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segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Resenha DVD: Um Lugar Silencioso


Não foi pela falta das mais convincentes recomendações que eu não fui ao cinema assistir a Um Lugar Silencioso.
Pelo contrário.
Foi unicamente pela minha falta de paciência recente para catar um horário legendado ente os dublados e o público com seus celulares e conversas que o sucesso de John Krasinski foi outro dos filmes que eu pulei no cinema para conferir apenas no conforto silencioso de minha casa, e Um Lugar Silencioso me ajudou a passar os mais tensos noventa minutos em uma tarde de domingo desde que eu larguei o Internacional de mão.
O roteiro de Bryan Woods, Scott Beck e do próprio Krasinski é uma aula de tensão. Enxuto como os melhores filmes de horror devem ser.
O início do filme mostra um letreiro dizendo que é o dia 89 em um mundo recentemente pós-apocalíptico.
Uma família anda na ponta dos pés por dentro de um supermercado de cidade pequena que, de imediato, evoca The Last of Us.
A família, formada pelo pai (Krasinski), a mãe (Emily Blunt) e seus três filhos. Uma menina mais velha (Millicent Simmonds, que eu não sei se é surda como sua personagem, mas faz um trabalho excelente de uma forma ou outra), Noah Jupe (de Extraordinário) e o caçula (Cade Woodward), vasculha a loja abandonada em busca de remédios.
Eles se comunicam por sinais e tomam extremo cuidado para não fazer nenhum ruído. Nós rapidamente entendemos que este é um mundo onde o ruído é muito perigoso.
Essa visita à loja, não termina bem.
Essa sequência inicial de Um Lugar Silencioso é um belo cartão de visitas. Ela estabelece as regras do mundo onde a história se desenrola e apresenta os personagens com os quais a audiência irá se preocupar na trama central do filme, que se desenrola cerca de um ano mais tarde.
A família vive em uma fazenda. A personagem de Blunt está nos estágios finais de uma nova gravidez, o pai segue tentando consertar o aparelho auditivo da menina mais velha enquanto junta todo o tipo de informação que consegue acessar para entender as forças e fraquezas desse inescapável perigo, e a família tenta, da melhor forma possível, se preparar para receber seu novo membro. Um recém nascido em um mundo onde o som pode ser mortal.
A econômica hora e meia de Um Lugar Silencioso é tanto um triturador de nervos quanto uma aula de cinema de gênero.
O diretor e sua equipe técnica, assim que estabelecem as regras do mundo, passam a mexer impiedosamente com as expectativas da audiência. Nós somos confrontados com a imagem de armas, despertadores, pregos espichados pra fora do degrau de uma escada... E somos forçados a ficar na ponta da cadeira na expectativa do que irá acontecer quando esses objetos cumprirem seus objetivos e atraírem as criaturas (uns monstrões que parecem uma mistura do pokémon Scyther com os lickers de Resident Evil e o Venom...).
O investimento emocional que o roteiro consegue promover praticamente sem usar diálogos é digno de louvas, especialmente ao se levar em consideração a metragem modesta do filme, e todo o clímax do longa é um teste pra cardíacos se valendo das deixas criadas pelo roteiro e da ambientação, a casa de fazenda que Krasinski e companhia estabelecem quase como um personagem do filme num dos melhores usos da geografia de um set em um filme de horror desde o primeiro Invocação do Mal.
Nesse ambiente que a audiência logo aprende a conhecer, acompanha os esses personagens em uma veloz e i tensa jornada de adaptação em nome da sobrevivência desafia do os próprios limites.
Um Lugar Silencioso poderia ser perfeito se, por vezes, a trilha sonora de Marco Beltrami não parecesse tão intrusiva com seus instrumentos de corda antecipando sustos.
Ainda assim, o longa de John Krasinski é mais do que louvável.
Ao transformar uma das mais fundamentais expressões humanas em um perigo mortal, e manter o público roendo as unhas durante praticamente cada segundo de filme sem que ninguém se sinta enganado em nenhum momento, o diretor já coloca Um Lugar Silencioso na linha dos melhores e mais competentes thrillers do cinema. Ao fazê-lo sem se abster de construir investimento emocional da audiência através de relações familiares dolorosamente palpáveis, ele dá um passo além, e eleva seu filme a um patamar ainda mais alto.
Obrigatório. Um dos filmes do ano.

"-Se nós não pudermos protegê-los, quem somos nós?"

sábado, 25 de agosto de 2018

Muito Teu


Eu te quero
De formas sôfregas
Como nunca quis antes a ninguém.
Eu quero agarrar tua cintura
Beber teu suor
Segurar teu cabelo
Cheirar tua pele
Inalar teu hálito
Beijar tua boca
Beijar teu pescoço
Teus seios
Barriga
Pés
Tuas coxas.
Eu quero beijar tuas coxas.
Tua pelve
Te beijar inteira
Me inebriar com o almíscar entre as tuas pernas.
Te chamar com minhas palavras
Te venerar com minha língua
Te satisfazer com meu pau
E o que mais tu quiser.
Porque ainda que haja a coisa de pele
Ainda que haja o tesão
Eu sou muito mais teu.
Sou teu de corpo
De mente
E de coração.

quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Mágica


Segunda de noite, sozinho no escuro assistindo ao futebol.
Barulho de água em algum ponto da casa.
A descarga do banheiro de novo?
Sentiu um calafrio. Na última vez que algo assim acontecera, a caixa de descarga do banheiro despencou.
Ele acordara com o ruído de coisas caindo no banheiro e se deparou com uma pequena inundação e cacos de azulejos e cano espalhados pelo piso de lajotas cor-de-laranja. O resultado foi uma operação que só terminou dois dias e um bocado de trabalho de encanador depois, trabalho de encanador que ele próprio tivera de fazer, diga-se de passagem, e que não ficara cem por cento, mas meramente funcional, o que é, todos sabemos, um patamar demasiado amplo.
Levantou-se rápido e correu até o banheiro já esperando pelo pior. Aquele apartamento guardava um sem número de surpresas, ele descobrira, a maior parte delas desagradáveis.
Mas não.
A descarga estava OK.
Ainda funcional. Aquele filete de água vazando pelo cano quando a descarga era acionada ainda o incomodava, mas enfim... Precisava sentar e observar os canos, algo que, definitivamente, não queria fazer, ou contratar um encanador o que, segundo seus cálculos, só poderia acontecer em meados de outubro, se tudo desse certo...
Não era a descarga, enfim. Muito bem. Onde poderia ser?
Olhou a pia do banheiro, tudo certo. Nem sequer pingava.
Foi até a cozinha, tudo OK. Área de serviço?
Tudo normal. Tanque de roupas e máquina de lavar... Tudo no lugar. Não era aquilo, também.
Provavelmente fora na casa de algum vizinho. Paredes finas demais no prédio. Ouvia o sexo dos vizinhos do andar de cima quando a Bruna do 52 se empolgava. Devia ser isso. O vazamento era na casa de algum vizinho e tomara que não fosse na casa de nenhum com quem ele compartilhava paredes.
Voltou para a sala. Sentou-se no sofá e espichou as pernas.
Outra vez.
Barulho de água.
Olhou em volta, alerta como um cão de guarda. Mas não era capaz de apontar a origem do ruído, que, novamente, cessara.
Aumentou o volume da TV e se concentrou no jogo.
Futebolzinho de segunda à noite era um dos que ele mais gostava de acompanhar, por alguma razão.
Novamente o ruído de água. Desta vez, porém, não se levantou. Apurou o ouvido tentando estabelecer a origem do barulho. Não parecia na casa de nenhum vizinho. Era próximo. Muito próximo.
E pequeno.
Parecia vir...
Sem olhar, conseguiu estabelecer a fonte do barulho: Sua caneca de refrigerante.
A peça de louça estava pousada sobre a pilha de livros que repousava em cima de um gaveteiro baixo que ele mantinha ao lado do sofá. Ele não olhou, pois, de imediato, supôs que algum inseto caíra dentro de seu refrigerante. Se estava fazendo barulho, era um artrópode com algum tamanho. A possibilidade de ser um besouro era remota, então, conjecturava que uma enorme barata devia ter subido pela lateral de sua caneca e caído dentro de sua bebida, o que, se não era nenhuma tragédia de proporções bíblicas, também não era a mais agradável das ocorrências.
Enquanto conjecturava quais deveriam ser os próximos passos depois de obviamente virar o conteúdo da caneca na privada, dar a descarga (ver, com desgosto, o pequeno filete de água escapulir de entre a junção dos canos) e levar a caneca de volta pra cozinha, pensando se poderia voltar a usá-la após lavar a peça com água fervendo e algum detergente ou saponáceo, ocorreu-lhe que, talvez, não fosse uma barata.
Estava frio naqueles dias. Bem frio.
As máximas não passavam dos quinze graus no auge da tarde e agora mesmo ele estava de calção, como era seu hábito em casa, mas também de meias e pantufas, e vestindo um agasalho por sobre a regata que usava como pijama. A temperatura deveria ser de, no máximo, dez graus na rua, e o inverno, ele bem sabia, não era época do domínio das baratas.
Mantinha o apartamento limpo. Ao menos limpo o suficiente para um homem solteiro morando sozinho. Mesmo no verão não tivera uma infestação de baratas, quando muito umas cinco ocorrências o que fora, ele pensava, bem razoável considerando-se tudo.
Era improvável que agora, houvesse uma barata dentro de sua caneca de refrigerante.
Podia ser...?
Uma lagartixa?
Ficou aflito. Não tinha medo de lagartixas, mas tinha admitida aflição com relação aos pequenos reptilianos. Arrependia-se profundamente de ter matado, por acidente, duas lagartixas em sua vida, ambas esmagadas por portas e janelas que ele fechou em cima dos pobres animais sem percebê-los, e uma vez, usara uma tábua e uma revista para tirar uma lagartixa de dentro da pia da cozinha de seu escritório onde ela ficara presa após cair, mas a ideia de tocar em uma lagartixa lhe causava uma sensação de repulsa que não sabia explicar. Não era medo, nem era nojo. Mas uma inexplicável aflição oculta em algum recôndito obscuro de sua mente.
Fosse como fosse, seu plano de virar a caneca na privada ironicamente fora por água abaixo. Se lhe era fácil esmagar, envenenar ou afogar uma barata, eram outros quinhentos matar uma lagartixa de qualquer uma dessas maneiras. Simplesmente não podia.
E, mais que isso, precisava agir rápido, pois não queria que a lagartixa se afogasse em seu refrigerante. Por alguma razão, uma lagartixa morta parecia pior do que uma lagartixa viva na caneca para fins de higiene e futuros usos da peça.
Virou-se no escuro para mirar a caneca ao seu lado, iluminada parcamente apenas pela luz da tela de 42 polegadas pouco mais de um metro e meio de distância, e tentou discernir a figura da pequena criatura debatendo-se dentro do recipiente pensando em pegá-lo com delicadeza e virar o conteúdo com cuidado no tanque da área de serviço de onde a lagartixa poderia seguir seu caminho comendo baratas e mosquitos até o fim de seus dias.
Porém, para sua surpresa, não havia lagartixa debatendo-se dentro da caneca. Tampouco o cadáver de uma barata flutuava na bebida escura.
À primeira vista. Quase de relance, teve a impressão de ver com a ponta da visão periférica uma pessoa diminuta apoiando-se na borda da caneca como um nadador descansando à beira da piscina após muitas braçadas.
Seria possível que algum brinquedo caíra dentro de seu refrigerante?
Mas não havia brinquedos nas imediações de onde a caneca estava, e entre as figuras de ação que sim, ele mantinha em uma estante perto do banheiro, não havia nenhuma boneca daquelas dimensões...
Seria uma peça de alguém?
Seria possível que as crianças do 74 tivessem jogado um brinquedo lá de cima, e acertado sua caneca?
Sim... Seria possível se fosse um dia de verão, com sua caneca descansando na janela e Sophia e Enzo acordados. Mas ele sabia de ouvido que os dois já dormiam à essa hora, e, além do mais, suas janelas estavam fechadas.
Levou a mão para pegar o brinquedo de dentro do refrigerante enquanto se virava devagar, ainda prestando atenção ao jogo, mas, para seu horror, assim que fez menção de completar o movimento, a pequena figura, rápida como um raio, mergulhou no líquido cor de caramelo desaparecendo com um pequeno barulho de água. O mesmo splash contido que ele havia ouvido antes.
Tomado de surpresa, hesitou em continuar se movendo.
Riu sozinho por um momento.
Estaria delirando?
Não bebia álcool. Não usava drogas de nenhuma espécie. Sequer tomava remédios exceto um eventual Cefaliv quando sofria com enxaquecas ou algum anti-inflamatório quando as dores musculares o afligiam.
Seria possível que estivesse desenvolvendo alguma doença mental?
Estaria desenvolvendo esquizofrenia? Alucinações visuais eram coisa de esquizofrenia ou só as auditivas?
Estaria sofrendo alucinações por conta de alguma intoxicação alimentar? Intoxicações alimentares realmente podiam causar alucinações conforme aventara Ebenezer Scrooge em Um Conto de Natal?
Era a única explicação, certo? Quer dizer, se ele não bebia ou se drogava... Ou estava sofrendo os efeitos de uma intoxicação alimentar, considerando-se que intoxicações alimentares poderiam causar alucinações, ou desenvolvera algum transtorno mental tardio.
Riu de novo.
Apanhou a caneca larga de louça vermelha, e a trouxe para perto dos olhos.
O conteúdo parecia negro à luz azulada da televisão, e ele virou levemente o recipiente para movimentar o fluído em seu interior e ao fazê-lo quase se derramar pela borda, foi capaz de divisar, com assombro, a pequena figura de não mais do que oito centímetros de altura, dentro da caneca.
Não era uma pessoa. Poderia ser um tipo de girino, talvez?
De onde saíra um girino dentro de sua bebida?
Levantou-se, caneca na mão, e acendeu a luz da sala. Virou a caneca novamente. O pequeno ser lá dentro do fluído, agora parcialmente translúcido, tornou-se mais nítido.
Teve certeza:
Enlouquecera.
Dentro da caneca havia uma sereia. Literalmente uma pequena sereia de oito centímetros de altura, nadando em seu refrigerante. A porção feminina da diminuta criatura era uma moça de cabelos escuros com braços finos mas bem proporcionada, e sua porção peixe parecia laranja ou avermelhada. Ele não sabia precisar por conta da cor da Coca-Cola. Ela tentava nadar para o fundo do refrigerante aparentemente numa tentativa de se esconder novamente, mas à essa altura era impossível. Ele trouxe a caneca para perto dos olhos, bem embaixo do spot da lâmpada.
A criatura dentro do líquido escuro, percebendo a futilidade de seus esforços para se ocultar, cessou, e o encarou. Parecia envergonhada.
Ele ficou olhando para a pequena figura, aturdido, perguntando-se se aquilo estava de fato acontecendo, ou se ele estava sonhando, ou tendo um delírio de alguma espécie.
A sereia dentro da caneca pareceu perceber a confusão dele. E sinalizou com os braços para que ele chegasse mais perto.
Incapaz de contra-argumentar, ele aproximou o ouvido da boca da caneca.
A criatura falou, com uma voz que era pouco mais que um sussurro. Falou a respeito das benesses de aceitar a magia oculta das coisas. De ver o que outros não viam. De aceitar o imponderável. Ela falou e falou por horas, apontando cada um dos benefícios de abrir o coração para as coisas mágicas do mundo. Para a possibilidade que que há coisas que nossos olhos não podem ver, mas que estão ali, ao redor de nós, maquinando e realizando às escondidas.
As palavras dela eram agradáveis. O mundo com o qual ela acenava, também. Era, ao mesmo tempo, maior e mais confortável. Mais povoado e mais simples.
Parecia uma espécie de utopia idílica convivendo em paralelo com uma vida suja e complicada.
Já amanhecia quando ela terminou de falar, lhe dizendo o que ele precisava fazer para abraçar aquela outra realidade. Bastava que ele abrisse o coração e acreditasse. Bastava que levasse a sereia até a água, e a libertasse.
Apanhou a caneca, abriu a porta do apartamento, e saiu.
Andou os cerca de quatrocentos metros que separavam sua casa da orla revitalizada do Guaíba, e, parando em um dos deques de madeira, escorou-se na guarda de metal, e olhou para dentro da caneca. A diminuta sereia lhe sorria.
Sorriu de volta, e levou a caneca aos lábios. No último vislumbre que teve da sereia, ela fazia uma expressão de surpresa.
Bebeu o conteúdo da caneca, uma Coca-Cola já sem gás, quase um xarope, em três grandes goles. Não houve nenhum calombo em meio ao líquido.
Segurou a caneca vazia pela alça apoiado no parapeito e olhou a neblina que se deitava sobre o lago com satisfação.
Criaturas místicas, entes divinos e reinos ocultos que fossem catar coquinho. Ele não precisava de nada disso. Já tivera seu quinhão de completude quase inverossímil nos braços. E era tão palpável quanto perfeita.
Era toda a mágica de que precisava em sua vida.
A vislumbrava toda a vez que ela lhe dirigia a palavra.
Espreguiçou-se e voltou pra casa.

terça-feira, 21 de agosto de 2018

Resenha DVD: Tomb Raider: A Origem


Eu ainda me lembro de, em meados de 2002, talvez, ter comprado uma revista com Angelina Jolie caracterizada como Lara Croft na capa e pensado "Nossa, ficou muito igual!".
Eu jamais havia jogado Tomb Raider. Na época em que os primeiros jogos pulularam no Playstation One, eu era um jogador de Nintendo 64, e apenas assistia aos meus amigos jogando Tomb Raider, Resident Evil e outros games que a Big N não tinha em seu catálogo.
Tenho quase certeza de que fui ao cinema ver Lara Croft - Tomb Raider, e certeza absoluta de que achei uma bomba. Não havia Angelina Jolie de shortinho e regata justa que fizesse aquele filme funcionar.
Não posso dizer, também, que tenha sido efeito dos filmes (assisti ao segundo, A Origem da Vida no cinema, também. Era igualmente medonho.) eu jamais ter jogado nenhum Tomb Raider.
Talvez tenha sido apenas o fato de eu não ter jogado os primeiros games da franquia... Provavelmente foi isso. Porque quando o reboot da série foi lançado para PS3, eu comprei, joguei e curti. Inclusive esperando ansiosamente pela estréia tardia da sequência para PS4 (o game passou coisa de um ano sendo exclusividade do X-Box), e agora já penso no tamanho do golpe na minha carteira com o terceiro game da série sendo lançado junto com Homem-Aranha e FIFA 19 no mês que vem...
Enfim, a questão é que esses novos jogos de Tomb Raider oferecem uma heroína muito mais interessante do que os games antigos.
A nova Lara feita de pixels é uma personagem mais viva, com um espectro emocional mais profundo e comportamento mais humano, algo que as narrativas de games mais recentes têm tentado incutir em seus protagonistas para tornarem-se mais cinematográficos.
Os dois últimos Tomb Raider não chegam a ser The Last of Us, God of War 4 ou os dois últimos capítulos de Uncharted (não considerando o spin-off que não joguei e nem jogarei) mas eu diria que estão quase no mesmo patamar.
Por isso não me surpreendeu descobrir que um novo filme de Lara Croft estava em produção, e nem que a base para tal filme seria, justamente, a nova leva de games.
Os estúdios querem franquias, e Tomb Raider é uma franquia em potencial.
A escolha de Alicia Vikander para o papel principal, essa sim, me surpreendeu. Vikander é uma ótima atriz, mas não é nada parecida com nenhuma das encarnações de Lara nos games, e nem sequer é inglesa, algo que já pesara contra Jolie e seu sotaque britânico fajuto, mas enfim, se o filme fosse bom, esse seria o menor dos problemas (embora muita gente ainda pegue no pé de Keanu Reeves com seu vergonhoso sotaque inglês em Drácula...).
De qualquer forma, eu resolvi deixar pra experimentar esse Tomb Raider: A Origem, apenas em DVD já que filmes de videogames, em geral, não valem a película em que são filmados, e, pra ser bem honesto, olhando em perspectiva, não acho que tenha tomado a decisão errada...
Tomb Raider: A Origem mostra Lara Croft (Vikander) uma jovem de vinte e poucos anos que leva uma vida de apuros em Londres.
Lara trabalha como mensageira de bicicleta, não tem grana pra comer, não tem grana pra pagar a academia onde pratica MMA, mal tem dinheiro pro aluguel e se vira como pode pra se manter.
Lara, porém, poderia fazer muito mais do que isso.
Basta uma assinatura para que ela se torne a herdeira do império empresarial e da lauta fortuna de seu pai, lorde Richard Croft (Dominic West). Lara hesita em fazê-lo porque, ao assinar tais papéis, ela estaria aceitando que lorde Croft morreu.
Apesar de estar desaparecido há sete anos após ir para o Mar do Diabo na costa japonesa em busca da tumba da imperatriz japonesa Himiko, o corpo de Croft jamais foi encontrado, as buscas jamais renderam frutos e ninguém sabe, sequer, em qual das centenas de ilhas da costa japonesa ele desapareceu.
Eventualmente, Lara resolve aceitar suas responsabilidades como herdeira da fortuna e do nome de sua família, mas ao fazê-lo, encontra um quebra-cabeças de pistas deixado por seu pai, um quebra-cabeças que pode levá-la diretamente até onde Richard foi.
Indo contra as ordens explícitas do último testamento de lorde Croft, Lara parte para a Ásia, onde se depara com o alcoólatra capitão Lu Ren (Daniel Wu) filho do homem que levou Richard até a ilha mítica de Himiko. Juntos os dois partem para a maior aventura de suas vidas, uma aventura que se torna potencialmente letal quando o misterioso arqueologista transformado em mercenário Mathias Vogel (Walton Goggins) surge entre Lara e sua missão, forçando a jovem a deixar a busca por seu pai de lado, e se concentrar na própria sobrevivência.
Eu devo dizer que há muitas coisas bacanas em Tomb Raider: A Origem, mas que, em sua imensa maioria, elas jamais vão muito além da intenção.
Uma das coisas que realmente funciona é Vikander.
A atriz sueca está visivelmente se esforçando para tornar o arquétipo de figura heroica tão humano quanto possível. Seus gritos de dor e de raiva são agudos. Em momentos de tensão podemos ver as lágrimas em seus olhos mesmo quando elas não se derramam, e sua voz treme quando ela está sob grande estresse.
Mesmo as coisas que não fazem sentido, como uma moça de um metro e sessenta e seis e cinquenta e nove quilos sendo capaz de subjugar brutamontes com trinta centímetro a mais de altura e o dobro do peso, são retratados de maneira a fazer a audiência comprar a ideia de que Lara é muito rápida, esperta, briguenta e luta sujo, o que, aliado à suspensão de descrença que um filme como Tomb Raider demanda, faz sentido.
Ajuda o fato de o diretor norueguês Roar Uthaug filmar Lara o tempo todo como se fosse uma atleta olímpica ou uma escultura.
Com sua figura esguia aparentemente pele e músculo, Vikander vende o peixe de Lara de maneira dedicada, e, mérito do roteiro de Geneva Robertson-Dworet e Allastaire Siddons, jamais parece uma mulher atuando num papel escrito para um homem, algo que acontecia com Angelina Jolie.
Essa Lara é empática, tão frágil quanto resiliente, e se ressente dos apuros pelos quais passa, física e emocionalmente.
Num momento que parece tirado do game de 2013, Lara precisa digerir o fato de que matou pela primeira vez de uma maneira que poucos filmes de ação se atreveram a mostrar, e com um comprometimento que poucos intérpretes conseguiriam oferecer em um longa do tipo.
Outra boa sacada do roteiro de Dworet e Siddons é uma sugestão de melodrama que permeia todos os personagens centrais. Lara, Lu Ren e Vogel, todos são pessoas que se ressentem da falta de suas famílias. Os dois mocinhos lamentam a perda de seus pais, enquanto Vogel está perdendo o crescimento de suas filhas. Essas tentativas de colocar profundidade em seus protagonistas e antagonistas é louvável, e é uma pena que não funcione tão bem quanto se gostaria.
No quesito ação, há uma ótima sequência com Lara e um antigo avião da Segunda Guerra Mundial que poderia perfeitamente ter saído de um filme de Indiana Jones, é provavelmente o ponto mais alto do longa no que tange à proximidade com o material-fonte, com todos os elementos que os últimos Tomb Raider emprestaram de Uncharted (que por sua vez já havia emprestado de Indy).
Infelizmente, apesar de termos todos esses pontos positivos, também temos uma série de elementos negativos.
A trama simplesmente não se sustenta, e me incomoda um pouco que a história que segurava muito bem o game de 2013 (e um pouco da história da sequência, também) tenha sido diluída para o filme de uma maneira tão insatisfatória.
Outro problema é que, à certa altura, os daddy-issues de Lara começam a ficar quase desconfortáveis (pense em Chandler perguntando qual a profissão do pai de Rachel ao perceber que ela é obcecada por médicos.), e a sofrência psicopata de Vogel se torna algo aborrecida enquanto Lu Ren é simplesmente escanteado durante praticamente todo o terceiro ato.
Some-se a isso que as armadilhas da tumba de Himiko são todas bem bobinhas, e que depois de Lara deitar a porrada em mercenários de dois metros de altura e cento e cinquenta quilos armados com metralhadoras, Vogel não é exatamente um sujeito ameaçador e Tomb Raider: A Origem não consegue sequer ficar no zero a zero e ser um filme nota cinco.
O longa se encerra com a sugestão de uma sequência que eu não sei se a bilheteria modesta, abaixo dos 275 milhões de dólares mundiais justificaria, mas, se ouver um Tomb Raider 2, é importante ressaltar que Alicia Vikander merecia um filme melhor.

"Todos os mitos são fundamentados em realidades."

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Resenha DVD: Desejo de Matar


Meu avô era um rematado fã de Charles Bronson. Era fácil fazê-lo ver um filme: Bastava que Charles Bronson ou Silvester Stallone estivessem na tela.
Talvez porque o seu Henrique se identificasse com ambos. A exemplo de Stallone, ele fora um apaixonado por boxe. Não fizera filmes a respeito, mas fora campeão da nobre arte na Argentina, onde viveu por alguns anos. E, a exemplo de Charles Bronson, tinha o físico compacto e sólido de um lutador encimado pela cara de um minerador siberiano. Ao lado de meu avô eu assisti a vários filmes de Charles Bronson. Kinjite, O Grande Búfalo Branco, Os Doze Condenados, e, obviamente, a série Desejo de Matar, onde Bronson interpretava um arquiteto novaiorquino que após ter sua família atacada por criminosos colocava em prática seu treinamento da época da Guerra da Coréia e levava terror aos bandidos que brutalizaram sua esposa e filha e todos os outros bandidos incautos que têm o azar de cruzar seu caminho.
Kersey entrou, se não no imaginário popular, no meu imaginário, como a figura definitiva do justiceiro durão que faz o que considera certo transformando vingança em justiça.
O personagem já era excessivo na época em que as sequências dos filmes originais foram lançados. Se o primeiro fazia algum sentido com sua história tomando lugar na violenta Nova York de 1974, e o segundo, de 1982 tornava a família Kersey a mais estatisticamente azarada dos Estados Unidos, do terceiro em diante as coisas simplesmente descambaram com Kersey sendo um quase super homem cuja mira e a força sobre-humana só aumentava conforme ele se aproximava dos setenta anos de idade. O quinto filme, de 1994, eu nem me lembro bem de ter assistido, mas o terceiro (eu acho) onde Kersey enfrentava uma gangue de marginais meio punks, certamente era meu favorito, e ainda hoje é um grande programa, se não pela ação do filme por sua comédia involuntária, onde velhinhas comemoram efusivamente que "O sr. Kersey está lá embaixo matando uma porção de bandidos!".
Tendo em vista que os tempos são outros, masculinidade é considerada ruim, heterossexualidade, também, e homens brancos só se prestam ao papel de vilões, eu devo dizer que fiquei mais do que surpreso, mas quase chocado, quando soube que Desejo de Matar teria um remake.
Sério.
Eu não conseguia pensar em um filme que fizesse menos sentido pro momento norte-americano do que um longa onde um homem branco e heterossexual de meia-idade se arma para massacrar os bandidos que brutalizam sua família, mas eis que ali está Paul Kersey de novo.
Agora um médico com a cara de Bruce Willis vivendo em Chicago (provavelmente porque a cidade tem números de violência armada superiores ao resto dos Estados Unidos), Paul Kersey leva uma vida idílica no subúrbio com sua esposa Lucy Kersey (Elizabeth Shue, em uma quase ponta) e a filha Jordan (Camila Morrone).
Lucy está prestes a conseguir seu doutorado, Jordan pronta para entrar para a faculdade e a única parte da família de Paul que não vai de vento em popa é seu irmão Frank (Vincent D'Onofrio), frequentemente desempregado e que volta e meia aparece pra emprestar uns trocados do irmão bem-sucedido.
As coisas mudam de figura violentamente quando, em uma noite em que Paul precisa cobrir um colega no hospital, sua casa é atacada por três assaltantes. Após uma reação de Jordan e de Lucy, a mãe é assassinada e a filha entra em coma (nessa versão as duas garotas Kersey são poupadas dos estupros da versão original), deixando Paul sozinho para lidar com a dor da perda e tentar digerir o fato de ter falhado em sua missão primordial como pai de família: Proteger suas mulheres.
Inevitavelmente Paul percebe que a polícia, transbordando de trabalho, é incapaz de levar os criminosos à justiça, e resolve, ele próprio, abraçar essa missão.
Conforme o doutor deixa de lado a sua missão de salvar vidas e passa a tirá-las, seus feitos viralizam na internet, e ele se torna o centro das atenções midiáticas ao mesmo tempo em que precisa lidar com o coma da filha, a manutenção de seu anonimato, e a sua investigação particular para encontrar os homens que lhe tomaram a razão de viver.
É bem porcaria.
A despeito de estarmos predispostos a acreditar que Bruce Willis é capaz de realizar os feitos que o roteiro sugere porque, afinal de contas, ele é John McLane há anos, é difícil comprar a completa e diametral mudança de inclinações de um médico pacifista que se recusa até mesmo a falar palavrão pro bunda-mole no jogo de futebol em um assassino frio e calculista que mete bala em vagabundo agonizando no asfalto da rua e esmigalha assaltante com chassi de carro e macaco-hidráulico enquanto dispara frases de efeito.
Por mais que sejamos capazes de crer que a morte de um ente querido em circunstâncias violentas fosse mexer com uma pessoa, vê-la mudar tão profundamente, tão rapidamente, é forçar a amizade. Especialmente porque o script de Joe Carnahan até começa levando a falta de experiência de Paul com armas em consideração, ele se machuca por não saber segurar uma pistola, se atrapalha na hora de destravar a arma, mas, logo ali na frente, ele se tornou um filhote de Rambo porque o andamento da história demanda que seja assim, e porque ninguém quer ver um "Desejo Reprimido de Matar" após o trailer mostrar Paul sorridente conversando com sua terapeuta sobre continuar o que tem feito ao som de Back in Black.
Talvez, se fosse um filme de época, situado nos anos 70, este remake fizesse um pouco mais de sentido, mas perderia parte de seu frescor, já que a explosão midiática do "ceifador sinistro", apelido dado a Kersey por conta de seu agasalho com capuz que esconde seu rosto e o faz parecer a representação da morte nos vídeos de sua primeira incursão contra o crime é uma das coisas interessantes de Desejo de Matar.
Ver a expressão de felicidade de Kersey ao assistir programas de TV sobre seus feitos e os memes gerados por sua faceta vigilante ao mesmo tempo faz todo o sentido do mundo e é completamente sem-noção. Paul perdeu sua razão de viver, mas encontrou uma nova em sua missão de vingança, ao mesmo tempo, sua filha continua em coma no hospital onde ele trabalha.
Willis, aos sessenta e três anos, está longe de ser um ator terrível, e oferece mais a Desejo de Matar do que o roteiro oferece a ele. O ator se mantém o máximo que pode ao largo da caricatura, tentando calibrar um pouco de dignidade a um personagem absurdo.
Dean Norris, como o detetive Rains têm pouco o que fazer exceto parecer intrigado, e sua parceira a detetive Jackson (Kimberly Élise) ainda menos que isso. D'Onofrio consegue espremer uma humanidade muito pessoal de um acessório de roteiro e torná-lo o personagem mais humano e gostável do filme, e meio que é isso.
Desejo de Matar flerta com autoconsciência e auto-paródia, mas acaba sendo apenas um convencional filme de ação onde o marido e pai toca o terror na bandidagem evocando a segunda emenda da constituição americana.
Objeto de interesse apenas para fãs de Bruce Willis, dá tranquilamente pra esperar passar na TV.

"-Quem é você?
-Seu último cliente."

sexta-feira, 17 de agosto de 2018

Pedido de Ajuda


Consultório médico. Uma tarde úmida de meio de semana. Ele, calças pretas, agasalho de moletom preto e camiseta preta do Godzilla, sentado na frente da médica, jovem, loira, bonita, que o olhava do outro lado da escrivaninha algo confusa enquanto ele falava:
-Música, eu prefiro rock. Nas antigas eu não gostava de rock, rockão, mesmo. Preferia baladas. Mas o rock um pouco mais pesado, não heavy metal, mas hard rock, punk rock, foi um gosto adquirido... Eu fui conhecendo bandas e tomando gosto. Aprender inglês o suficiente pra entender as letras ajudou bastante, mas foi mais um processo de me habituar ao negócio, sabe? E hoje, AC/DC é, provavelmente, a minha banda preferida, ainda que eu goste de várias outras...
-Entendo... - Disse a médica, sentada do outro lado da mesa, de cenho levemente franzido como quem presta atenção.
-E eu não escuto só rock. É meu estilo preferido, mas se tu vasculhar meu celular, as minhas músicas vão de Lissie Trully a Simon e Garfunkel... Até alguns raps, eu tenho na playlist. Alguns, não. Dois. Mos Def e Eminem. Mas, sabe, não é como se eu tivesse a mente fechada a outros estilos. Eu ouço Cat Stevens... Chico Buarque... Mulheres de Atenas é ótima... Minha História, também... Tenho uma coisa com trilhas sonoras instrumentais, também, sabe... Mas enfim, sabe, não é como se eu tivesse a mente fechada. Eu tenho meu gosto musical, eu nem me arriscaria a dizer "bom-gosto"-
-Porque isso é subjetivo. - Disse a médica.
-Exato - Ele concordou. -Exato, todo mundo acha que tem bom-gosto. Meu pai ouve Djavan e acha que é bom. Diz que os shows do Djavan estão sempre cheios, e tipo, ninguém enche mais show que sertanejos e funkeiros, então...
-Não é parâmetro. - Ela completou.
-Exato. Não é parâmetro. De qualquer forma, é uma coisa muito cíclica, também. Eu sou do tempo da primeira onda do sertanejo, Leandro e Leonardo, Chitãozinho e Xororó, Christian e Ralf...
-Zezé di Camargo e Luciano... - Ela sugeriu.
-Isso. - Ele aquiesceu. -Era só o que tocava na TV e no rádio. Os caras tinham especial semanal na TV e tudo... Depois foi o pagode. Pra onde tu te virava tava tocando pagode. Raça Negra, Só pra Contrariar, Negritude Júnior, Molejo...
-Só Preto, Sem Preconceito... - Ela sugeriu, de novo.
-Isso. E, também, pra onde a gente se virava, era só o que tocava. Programas de auditório, rádio... Os caras tavam em todas e a cada semana aparecia outro. Depois veio o axé, depois o forró universitário, funk... Enfim, os ciclos andam. Idealmente...
-Idealmente. Sim... - Ela ponderou.
-De qualquer forma, eu sempre achei que meu gosto pra música fosse bom. As músicas que falam comigo, assim, apesar de algumas coisas de Coldplay, que é mais meloso, tendem a ser boas músicas... Eu acho. - Ele arriscou.
-Arram... - Ela concordou. -Eu concordaria.
-Mas eu tenho... Eu tenho tido um problema. - Ele disse, começando a parecer inquieto.
-E qual é? - Ela quis saber, entre o curioso e o aliviado.
-Barry Manilow. - Ele disse. Quase em um sussurro.
-Quem? - Ela perguntou, fazendo uma careta de confusão.
-Barry Manilow. O cantor... Sabe? I'm ready to take a chance, again... Ready to put my love on the line... Sabe? - Ele cantarolou.
-É vagamente familiar... - Ela assentiu.
-Pois então. Eu não sei o que fazer. Eu nem gosto, sabe, de Barry Manilow. Seria ridículo gostar de Barry Manilow. - Ele disse, quase se justificando.
-Por que? - Ela perguntou. A melodia era vagamente agradável, apesar de ele não saber cantar.
-Porque não se fica mais brega do que Barry Manilow, a menos que tu vá totalmente Liberace, doutora. - Ele concedeu como uma obviedade.
-Quem é liberati? - Ela não sabia quem era.
-Liberace era um pianista. Ele usava umas roupas além da explicação e penduricalhos o suficiente pra parecer uma árvore de natal montada pelo Mister T. - Ele explicou.
-E quem é Mister Ti? - Ela também não sabia quem era.
-Era o cara negro do Esquadrão Classe A. - Ele deu de ombros.
-Não vi esse filme... - Ela respondeu, ainda confusa.
-Não era um filme, era uma série. Bom, teve um filme, bem bacana, até, mas... Olha, deixa pra lá. Não é importante. O lance é que não se fica mais brega do que Barry Manilow. Tu já viu os vídeos setentistas dele? Todo de cetim e strass? Não... Não dá. Eu preciso de ajuda. Isso não é normal.
-Todo mundo usava cetim e strass nos anos setenta... - Ela disse, pensando brevemente no que se lembrava de ter visto de musicais setentistas -Por que tu precisa de ajuda?
-Porque eu escuto Mandy todas as noites antes de dormir! - Ele suplicou.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

O Dia do Canhoto


Treze de agosto era o aniversário do homem a quem nunca chamei de avô, mas que foi o melhor avô que eu poderia querer. Descobri, também, que é o dia do canhoto.
Não sei se o fato de usar o hemisfério direito do cérebro para funções motoras ao invés da esquerdo é coisa digna de uma efeméride, mas talvez seja uma forma de remediar as mazelas de uma minoria.
Os canhotos são uma minoria marginalizada de diversas formas, afinal de contas.
Os canhotos de antigamente eram obrigados a escrever com a não direita porque a esquerda era a mão do diabo. Muitas crianças tinham a mão esquerda atada ao corpo e eram forçados a praticar até que seus garranchos destros estivessem legíveis o bastante para serem aceitos.
Os termos para designar canhotos em francês, gauche, e em italiano, sinistro, são testemunho do pejorativo de usar a mão esquerda para fazer as coisas. Os muçulmanos não saúdam com a mão esquerda, pois é sinal de desrespeito...
Se hoje em dia o esclarecimento alcançou um patamar em que as famílias já não tentam mais suprimir a mão esquerda da criançada ainda na tenra infância (ao menos idealmente...) a verdade é que os canhotos seguem sendo vítimas de discriminação em diversos aspectos da vida.
Quando uma pessoa é habilidosa, por exemplo, elogiam-lhe a destreza, jamais a canhoteza, e se a pessoa é boa usando as duas mãos, ela não é ambicanhota, mas ambidestra.
Eu sou velho o bastante para ter tido talão de cheques, e os canhotos sabem o tamanho da dificuldade que era preencher um cheque em um talão feito para ter "canhoto" em todas as páginas.
Custei a aprender a usar abridores de latas porque eles são feitos para operar com a mão direita, dificultando a vida de canhotos que sobrevivessem ao apocalipse zumbi e precisassem subsistir de enlatados.
Na escola, as carteiras eram quase que inteiramente para destros, forçando os canhotos a disputarem as poucas unidades com a prancha à esquerda em duelos até a morte, usar duas carteiras, ou se sentar todo torto correndo o risco de desenvolver uma corcunda perene.
Jamais vi nenhuma vantagem em ser canhoto, só desvantagens.
Jamais tive a vontade de ser o diferentão, de modo que os breves instantes de atenção quando as pessoas percebiam meu uso da mão sinistra e perguntavam "Tu é canhotoooo?" jamais compensaram todos os percalços de tentar usar utensílios feitos para quem tinha a outra mão como dominante.
O grande momento da minha vida de canhoto foi quando determinada pessoa disse que achava os canhotos muito sexies.
Naquele dia, e naquele dia apenas, eu quase saí acenando com a mão esquerda igual uma miss.
Naquele dia, ser canhoto era bom.

segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Resenha DVD: Lady Bird: A Hora da Voar


Existe uma coisa muito especial em filmes sobre a passagem da adolescência à idade adulta. Chama-se nostalgia.
Um bom filme sobre essa fase da vida tem a capacidade de nos transportar de volta para um momento pelo qual todos nós passamos e que, se parecia terrivelmente dramático e complexo, então, é sopinha no mel comparado com as mazelas da vida adulta.
Todos nós somos capazes de olhar pra trás e dar um sorriso pensando no quanto éramos dramáticos com 15, 16, 17 anos... Em como todas aquelas decisões pareciam definitivas, em como aqueles corações partidos pareciam incuráveis, em como tudo se tornava operático como uma espécie de realidade aumentada diante de qualquer precalço. E depois de mais velhos, lidando com contas, trabalho, responsabilidades de se estar crescido, enfim, percebemos que, talvez, tenhamos levado aqueles momentos demasiado a sério.
Lady Bird: A Hora de Voar (porque Deus proíba um filme ter como título apenas um nome próprio) é um desses filmes repletos de nostalgia. Nele conhecemos Christine (a ótima Saoirse Ronan), uma jovem de dezessete anos que vive em Sacramento, cidade que ela odeia e julga o "meio-oeste da Califórnia".
Corre o ano de 2002 e Christine, que agora deseja ser chamada pelo nome de Lady Bird está no último ano do colegial e começando a ver potenciais universidades para atender.
Sua mãe, Marion (Laurie Metcalf, excelente), uma enfermeira psiquiátrica durona, deseja que Lady Bird se matricule em uma universidade local, de preferência uma universidade católica onde a jovem certamente conseguirá entrar, já que frequenta uma prestigiada escola católica da cidade ao custo de sacrifícios financeiros de sua família. A adolescente, porém, deseja estudar em Nova York ou em algum ponto da costa leste "onde a cultura está", e não parece nem um pouco disposta a abrir mão de seus sonhos não importa o que sua mãe diga e nem que seu desempenho acadêmico não seja exatamente garantia de sucesso na hora de ser admitida em uma universidade de grande prestígio.
Enquanto briga pelo futuro que almeja em batalhas diárias contra sua mãe, uma mulher prática que é uma mestra do kung fu passivo-agressivo, Lady Bird resolve experimentar coisas novas para tentar engordar seu currículo escolar, como seguir a dica da diretora de sua escola, a freira Sarah Joan (Lois Smith), e se juntar ao clube de teatro do colégio, tocada pelo padre Leviatch (Stephen McKinley Henderson).
Ao lado de sua melhor amiga Julie (a divertida gordinha Beanie Feldstein), Lady Bird irá navegar em seu último ano de ensino médio tentando chegar à vida que almeja para si enquanto bate cabeça com sua família, vive seus primeiros namoros, com o bom-moço Danny (Lucas Hedges) e o afetado pseudo-bad-boy Kyle (Timothée Chalamet), faz descobertas e sofre decepções.
Lady Bird: A Hora de Voar é um bom filme.
Não é, nem de longe, tão bom quanto As Vantagens de Ser Invisível, outra dramédia indie sobre deixar a adolescência para trás, mas tem um vasto rol de qualidades.
O maior, sem sombra de dúvidas, é Saoirse Ronan. A atriz consegue equilibrar uma personagem que poderia facilmente se tornar antipática, quase insuportável em sua idiotice adolescente, ao balancear ingenuidade e sarcasmo, introspecção e vontade de aparecer de maneira quase perfeita. Ela move a história de Lady Bird o tempo todo, e ainda que não precise carregar o filme inteiro nas costas porque há um baita de um elenco de apoio com cobras-criadas como Metcalf, Smith, Henderson e Tracy Letts e novos talentos como Hedges e Chalamet, deixa claro que poderia fazê-lo.
Não é apenas um show de elenco que torna Lady Bird um bom programa.
A diretora e roteirista Greta Gerwig mostra que tem bala na agulha para contar histórias. Sem arroubos, ela sua narrativa semi-auto-biográfica com segurança, povoando seu mundo com personagens interessantes e vivos. Do pai numa maré de azar ao padre deprimido, os coadjuvantes colorem o mundo habitado por Lady Bird e ajudam a audiência a relevar os momentos em que o desenrolar da trama se torna demasiado óbvio.
Lady Bird: A Hora de Voar está longe de ser perfeito, mas é carregado de uma ternura honesta que o faz funcionar de forma genuína.
Certamente vale a locação.

"-É claro que eu te amo.
-Mas você gosta de mim?"

sábado, 11 de agosto de 2018

Top 10 Casa do Capita: Os Pais Mais Legais da Cultura Pop

Amanhã é o segundo domingo de agosto, o dia de homenagear os pais, aqueles homens que, idealmente, suam a camisa pra colocar comida na mesa e têm a fibra moral pra tentar te ensinar a ser uma pessoa decente em um mundo que está sempre te dizendo que ser indecente é OK. Aquele sujeito que tem uma ponta de decepção no olhar quando vê teu brinco novo. Que sentou pra te ensinar regra de três no domingo de noite até largar tudo de mão quando percebeu que tu estava desenhando no canto da folha do caderno ao invés de prestar atenção na explicação dele. Que te disse que "aquele bosta não é homem pra ti" e que tu podia voltar pra casa quando tu quisesse. Enfim, o sujeito que não estava preparado pra ser o responsável por um filho ou filha, mas que faz o melhor que pode.
A Casa do Capita toma parte na festividade elencando os dez pais mais bacanas da cultura pop, seja no cinema, na TV, Quadrinhos ou literatura. Leia, e depois manda, pelo menos, um áudio por whatsapp pro velho. Ele merece.


10 - Eddard (Ned) Stark (Game of Thrones)


Reto feito uma flecha e honrado demais para seu próprio bem, Eddard Stark pode não receber nenhum prêmio de pai do ano em nosso mundo super-protetor, mas no universo medonho de Westeros, ele é quase um urso de pelúcia quando comparado a caras como Randyll Tarly e Tywin Lannister, que, de modo geral, escolhiam um filho pra mimar e outro pra ferrar.
A fortaleza moral de Ned Stark é mais sólida que Winterfell, e se não ajudou todos os seus muitos rebentos a sobreviver às intrigas que infestam o mundo criado por J. R. R. Martin, certamente os ajudaram a morrer como homens de bem.


9 - Jim Hopper (Stranger Things)


O xerife gordão da cidade de Hawkins, Indiana é mostrado inicialmente como um alcoólatra e viciado em bolinhas que tem uma abordagem meio relaxada para com seu trabalho como homem da lei. Se a princípio chega a dar a impressão de que ele está aquém dos bagulhos sinistros que começam a pipocar na cidadezinha após o desaparecimento de Will Buyers, não tarda para a audiência descobrir que muito da displicência de Hopp tem a ver com seu passado trágico, e que por trás da fachada, há o coração de um herói e amor paterno de sobra até mesmo para acolher a jovem Onze, a quem adota como filha.

8 - Estoico, o Vasto (Como Treinar o Seu Dragão)


O poderoso guerreiro viking, chefe da vila de Berk não começa muito bem no tocante à paternidade. Tudo o que Estoico quer é que seu filho, Soluço, seja um brutamontes igual a todos os outros guerreiros da aldeia, e mate dragões como todos os outros vikings têm feito desde sempre para desespero do cerebral e esquálido moleque que não consegue se entrosar.
Turrão, Estoico custa tanto a entender seu filho que quase coloca a relação dos dois a perder, mas quando finalmente cai em si, reconhece seus erros e assume o lado de Soluço e Banguela sem restrições, e com o tipo de orgulho que só os pais são capazes de sentir.

7 - O Pai do Calvin (Calvin & Haroldo)


Um entusiasta da vida ao ar-livre que acredita piamente que passar um pouco de trabalho forma o caráter, o pai de Calvin é um sujeito muito mais espirituoso e compreensivo do que o moleque de seis anos é capaz de notar.
O homem que ensinou Calvin a fazer bonecos de neve e que constantemente o sacaneia ao sugerir que eles não têm parentesco ou que o guri foi comprado em uma liquidação é claramente uma das fontes da imaginação de Calvin, algo que fica claro quando ele responde questionamentos do filho com respostas inventadas incrivelmente elaboradas que apresenta como fatos, ou quando ele é capaz de deixar o trabalho para tarde da noite apenas para brincar com Calvin na neve numa tarde de domingo.

6 - Scott Lang (Homem Formiga)


Scott Lang pode não ser muitas coisas nessa vida, mas ele certamente é um bom pai.
Nos quadrinhos, o gatuno está disposto a qualquer coisa para salvar a filha Cassie, inclusive arriscar a própria liberdade ao roubar a tecnologia de encolhimento de Hank Pym e começar uma onda de roubos.
No cinema Lang ganhou a cara de Paul Rudd e Pym em pessoa como mentor, mas sua ideia ainda é ter como se relacionar com Cassie, que segue sendo sua motivação primordial para se tornar um super-herói. Seja como for, tudo o que Scott faz, ele faz por Cassie, e isso, meus amigos, é paternidade.

5 - Alfred Pennyworth (Batman)


Alfred Pennyworth não é, obviamente, o pai biológico de Bruce Wayne. Alfred foi o guardião legal de Bruce após a morte de Thomas e Martha Wayne, e ao longo de sua vida acumulou as funções de mordomo, guarda-costas, enfermeiro, médico, assistente e tantas outras que o tornaram o mais constante e importante parceiro de Wayne em sua incansável guerra contra o crime sob o manto de Batman. Entretanto, além de suas inúmeras atribuições profissionais, há outra que Alfred assumiu para si apenas por afeto a Bruce: A de figura paterna.
Ainda que Bruce Wayne tenha tido contato com seus pais na infância, enquanto crescia como um jovem cheio de raiva, seu modelo de comportamento e rocha de estabilidade emocional foi Alfred.
Os ensinamentos do cavalheiro britânico de modos irrepreensíveis são uma parte importantíssima de quem o Batman é. Talvez, a melhor parte.

4 - Marlin (Procurando Nemo)


Um super-protetor peixe-palhaço que não consegue deixar de sufocar seu filho após uma tragédia custar-lhe toda a sua família, Marlin surge como um pai fraco e excessivamente zeloso quando o conhecemos. Entretanto, após seu filho Nemo ser capturado por um mergulhador, o comediante sem graça mostra o tamanho de seu amor e a firmeza de sua devoção ao cruzar o oceano inteiro para recuperar seu filhote.
Com todos os ingredientes que tornam a Pixar a Pixar dos estúdios de animação, Procurando Nemo é uma ode ao amor paterno, e Marlin seu mais obstinado representante.

3 - Jonathan Kent (Superman)


Se Kal-El tivesse sido criado por pais sequer remotamente dúbios em sua moral, o planeta Terra, e quiçá o universo, estariam em maus lençóis. Por sorte, o alienígena de poderes quase divinos foi acolhido por Martha e Jonathan Kent, dois bastiões de bondade que tornaram um ser que poderia fazer o que quisesse em um herói que escolheu ajudar tantas criaturas quanto possível.
Um fazendeiro modesto, Jonathan incutiu em Clark a importância de deixar a vida seguir seu curso, o valor das coisas que germinam e crescem e a decência de alguém que labuta com as próprias mãos para sustentar os seus. O sucesso da paternidade de Jonathan é do tamanho da lenda do maior dos super-heróis.

2 - Ben Parker (Homem-Aranha)


Sem a sabedoria de Ben Parker não existiria o Homem-Aranha. Foi o proletário humilde que moldou o herói mais famoso da Marvel ao acolher o sobrinho órfão e incentivá-lo a desenvolver sua inteligência muito acima da média e prover-lhe da melhor forma que pôde.
Ben alimentou as melhores facetas da personalidade do sobrinho em vida, e praticamente criou o Homem-Aranha na morte, ao deixar dolorosamente claro para Peter Parker que o poder não vem de graça. Após a morte do tio, Peter Parker abraçou a responsabilidade de ser um herói, deixando claro o tamanho do peso de Ben Parker em sua criação, e que, mesmo sem ser seu progenitor, Ben foi seu pai.

1 - Atticus Finch (O Sol é Para Todos)


Meu filme favorito em todos os tempos também tem o pai mais sensacional do cinema e da literatura:
Atticus Finch.
O advogado sulista de fibra moral inabalável que secretamente era o melhor atirador da cidade e que não tinha medo do julgamento de seus conterrâneos ao aceitar defender um homem negro acusado de um crime que não cometeu durante a Grande Depressão era, ainda, o pai amoroso de dois filhos pequenos a quem jamais deixava sem uma resposta honesta a qualquer pergunta, por mais cabeluda que fosse. Nas palavras da pequena Scout Finch " Parecia não haver nada e nem ninguém que Atticus não fosse capaz de explicar.".
A epítome do homem de bem, e um dos maiores heróis do cinema, Atticus também é o pai mais bacana da cultura pop para esse blogueiro que vos escreve.

segunda-feira, 6 de agosto de 2018

O Trem


Ela e ele estavam dividindo uma cabine no trem.
A composição ainda não começara a se movimentar, mas os passageiros já ocupavam os vagões, e a plataforma estava vazia. Ele baixou a cortina da janela que dava para o corredor e se ajeitou ao lado dela, apertando-lhe a mão miúda entre as suas e perguntando se ela estava ansiosa.
Seria a primeira vez que viajariam juntos.
Ela assentiu apenas com acenos rápidos de cabeça e um sorriso quase infantil no rosto.
O apito soou e sentiram o solavanco dos carros sendo puxados pela locomotiva com seu arranque.
Ele olhou pela janela, e viu o cenário lá fora se mover. Por um instante, se perguntou para onde estavam indo, mas a verdade é que nem ligava. Fosse pra onde fosse, bastava que ela estivesse junto.
Percebeu que ela o estava olhando e devolveu o olhar com um sorriso.
Ela se aninhou de encontro a ele, e, ainda segurando sua mão, perguntou:
-Se tu tivesse que escolher a tua coisa preferida entre nós... Uma só. Qual seria?
Ele franziu brevemente o cenho.
-Uma só?
Ela assentiu, novamente com um aceno de cabeça.
Ele olhou bem pra ela enquanto pensava. Se deu conta que o cabelo dela estava diferente. Um corte Channel na altura dos ombros. E notou que as roupas dela pareciam ser dos anos 1940, ou 50, e resolveu responder o mais rápido possível, para garantir que ela tivesse uma resposta:
-Se tivesse que escolher uma coisa só? Eu não sei. Tem tanta coisa... Tanta coisa que eu gosto, que eu amo, sabe? Escolher uma só é complicado. O teu cheiro... Sabe? Uma piada. Uma piada de tão bom. Ainda hoje eu passo em frente de salão de beleza e só penso em ti. Ridículo o cheiro daquela mulher. Uma piada alguém cheirar daquele jeito. Desse. Desse jeito. Injusto, até. Uma vez nos encontramos depois da academia, eu desgrenhado, suado, lustroso, e tu perfumada. Faça-me o favor... Chega a ser covardia esse negócio... Do teu cheiro. Enfim, essa é uma coisa...
Tem um outro lance, sabe... É, uma coisa que, eu não sei se é calculada, se é um comportamento que tu tenha escolhido pra ti ou se apenas sai ao natural... Mas me encantava muito. De vez em quando, quando a gente estava fazendo alguma coisa juntos... Ela... Tu tinha essa expressão no rosto, frente às coisas mais banais, e era como se estivesse fazendo uma descoberta muito definitiva. "Nossa! Um dispenser de mostarda!", e com um brilho nos olhos... Sei lá. Era uma coisa que eu achava sensacional. Essa forma de ver as coisas. Porque pra mim, é muito raro isso. Eu tenho essa abordagem mais blasé com relação a tudo, e ter ela ali, sendo esse contraponto. Era uma coisa que... Sob diversos aspectos era uma das tuas coisas que me completavam... Que me deixavam inteiro...
Olhou pra ela, que sorria, segurando a sua mão, mas olhava pela janela, o cenário em movimento lá fora.
-Ah! Tinha outra coisa... E essa, eu acho que não era, sabe, calculada... O coração dela, quando a gente se abraçava... O teu... O teu coração. Eu conseguia sentir o coração dela quando nossos corpos se colavam. E, é até cafona, mas eu achava isso o cúmulo do romantismo. Estar abraçado em alguém que gostava de mim o suficiente pra ter o coração batendo com tanta intensidade dentro do peito que... Sabe? Podia-se sentir do lado de fora...? Eu achava isso sensacional. Demais, mesmo...
Ela olhou pra ele. Não estava mais sorrindo. Tinha uma expressão serena no rosto.
Percebendo o que estava acontecendo, ele se inclinou para tentar beijá-la, mas não houve tempo. Acordou em sua cama, ouvindo o alarido de Bruna e André, os vizinhos do 52, fazendo o almoço de domingo a quatro mãos.
Apanhou o telefone da mesa de cabeceira e verificou a hora. Eram sete pro meio-dia. Esfregou a mão no rosto inchado pensando que sete horas de sono eram um período razoável, e sentou-se.
Foi apenas ao desligar o chuveiro após o banho, quase meia hora mais tarde, que foi capaz de recapitular todo o sonho. E enquanto escovava os dentes e se secava, foi capaz de concluir a resposta que Morfeu lhe impedira de oferecer integralmente:
-Mas essas coisas todas eram mais tuas. E eu apenas me apropriei delas porque elas são parte do que te faz tão perfeita aos meus olhos. Então, talvez, se fosse pra escolher uma única coisa nossa, é possível que fosse ser o beijo...
O nosso beijo era uma coisa de outro mundo.
Do primeiro ao último, aqueles beijos eram a epítome da nossa relação. Eles eram uma carta de intenção, uma declaração. Eu acho que poucas vezes na vida alguém trocou beijos tão bons. Foram certamente alguns dos melhores da minha vida, quiçá os melhores. Eram bem dados. Molhados. Quentes. E diziam tudo o que havia pra ser dito de nós dois. Eles tinham essa cumplicidade do encaixe perfeito, as diferenças entre nós dois ficavam evidentes, mas ao mesmo tempo, de lábios colados, nós reforçávamos que o que nos unia era muito maior e mais definitivo. Sem contar que eram, ao menos pra mim, terrivelmente excitantes. Quer dizer... Te beijar era um troço que, ás vezes, começava sem nenhuma agenda maliciosa, mas naturalmente enveredava por esse caminho porque, sei lá... Era uma coisa que o beijo fazia por conta. Então, apesar de eu poder pensar em várias outras coisas... Passar a mão no teu cabelo... Espalmar a mão na tua lombar quando andávamos juntos... desenhar na tua pele com caneta Bic, ou te ter sentada no meu colo assistindo desenho... Eu provavelmente fico com o beijo porque ele meio que encampa tudo o que nos faz "nós".
Amarrou o cabelo de qualquer jeito, e foi tratar do almoço.