitando conhecer qualquer membro da família dela.
Discutiram por conta disso várias vezes. Ás vezes de forma ríspida. Mas acabaram superando pois, em todo o resto, se davam muito bem.
Ela não conseguia entender a resistência dele em conhecer os pais dela, assim como não entendia sua resistência em apresentá-la aos próprios pais, o que ela só conseguiu no aniversário dele, já oito meses depois de começarem a namorar. Fazê-lo conhecer a família dela, porém, parecia tarefa ainda mais trabalhosa.
Ela insistia muito, chegou a marcar encontros com ele em ocasiões em que seria inevitável ele conhecer o pai ou a mãe dela, mas era inútil, ele sempre escapava na última hora, sempre dava alguma desculpa, simpática e agradável, é verdade, mas inexequivelmente vazia, para não conhecer ninguém da família dela. O que, ela não podia negar, a deixava chateada.
Nessa última vez, porém, ela planejara tudo à perfeição. Aniversário dela, em pleno sábado, ela celebraria na casa dos pais com a família à tarde. Ele disse que tinha outros planos, de levá-la para jantar à noite naquele restaurante italiano que ela adorava, depois iriam ao cinema ver o filme novo com o Matthew McConaghey, ou aquele filme francês que ela queria ver, e depois à danceteria que ela frequentava, onde encontrariam as amigas dela.
Tantas coisas que ela adorava e ele detestava (Matthew McConaghey, cinema francês, danceteria e as amigas dela) eram sinal óbvio de que ele oferecia uma permuta: Ele iria com ela fazer todas essas coisas de mulher para não precisar conhecer a família dela.
Se em um primeiro momento a ideia pareceu atraente, seu orgulho feminino falou mais alto e ela resolveu jogar pesado, também. Fez uma contra-proposta do tipo "Manter fora do alcance das crianças":
Ele a pegava, já ao final dos festejos com a família dela, á tardinha, conhecia os parentes dela, cantava parabéns, comia uma fatia de bolo, e eles iriam à churrascaria que ele adorava, depois ao cinema, onde veriam o filme de super-herói ou de ação que estivesse passando, e depois ao motel, onde ela tomaria um pilequinho leve e ficaria à sua inteira mercê.
Obviamente que os hormônios dele fizeram com que aceitasse a proposta dela.
Combinado, cumprido. Ás cinco e quinze da tarde ele surgiu, tímido, na porta da casa dos pais dela. Foi recebido pelo tio Brandão, um sujeito gordo e alto com uma farta barba grisalha, que o abraçou aos gritos de "até que enfim".
Ele, instrospectivo que era, sorriu sem-jeito, mas resignou-se. Não podia ficar pior, certo?
Errado. Aquele pensamento passou pela sua cabeça a tarde inteira.
Todos os parentes dela eram expansivos ao extremo. O irmão magro e meio corcunda que dava socos no braço do interlocutor pra chamar sua atencão durante as conversas, a tia gorda que tinha suíças, a magra cujo nariz parecia o bico de uma ave de rapina. O pai dela que conversava com ele acariciando a bainha vazia de uma faca enorme que devia estar em algum lugar por ali, e a mãe dela, que tinha uma pilha de livros religiosos de todos os credos na mesinha de centro, todos eles conversavam falando alto, com grande alarido, e quando sabiam quem ele era, corriam em sua direção em desabalada carreira como se fossem búfalos enfurecidos e o abalrroavam como o navio do Sea Shepherd Farley Mowat fez com baleeiros em águas internacionais.
Ao abalrroamento seguiam-se longos abraços, beijos babados e emaranhadas no cabelo, o que para um sujeito encabulado como ele, era doloroso emocionalmente, quando não era, de fato, doloroso fisicamente.
Porém, ele sobreviveu. Por volta das sete e meia da noite ele conseguiu convencê-la a ir embora, entrou no carro, e foram até a churrascaria onde jantaram. Depois ao cinema, onde viram um filme de ação descerebrado com o The Rock, e depois ao motel onde ela, de fato, tomou o tal pilequinho leve, e fez alegorias de alcova que o deixaram mais que satisfeito.
Mais tarde, após tomarem banho juntos e trocarem novas carícias, ela tocou-lhe os cabelos e perguntou:
-Viu? Nem foi tão ruim.
-Ruim? Não teve nada de ruim. Foi sísmico. Cósmico. Mágico.
-Não, bobo... Isso sempre é bom. Tô falando de conhecer a minha família.
-Ah... - Ele respondeu sem lá muita convicção.
-Quê? Foi ruim conhecer a minha família?
-Não, não... Foi... Foi bacana... Interessante...
-Tu não gostou deles?
-Gostei, claro... Eles são... São... Interessantes... São...
-São o quê? Fala, não tem problema. - Disse ela, meiga.
-Ah, amor... Eles são legais, mas são meio estranhos, né?
-Como estranhos? - A meiguice desapareceu.
-Nah... Estranhos no bom sentido, sabe?
-Não. Que bom sentido tem em ser estranho?
-Olha, deixa pra lá, tá? Eu me expressei errado, eles não tem nada de estranhos.
-Eu sei.
-São perfeitamente normais.
-Exato.
-Mais normais que eles, impossível.
-Mais normais que os teus pais, pelo menos.
-Quê? Que tem os meus pais?
-Nada...
-Não, não... Fala aí. O que tem os meus pais?
-O teu pai é um bebum e a tua mãe uma perua. Pronto, falei.
-E a tua família é a família Addams!
-Quê?
-É isso aí, mesmo, "estranhos" não faz justiça áquela gente estúrdia que tava lá.
-"Estúrdia"?
-É, estúrdia. Na hora que eu entrei na casa dos teus pais eu me senti feito o Christian Slater entrando no Monastério de O Nome da Rosa! Aliás, aquela tua parentada doida lá parece o elenco de apoio inteiro daquele filme.
-Some daqui, cafajeste! Falso!
Ele apanhou as roupas, se vestiu e saiu sob os xingamentos dela. Quando ela silenciou ele abriu novamente a porta, colocando a cabeça pra dentro do quarto e gritou:
-E teu irmão é o Salvatore!
Só então foi embora.
Enquanto esperava ela esfriar a cabeça e sair para fazerem as pazes, ele pensava que era exatamente por esse tipo de coisa que preferia manter as famílias fora da saudável relação que tinham. De fora, ninguém é normal.

Um comentário:

  1. "teu irmão é o Salvatore" Puxa, essa foi de doer!!
    Acho que não perdoava!!!

    Mas o fato é que, de fora, ninguém é normal mesmo! E falando K entre nós e tbm não acho minha familia não é lá modelo e com certeza nosso amigo aí teria nomes e personagens piores que os relatados no teu post!!!

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