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segunda-feira, 6 de agosto de 2018

O Trem


Ela e ele estavam dividindo uma cabine no trem.
A composição ainda não começara a se movimentar, mas os passageiros já ocupavam os vagões, e a plataforma estava vazia. Ele baixou a cortina da janela que dava para o corredor e se ajeitou ao lado dela, apertando-lhe a mão miúda entre as suas e perguntando se ela estava ansiosa.
Seria a primeira vez que viajariam juntos.
Ela assentiu apenas com acenos rápidos de cabeça e um sorriso quase infantil no rosto.
O apito soou e sentiram o solavanco dos carros sendo puxados pela locomotiva com seu arranque.
Ele olhou pela janela, e viu o cenário lá fora se mover. Por um instante, se perguntou para onde estavam indo, mas a verdade é que nem ligava. Fosse pra onde fosse, bastava que ela estivesse junto.
Percebeu que ela o estava olhando e devolveu o olhar com um sorriso.
Ela se aninhou de encontro a ele, e, ainda segurando sua mão, perguntou:
-Se tu tivesse que escolher a tua coisa preferida entre nós... Uma só. Qual seria?
Ele franziu brevemente o cenho.
-Uma só?
Ela assentiu, novamente com um aceno de cabeça.
Ele olhou bem pra ela enquanto pensava. Se deu conta que o cabelo dela estava diferente. Um corte Channel na altura dos ombros. E notou que as roupas dela pareciam ser dos anos 1940, ou 50, e resolveu responder o mais rápido possível, para garantir que ela tivesse uma resposta:
-Se tivesse que escolher uma coisa só? Eu não sei. Tem tanta coisa... Tanta coisa que eu gosto, que eu amo, sabe? Escolher uma só é complicado. O teu cheiro... Sabe? Uma piada. Uma piada de tão bom. Ainda hoje eu passo em frente de salão de beleza e só penso em ti. Ridículo o cheiro daquela mulher. Uma piada alguém cheirar daquele jeito. Desse. Desse jeito. Injusto, até. Uma vez nos encontramos depois da academia, eu desgrenhado, suado, lustroso, e tu perfumada. Faça-me o favor... Chega a ser covardia esse negócio... Do teu cheiro. Enfim, essa é uma coisa...
Tem um outro lance, sabe... É, uma coisa que, eu não sei se é calculada, se é um comportamento que tu tenha escolhido pra ti ou se apenas sai ao natural... Mas me encantava muito. De vez em quando, quando a gente estava fazendo alguma coisa juntos... Ela... Tu tinha essa expressão no rosto, frente às coisas mais banais, e era como se estivesse fazendo uma descoberta muito definitiva. "Nossa! Um dispenser de mostarda!", e com um brilho nos olhos... Sei lá. Era uma coisa que eu achava sensacional. Essa forma de ver as coisas. Porque pra mim, é muito raro isso. Eu tenho essa abordagem mais blasé com relação a tudo, e ter ela ali, sendo esse contraponto. Era uma coisa que... Sob diversos aspectos era uma das tuas coisas que me completavam... Que me deixavam inteiro...
Olhou pra ela, que sorria, segurando a sua mão, mas olhava pela janela, o cenário em movimento lá fora.
-Ah! Tinha outra coisa... E essa, eu acho que não era, sabe, calculada... O coração dela, quando a gente se abraçava... O teu... O teu coração. Eu conseguia sentir o coração dela quando nossos corpos se colavam. E, é até cafona, mas eu achava isso o cúmulo do romantismo. Estar abraçado em alguém que gostava de mim o suficiente pra ter o coração batendo com tanta intensidade dentro do peito que... Sabe? Podia-se sentir do lado de fora...? Eu achava isso sensacional. Demais, mesmo...
Ela olhou pra ele. Não estava mais sorrindo. Tinha uma expressão serena no rosto.
Percebendo o que estava acontecendo, ele se inclinou para tentar beijá-la, mas não houve tempo. Acordou em sua cama, ouvindo o alarido de Bruna e André, os vizinhos do 52, fazendo o almoço de domingo a quatro mãos.
Apanhou o telefone da mesa de cabeceira e verificou a hora. Eram sete pro meio-dia. Esfregou a mão no rosto inchado pensando que sete horas de sono eram um período razoável, e sentou-se.
Foi apenas ao desligar o chuveiro após o banho, quase meia hora mais tarde, que foi capaz de recapitular todo o sonho. E enquanto escovava os dentes e se secava, foi capaz de concluir a resposta que Morfeu lhe impedira de oferecer integralmente:
-Mas essas coisas todas eram mais tuas. E eu apenas me apropriei delas porque elas são parte do que te faz tão perfeita aos meus olhos. Então, talvez, se fosse pra escolher uma única coisa nossa, é possível que fosse ser o beijo...
O nosso beijo era uma coisa de outro mundo.
Do primeiro ao último, aqueles beijos eram a epítome da nossa relação. Eles eram uma carta de intenção, uma declaração. Eu acho que poucas vezes na vida alguém trocou beijos tão bons. Foram certamente alguns dos melhores da minha vida, quiçá os melhores. Eram bem dados. Molhados. Quentes. E diziam tudo o que havia pra ser dito de nós dois. Eles tinham essa cumplicidade do encaixe perfeito, as diferenças entre nós dois ficavam evidentes, mas ao mesmo tempo, de lábios colados, nós reforçávamos que o que nos unia era muito maior e mais definitivo. Sem contar que eram, ao menos pra mim, terrivelmente excitantes. Quer dizer... Te beijar era um troço que, ás vezes, começava sem nenhuma agenda maliciosa, mas naturalmente enveredava por esse caminho porque, sei lá... Era uma coisa que o beijo fazia por conta. Então, apesar de eu poder pensar em várias outras coisas... Passar a mão no teu cabelo... Espalmar a mão na tua lombar quando andávamos juntos... desenhar na tua pele com caneta Bic, ou te ter sentada no meu colo assistindo desenho... Eu provavelmente fico com o beijo porque ele meio que encampa tudo o que nos faz "nós".
Amarrou o cabelo de qualquer jeito, e foi tratar do almoço.

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