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terça-feira, 26 de novembro de 2013
Crônicas do Observador
O calor era, disparado, a pior parte do dia até ali. Daquele dia em particular. Da vida, de modo geral, o calor provavelmente não estaria nem entre as três piores coisas. Sempre havia algo pior coaxando e pulsando feito um grande batráquio onde antes estivera o coração do Observador.
Andava pra casa, ansiando por tomar um banho frio, vestir roupas confortáveis e se esparramar sob o ventilador. Em seu caminho alternativo, parou à margem da avenida de mão dupla, seis pistas, tráfego frenético, e aguardou o sinal para atravessar.
Fustigado pelo sol inclemente, percebeu o carro que parou junto ao semáforo da avenida movimentada bem sob o viaduto. Acabou intrigado pelo movimento súbito dentro do automóvel e estacou parado enquanto os demais pedestres cruzavam a rua aproveitando o sinal de andar no farol.
Enquanto os automóveis aguardavam a luz verde, a porta do automóvel, um coupé prata de marca alemã, se abriu, e um cachorro médio, um óbvio vira-lata, desses com uma cara simpática, pelo baixo e cinzento que a gente sabe que não tem serventia exceto ser um fiel companheiro, desceu, ganhando o canteiro central.
Foi estranho perceber que após o cachorro descer, mais ninguém saiu do carro. Mais estranho ainda foi perceber que após o sinal abrir, o carro arrancou e seguiu o fluxo, deixando cão para trás.
O animal, de início, não pareceu confuso.
Andou pelo canteiro por alguns metros, e então parou, olhando em volta. Por aflitivos segundos ele ficou num vai, não vai, fazendo arriscadas menções de atravessar a rua em meio ao violento trânsito de veículos do meio da tarde. Seus instintos, porém, lhe foram de valia, e ele soube esperar até que o sinal voltasse a se fechar para cruzar a avenida em direção à uma das calçadas, felizmente a mais larga, onde há um espaço gramado em frente a algumas lojas.
Ali, o cão sentou-se sobre os quartos traseiros, e ficou observando o tráfego por longos minutos.
Quinze ou vinte.
Então deitou-se no gramado, e continuou vigilante, observando a rua na perspectiva de que, quem quer que o tivesse deixado lá, fosse voltar para apanhá-lo.
Isso não aconteceu, porém. Após algumas horas, o cão finalmente se levantou, e saiu andando na direção oposta à seguida pelo automóvel, irremediavelmente sozinho.
Não vamos entrar no mérito do abandono.
O Observador sabe que esse tipo de ação de inominável baixeza é uma ocorrência de certa regularidade. Infelizmente não começa época de veraneio sem que as redes de TV noticiem a quantidade alarmante de abandono de animais em estradas e avenidas.
Apesar de sentir o sapo em seu peito dolorido pelo cão, foi outra coisa que ocupou a mente do Observador.
É lugar comum dizer que em algum momento da vida, todos nós, ou ao menos a maioria, somos esse cachorro.
Que todos nós somos abandonados e descartados em algum ponto de nossa vida e que isso infelizmente é algo pelo qual temos que passar.
Menos óbvio e infinitamente pior, é saber que em algum ponto, todos nós, ou ao menos a maioria, também já foi o ser humano miserável dentro do carro.
E que isso também é algo pelo qual temos que passar, já que ser desprezível e vil e agir de acordo parece ser a faculdade fundamental da condição humana.
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