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quarta-feira, 27 de março de 2019

O Horror, O Horror


Quando eu era criança eu sofria de paralisia do sono.
Eu acordava e continuava tendo alucinações visuais e mesmo táteis que persistiam após eu ter despertado do sono, o que geralmente fazia eu enxergar e eventualmente sentir o mundo fora de proporção. Os episódios não eram comuns, mas davam-se com alguma regularidade.
Geralmente tais ocorrências forçavam minha mãe a saltar da cama e me levar ao banheiro para molhar meu rosto e me acalmar do pranto soluçante em que eu entrava quando esses episódios ocorriam...
Nessa infância, com sete, oito anos, o medo desses episódios de paralisia do sono era, sem sombra de dúvida, o meu maior temor.
Antes disso, meu problema era com o encerramento das transmissões da RBS TV. A afiliada da Globo no Rio Grande do Sul.
Veja, quando eu era bem pequeno, as redes de TV não operavam vinte e quatro horas por dia exceto de sexta para sábado e de sábado para domingo. De domingo a quinta-feira, a TV encerrava suas operações por volta de uma ou duas da manhã, se não me falha a memória, e então havia uma vinheta mostrando o logo da emissora viajando por paisagens tipicamente gaúchas, como cidades da serra e pontos de interesse de Porto Alegre ao som da abertura 30 de Also Spach Zarathustra, de Richard Strauss, o tema de 2001: Uma Odisseia no Espaço.
Não me pergunte por que, mas aquela música me apavorava a ponto de eu enfiar minha cabeça no travesseiro e chorar de pânico quando acontecia de eu ficar acordado até tarde o bastante para ouvi-la.
Com oito, nove, dez anos de idade, meu grande pânico era a insônia.
Eu virava noites consecutivas sem dormir na casa de minha avó, com quem morei brevemente.
Cheguei a ler seis livros da série Vaga-Lume (O Rapto do Garoto de Ouro, No Ninho dos Gaviões, Na Barreira do Inferno, Bem Vindos ao Rio, A Maldição do Tesouro do Faraó e Doze Horas de Terror)e O Exorcista na mesma semana por não conseguir dormir... Conforme se aproximava a hora de deitar eu ia me enchendo de pânico, mas isso foi apenas até minha avó me dar licença para dormir apenas quando eu tivesse sono, e ficar zanzando pelo apartamento madrugada adentro inclusive com liberdade para alugar filmes e usar o vídeo-cassete de madrugada (o que me levou a ver, por exemplo, filmes de Dirty Harry nas madrugadas insones na casa da dona Tereza).
Não me lembro qual foi meu grande medo entre os onze e os treze anos...
Quase me atrevi a falar em bullying, mas a verdade é que, quem cresceu nos anos 80/90 vendo filmes e lendo gibis como eu, acreditava que o bullying era parte da vida de qualquer protagonista. Sim, eu fui marginalizado por ser nerd (antes de nerd ser sequer uma palavra que se usasse em português, igualzinho a bullying), por ser pobre, por ser péssimo em esportes e por ser gorducho, mas a verdade é que nada disso me traumatizou, e eu jamais deixei de querer ir à escola por conta dos atos dos valentões (chamávamos eles de repetentes, porque eram sempre sujeitos que estavam há dois ou três anos na mesma série sendo muito maiores do que aqueles que estavam no lugar certo. Sabe, antes das aprovações automáticas, esse fenômeno que é tanto uma iniciativa anti-evasão escolar quanto uma fábrica de analfabetos funcionais).
Depois disso, na adolescência, meu medo eram problemas familiares...
Houve um momento muito, muito complicado entre meus quatorze e dezesseis anos, em casa... Eram episódios constantes que me enchiam de terror, e com os quais eu precisei conviver em silêncio até alcançar um certo grau de maturidade, o que só ocorreria, de fato, quando eu já tinha dezessete ou dezoito anos...
Provavelmente a atmosfera de tensão que precedia esses rompantes domésticos era a coisa que mais me assustava em uma época em que eu trocava socos na rua como quem vai à padaria, e que, por sorte, não moldou minha personalidade e meu caráter de uma forma negativa...
Ou ao menos é assim que eu vejo as coisas.
Depois de adulto, meu maior pavor foi ser incapaz de proteger as pessoas que amo.
Tu já assistiu Animais Noturnos? Lembra da parte em que Jake Gyllenhaal e Isla Fisher são parados na estrada por Aaron Taylor-Johnson e seus asseclas?
Aquela seria uma sequência de pesadelo pra mim entre os vinte e os vinte e cinco anos... O tipo de situação que sequer assistir me embrulharia o estômago, e na qual me imaginar, transformaria minhas pernas em gelatina.
Felizmente, ou infelizmente, acabei vivenciando um episódio semelhante certa feita, e, consegui reagir bem à situação, o que me ajudou a exorcizar aquele pavor todo.
Depois dos vinte e cinco, confesso que comecei a desenvolver algum tipo de ataraxia ao menos no que tange ao medo.
Eu convivi muito bem com qualquer situação tensa da vida real, de estar perdido no ermo (duas vezes), me engasgar com comida sozinho, ser atacado por um animal feroz ou tentativas de assalto... Como não acredito no sobrenatural, jamais tive qualquer problema nessa esfera...
E foi apenas já com meus trinta e tantos anos que redescobri o medo.
Foi quando fui confrontado com a ideia de, inadvertidamente, estar causando mal à uma pessoa amada.
A perspectiva de ser um agente malfazejo na vida de quem eu amo foi, provavelmente, o maior pavor que eu já havia sentido na vida. Pior do que passar uma noite inteira sofrendo de paralisia do sono, ouvindo a abertura 30 de Zarathustra enquanto um bêbado destruía minha casa aos berros...
Foi um ponto onde eu realmente pesei minhas decisões e me esforcei pra ser um ser humano tão decente quanto possível e tentar colocar o bem estar da minha amada antes da minha satisfação pessoal.
E, ao contrário dos outros temores de minha vida, esse foi um que jamais superei, e com o qual pude apenas aprender a conviver e, posso dizer de cátedra, não é fácil. É como morar em uma kitchenette com dezoito bodes... É algo com o qual é possível se acostumar, mas que jamais será sequer remotamente confortável.
Agora, com quase quarenta e aparência de Joaquin Phoenix em Você Nunca Esteve Realmente Aqui, descobri um novo medo.
Não... Ainda não é do proctologista, da próstata ou das coronárias...
É o medo de tu enjoar de mim.
É o medo de te cansar com minhas inseguranças, de te ver de saco cheio de acalentar um macambúzio sorumbático e cheio de melindres que é tudo nessa vida, menos fácil de conviver.
É o pavor de te enfadar com meus arrependimentos e culpas que, como tudo que se relaciona contigo, torna-se excessivo, amplificado e superlativo como são meu amor por ti...
É o pânico de te enfastiar com meu amor desmedido... De não saber onde parar. De não conseguir conter meu ímpeto de me despedir de ti e dali a uma hora te perguntar como tu está...
O temor de tentando te trazer pra perto, te afastar...
O receio de tu pensar que estou te impondo minha presença e te sufocar ao tentar compensar pela ausência...
O horror, o horror de não te ter comigo.

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