Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
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quinta-feira, 23 de agosto de 2018
Mágica
Segunda de noite, sozinho no escuro assistindo ao futebol.
Barulho de água em algum ponto da casa.
A descarga do banheiro de novo?
Sentiu um calafrio. Na última vez que algo assim acontecera, a caixa de descarga do banheiro despencou.
Ele acordara com o ruído de coisas caindo no banheiro e se deparou com uma pequena inundação e cacos de azulejos e cano espalhados pelo piso de lajotas cor-de-laranja. O resultado foi uma operação que só terminou dois dias e um bocado de trabalho de encanador depois, trabalho de encanador que ele próprio tivera de fazer, diga-se de passagem, e que não ficara cem por cento, mas meramente funcional, o que é, todos sabemos, um patamar demasiado amplo.
Levantou-se rápido e correu até o banheiro já esperando pelo pior. Aquele apartamento guardava um sem número de surpresas, ele descobrira, a maior parte delas desagradáveis.
Mas não.
A descarga estava OK.
Ainda funcional. Aquele filete de água vazando pelo cano quando a descarga era acionada ainda o incomodava, mas enfim... Precisava sentar e observar os canos, algo que, definitivamente, não queria fazer, ou contratar um encanador o que, segundo seus cálculos, só poderia acontecer em meados de outubro, se tudo desse certo...
Não era a descarga, enfim. Muito bem. Onde poderia ser?
Olhou a pia do banheiro, tudo certo. Nem sequer pingava.
Foi até a cozinha, tudo OK. Área de serviço?
Tudo normal. Tanque de roupas e máquina de lavar... Tudo no lugar. Não era aquilo, também.
Provavelmente fora na casa de algum vizinho. Paredes finas demais no prédio. Ouvia o sexo dos vizinhos do andar de cima quando a Bruna do 52 se empolgava. Devia ser isso. O vazamento era na casa de algum vizinho e tomara que não fosse na casa de nenhum com quem ele compartilhava paredes.
Voltou para a sala. Sentou-se no sofá e espichou as pernas.
Outra vez.
Barulho de água.
Olhou em volta, alerta como um cão de guarda. Mas não era capaz de apontar a origem do ruído, que, novamente, cessara.
Aumentou o volume da TV e se concentrou no jogo.
Futebolzinho de segunda à noite era um dos que ele mais gostava de acompanhar, por alguma razão.
Novamente o ruído de água. Desta vez, porém, não se levantou. Apurou o ouvido tentando estabelecer a origem do barulho. Não parecia na casa de nenhum vizinho. Era próximo. Muito próximo.
E pequeno.
Parecia vir...
Sem olhar, conseguiu estabelecer a fonte do barulho: Sua caneca de refrigerante.
A peça de louça estava pousada sobre a pilha de livros que repousava em cima de um gaveteiro baixo que ele mantinha ao lado do sofá. Ele não olhou, pois, de imediato, supôs que algum inseto caíra dentro de seu refrigerante. Se estava fazendo barulho, era um artrópode com algum tamanho. A possibilidade de ser um besouro era remota, então, conjecturava que uma enorme barata devia ter subido pela lateral de sua caneca e caído dentro de sua bebida, o que, se não era nenhuma tragédia de proporções bíblicas, também não era a mais agradável das ocorrências.
Enquanto conjecturava quais deveriam ser os próximos passos depois de obviamente virar o conteúdo da caneca na privada, dar a descarga (ver, com desgosto, o pequeno filete de água escapulir de entre a junção dos canos) e levar a caneca de volta pra cozinha, pensando se poderia voltar a usá-la após lavar a peça com água fervendo e algum detergente ou saponáceo, ocorreu-lhe que, talvez, não fosse uma barata.
Estava frio naqueles dias. Bem frio.
As máximas não passavam dos quinze graus no auge da tarde e agora mesmo ele estava de calção, como era seu hábito em casa, mas também de meias e pantufas, e vestindo um agasalho por sobre a regata que usava como pijama. A temperatura deveria ser de, no máximo, dez graus na rua, e o inverno, ele bem sabia, não era época do domínio das baratas.
Mantinha o apartamento limpo. Ao menos limpo o suficiente para um homem solteiro morando sozinho. Mesmo no verão não tivera uma infestação de baratas, quando muito umas cinco ocorrências o que fora, ele pensava, bem razoável considerando-se tudo.
Era improvável que agora, houvesse uma barata dentro de sua caneca de refrigerante.
Podia ser...?
Uma lagartixa?
Ficou aflito. Não tinha medo de lagartixas, mas tinha admitida aflição com relação aos pequenos reptilianos. Arrependia-se profundamente de ter matado, por acidente, duas lagartixas em sua vida, ambas esmagadas por portas e janelas que ele fechou em cima dos pobres animais sem percebê-los, e uma vez, usara uma tábua e uma revista para tirar uma lagartixa de dentro da pia da cozinha de seu escritório onde ela ficara presa após cair, mas a ideia de tocar em uma lagartixa lhe causava uma sensação de repulsa que não sabia explicar. Não era medo, nem era nojo. Mas uma inexplicável aflição oculta em algum recôndito obscuro de sua mente.
Fosse como fosse, seu plano de virar a caneca na privada ironicamente fora por água abaixo. Se lhe era fácil esmagar, envenenar ou afogar uma barata, eram outros quinhentos matar uma lagartixa de qualquer uma dessas maneiras. Simplesmente não podia.
E, mais que isso, precisava agir rápido, pois não queria que a lagartixa se afogasse em seu refrigerante. Por alguma razão, uma lagartixa morta parecia pior do que uma lagartixa viva na caneca para fins de higiene e futuros usos da peça.
Virou-se no escuro para mirar a caneca ao seu lado, iluminada parcamente apenas pela luz da tela de 42 polegadas pouco mais de um metro e meio de distância, e tentou discernir a figura da pequena criatura debatendo-se dentro do recipiente pensando em pegá-lo com delicadeza e virar o conteúdo com cuidado no tanque da área de serviço de onde a lagartixa poderia seguir seu caminho comendo baratas e mosquitos até o fim de seus dias.
Porém, para sua surpresa, não havia lagartixa debatendo-se dentro da caneca. Tampouco o cadáver de uma barata flutuava na bebida escura.
À primeira vista. Quase de relance, teve a impressão de ver com a ponta da visão periférica uma pessoa diminuta apoiando-se na borda da caneca como um nadador descansando à beira da piscina após muitas braçadas.
Seria possível que algum brinquedo caíra dentro de seu refrigerante?
Mas não havia brinquedos nas imediações de onde a caneca estava, e entre as figuras de ação que sim, ele mantinha em uma estante perto do banheiro, não havia nenhuma boneca daquelas dimensões...
Seria uma peça de alguém?
Seria possível que as crianças do 74 tivessem jogado um brinquedo lá de cima, e acertado sua caneca?
Sim... Seria possível se fosse um dia de verão, com sua caneca descansando na janela e Sophia e Enzo acordados. Mas ele sabia de ouvido que os dois já dormiam à essa hora, e, além do mais, suas janelas estavam fechadas.
Levou a mão para pegar o brinquedo de dentro do refrigerante enquanto se virava devagar, ainda prestando atenção ao jogo, mas, para seu horror, assim que fez menção de completar o movimento, a pequena figura, rápida como um raio, mergulhou no líquido cor de caramelo desaparecendo com um pequeno barulho de água. O mesmo splash contido que ele havia ouvido antes.
Tomado de surpresa, hesitou em continuar se movendo.
Riu sozinho por um momento.
Estaria delirando?
Não bebia álcool. Não usava drogas de nenhuma espécie. Sequer tomava remédios exceto um eventual Cefaliv quando sofria com enxaquecas ou algum anti-inflamatório quando as dores musculares o afligiam.
Seria possível que estivesse desenvolvendo alguma doença mental?
Estaria desenvolvendo esquizofrenia? Alucinações visuais eram coisa de esquizofrenia ou só as auditivas?
Estaria sofrendo alucinações por conta de alguma intoxicação alimentar? Intoxicações alimentares realmente podiam causar alucinações conforme aventara Ebenezer Scrooge em Um Conto de Natal?
Era a única explicação, certo? Quer dizer, se ele não bebia ou se drogava... Ou estava sofrendo os efeitos de uma intoxicação alimentar, considerando-se que intoxicações alimentares poderiam causar alucinações, ou desenvolvera algum transtorno mental tardio.
Riu de novo.
Apanhou a caneca larga de louça vermelha, e a trouxe para perto dos olhos.
O conteúdo parecia negro à luz azulada da televisão, e ele virou levemente o recipiente para movimentar o fluído em seu interior e ao fazê-lo quase se derramar pela borda, foi capaz de divisar, com assombro, a pequena figura de não mais do que oito centímetros de altura, dentro da caneca.
Não era uma pessoa. Poderia ser um tipo de girino, talvez?
De onde saíra um girino dentro de sua bebida?
Levantou-se, caneca na mão, e acendeu a luz da sala. Virou a caneca novamente. O pequeno ser lá dentro do fluído, agora parcialmente translúcido, tornou-se mais nítido.
Teve certeza:
Enlouquecera.
Dentro da caneca havia uma sereia. Literalmente uma pequena sereia de oito centímetros de altura, nadando em seu refrigerante. A porção feminina da diminuta criatura era uma moça de cabelos escuros com braços finos mas bem proporcionada, e sua porção peixe parecia laranja ou avermelhada. Ele não sabia precisar por conta da cor da Coca-Cola. Ela tentava nadar para o fundo do refrigerante aparentemente numa tentativa de se esconder novamente, mas à essa altura era impossível. Ele trouxe a caneca para perto dos olhos, bem embaixo do spot da lâmpada.
A criatura dentro do líquido escuro, percebendo a futilidade de seus esforços para se ocultar, cessou, e o encarou. Parecia envergonhada.
Ele ficou olhando para a pequena figura, aturdido, perguntando-se se aquilo estava de fato acontecendo, ou se ele estava sonhando, ou tendo um delírio de alguma espécie.
A sereia dentro da caneca pareceu perceber a confusão dele. E sinalizou com os braços para que ele chegasse mais perto.
Incapaz de contra-argumentar, ele aproximou o ouvido da boca da caneca.
A criatura falou, com uma voz que era pouco mais que um sussurro. Falou a respeito das benesses de aceitar a magia oculta das coisas. De ver o que outros não viam. De aceitar o imponderável. Ela falou e falou por horas, apontando cada um dos benefícios de abrir o coração para as coisas mágicas do mundo. Para a possibilidade que que há coisas que nossos olhos não podem ver, mas que estão ali, ao redor de nós, maquinando e realizando às escondidas.
As palavras dela eram agradáveis. O mundo com o qual ela acenava, também. Era, ao mesmo tempo, maior e mais confortável. Mais povoado e mais simples.
Parecia uma espécie de utopia idílica convivendo em paralelo com uma vida suja e complicada.
Já amanhecia quando ela terminou de falar, lhe dizendo o que ele precisava fazer para abraçar aquela outra realidade. Bastava que ele abrisse o coração e acreditasse. Bastava que levasse a sereia até a água, e a libertasse.
Apanhou a caneca, abriu a porta do apartamento, e saiu.
Andou os cerca de quatrocentos metros que separavam sua casa da orla revitalizada do Guaíba, e, parando em um dos deques de madeira, escorou-se na guarda de metal, e olhou para dentro da caneca. A diminuta sereia lhe sorria.
Sorriu de volta, e levou a caneca aos lábios. No último vislumbre que teve da sereia, ela fazia uma expressão de surpresa.
Bebeu o conteúdo da caneca, uma Coca-Cola já sem gás, quase um xarope, em três grandes goles. Não houve nenhum calombo em meio ao líquido.
Segurou a caneca vazia pela alça apoiado no parapeito e olhou a neblina que se deitava sobre o lago com satisfação.
Criaturas místicas, entes divinos e reinos ocultos que fossem catar coquinho. Ele não precisava de nada disso. Já tivera seu quinhão de completude quase inverossímil nos braços. E era tão palpável quanto perfeita.
Era toda a mágica de que precisava em sua vida.
A vislumbrava toda a vez que ela lhe dirigia a palavra.
Espreguiçou-se e voltou pra casa.
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