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quarta-feira, 27 de março de 2019
Tudo de Bom
Como sempre acontecia quando usava fones de ouvido, caminhava a passos rápidos pela orla do Guaíba alheio a todos os sons que o cercavam. Era final de tarde ele repetia o seu ritual diário com devoção de monge, não porque fosse devoto, mas por uma habilidade quase sobre-humana de transformar qualquer coisa em hábito.
Quando ouviu o som abafado que lembrava seu nome, ignorou nas duas primeiras vezes. Foi atentar a que se tratava apenas quando da terceira vez, quando o ruído foi mais alto, mais próximo e acompanhado de um puxão na base de sua camiseta.
Virou-se tirando o fone intra auricular do ouvido e encarando a pessoa que gritava por ele. A figura esbaforida que assomava era familiar.
Os cabelos castanhos escorridos com os olhos muito azuis e as bochechas rosadas, naquele momento carmim, eram a efígie de sua ex-vizinha Monique.
Adorável bicho-grilo, Monique era aquelas vizinhas que eram amigas do condomínio inteiro, ainda que, eventualmente, fizesse queixas à boca-pequena no pé do ouvido do síndico.
Uma gordinha bonita, de quadris, coxas e seios fartos tinha um sorriso perene encravado no rosto de feições delicadas.
Adorava conversar e tinha um quê de mentalista, sempre tentando adivinhar o estado de espírito do interlocutor e oferecendo conselhos e receitas, totalmente naturais, para quaisquer aflições que pudessem estar atormentando quem quer que fosse.
Sempre fora tremendamente amigável com ele quando moravam no mesmo prédio, sendo amigável e divertida.
Com o largo sorriso aberto o cumprimentou:
-Criatura, como tu emagreceu. Fiquei na dúvida se era tu. Reconheci pela mochila. Como tu está?
-Tudo bem... Tudo bem, mesmo... - Ele disse, enfatizando desnecessariamente.
Ela notou. Fez uma careta de quem ouviu uma piada em potencial e está esperando a punch line.
-Tá... E....? - Inquiriu, alongando o "e?". Mas ele deu de ombros, ainda sorrindo:
-E nada... Tudo bem. ... Mesmo.
De novo a ênfase exagerada e desnecessária. Quase como ser parado por um policial e dizer "não tem nada no porta-mala".
Ela o encarou fechando um olho:
-Tudo bem, mesmo?
Ele riu:
-É... Olha... Tem uns probleminhas aí, mas... Nada que não se resolva e... E eu tô... Acho que... Feliz.
-Feliz? - Ela perguntou. Parecia incrédula.
Ele franziu o cenho com cara de confuso. Teria alcançado um grau de amargura tão elevado que quando se dizia feliz as pessoas o olhavam como se, em algum lugar, houvesse um médico com uma seringa e um prontuário com nome dele fazendo uma busca?
-É. Tô... - Pensou olhando pra cima rapidamente. -Sim. Tô feliz. - Afirmou, estufando o peito.
-Entendi... - Entendeu, ela. -E... E os probleminhas?
-Olha... São coisas com as quais eu vou ter que lidar... Mas é do jogo. E eu não tenho nem o que pensar a respeito. Eu resolvo. - Explicou, vago, mas decidido.
-Que bom... - Ela disse, balançando a cabeça positivamente.
Ele sorriu sem dizer nada. Ela sorriu de volta. Disse:
-Olha... Eu sei que tu não acredita nessas coisas, mas quando eu tô muito embananada, têm umas coisas que me dão paz de espírito pra encarar momentos difíceis...
-Sei... - Ele disse, sem realmente saber.
-Faz o seguinte - Ela continuou -Quando chegar em casa, corta umas rodelas de limão galego, esse verde, normal, e deixa debaixo da cama...
-Eu gosto de limão. - Ele admitiu balançando a cabeça positivamente enquanto pensava nas formigas embaixo de sua cama se realmente chegasse a fazer aquilo.
-É muito bom. - Ela recomendou. -Mas melhor, mesmo, é tu pegar uma panelinha, e queimar umas folhas de louro. É bom pra paz interior. Pra chamar vitória. Tudo de bom, louro.
Ele agradeceu. Ela o abraçou e desejou "tudo de bom". Caminhou alguns passos e reforçou:
-Não esquece: Louro!
Ele acenou e quando retomava sua marcha pra casa falou baixinho:
-É... Olha... Eu prefiro morena...
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