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segunda-feira, 8 de abril de 2019

Resenha DVD: Infiltrado na Klan


Com uma passagem discreta pelo circuito comercial de Porto Alegre (poucas salas, poucos horários, pouco tempo), Infiltrado na Klan não era um dos bambas da temporada de premiações que eu estava mais ansioso por assistir.
Se é verdade que gosto de vários filmes de Spike Lee, o diretor de Faça a Coisa Certa, Febre de Selva e O Plano Perfeito não é uma unanimidade pra mim, e ainda que eu entenda e respeite seu engajamento político, já disse antes que, para meu gosto, a mensagem que um filme deseja transmitir jamais deve ser mais importante do que a história que ele deseja contar, e esse equilíbrio nem sempre existe nos longas do cineasta.
Ainda assim, a história do policial negro que conseguiu se infiltrar na Ku Klux Klan era algo que eu gostaria de assistir, de modo que no sábado, mesmo com Primeiro Homem e Nasce Uma Estrela disponíveis na locadora, briguei com outro sócio pelo filme.
Infiltrado na Klan abre com um pequeno curta estrelado por Alec Baldwin no papel do doutor Kennebrew Beauregard que faz um impossivelmente obtuso discurso a respeito da guerra racial sendo promovida contra o norte-americano médio pelos negros e os judeus.
O discurso de Kennebrew é idiota além da medida, e ele nem sequer o faz com desenvoltura, errando constantemente e explodindo em palavrões quando escorrega nas palavras.
O pequeno trecho, porém, ilustra de maneira divertida a forma como viés de confirmação funciona: Por mais ridículo e incompetente que seja o agente transmissor, o receptor vai aceitar sua mensagem se ela for ao encontro de suas próprias crenças.
Corta para 1979, na cidade de Colorado Springs.
O jovem Ron Stallworth (John David Washington) chega à delegacia da cidade para se encontrar com o chefe de polícia local e fazer uma entrevista de emprego. Ron é inquirido pelo chefe Bridges (Robert John Burke) se ele está disposto a ser o Jackie Robinson da polícia de Colorado Springs, em outras palavras, se ele está preparado para ser ofendido e assediado até mesmo por seus pares por ser o primeiro negro no departamento. Ao garantir que sim (após um diálogo particularmente hilariante entre o protagonista e Turrerntine, personagem de Isiah Whitlock, Jr.), Ron é contratado e enfiado nos arquivos onde as previsões de seu chefe se mostram estupidamente fundamentadas.
Após ter o suficiente do racismo dos policiais de Colorado Springs, Ron pede para ser um agente infiltrado, o que eventualmente consegue, recebendo a missão de observar uma palestra do ex-líder dos Panteras Negras Kwame Ture (Corey Hawkins).
Ainda que a preocupação de Bridges seja racista, o temor de que a palestra de Kwame possa incitar os "bons jovens negros da comunidade" a se rebelarem, a missão serve tanto para Ron se conectar com a comunidade estudantil negra local, em especial a presidente da União Estudantil Negra Patrice Dumas (uma Laura Harrier tão bonita que eu demorei a identificá-la como a Liz de Homem-Aranha: De Volta ao Lar), e conhecer os detetives Jimmy Creeck (Michael Buscemi) e Flip Zimmerman (Adam Driver).
Enquanto esconde sua profissão para cortejar Patrice, que despreza policiais, Ron casualmente vê um anúncio de recrutamento da Ku Klux Klan em um jornal local, e impulsivamente telefona para o grupo pedindo por informações enquanto despeja toda a sorte de ofensas raciais possíveis em uma animada conversa com o presidente da seção local do grupo (A reação dos demais policiais no recinto ao telefonema de Ron é um dos muitos momentos hilariantes de Infiltrado na Klan). Não tarda para que Ron seja convidado para se encontrar com o líder da Klan em Colorado Springs, Walter (Ryan Eggold), uma reunião à qual ele só poderá comparecer com a ajuda de Zimmerman, um judeu não-praticante que irá interpretar o papel da versão branca e racista do detetive usando uma escuta.
Durante essa primeira reunião, surgem evidências de que a Klan esteja planejando um ato de violência durante a visita de outro ativista dos direitos civis à cidade, Jerome Turner (interpretado pelo cantor e ativista político de verdade Harry Belafonte).
O grande perigo da Klan de Colorado Springs se deve à proximidade da cidade com a base militar de Fort Carson e o quartel-general do NORAD, onde a organização possui membros ativos com acesso a armamento e explosivos, e isso faz com que Ron e Flip se engajem com vontade na investigação, com Stallworth mantendo os contatos telefônicos com os membros da Klan, incluindo o Grão-Mago da ordem David Duke (um excelente Topher Grace) enquanto Zimmerman coloca o seu na reta nas reuniões presenciais com gente como o desconfiado fanático Felix Kendrickson (um assustador Jasper Pääkönen) para tentar desmantelar um ataque terrorista que parece cada vez mais palpável conforme a visita de Turner coincide com a chegada de Duke à Colorado Springs.
Infiltrado na Klan é excelente.
O absurdo da premissa de um negro conseguir se infiltrar na organização mais quintessencialmente racista dos Estados Unidos é tão flagrante que a escolha de Lee de filmar o longa como uma comédia faz todo o sentido do mundo. O tom do longa é complicado, e Lee faz de conta que não o leva a sério, escondendo a mensagem em meio a um embrulho de filme policial.
Sob a tensão de ter nossos heróis descobertos pela gangue de caipiras racistas na qual eles se infiltram, o modo brusco como o diretor trata seus argumentos mais incisivos traçando paralelos entre a trama de época e a situação contemporânea dos EUA se torna um poderoso pano de fundo. Momentos como quando a reunião da Klan tem os slogans de campanha de Donald Trump entoados pelos membros da organização em uníssono divertem tanto quanto fazem pensar, mas espertamente Spike Lee não faz disso o cerne do longa.
Infiltrado na Klan é sobre pessoas precisando assumir papéis, é sobre a forma como somos vistos no mundo onde vivemos.
Ron Stallworth precisa se passar por um racista branco para conseguir fazer uma investigação que faça sentido para ele. O personagem com seu penteado black power volumoso e suas roupas coloridas se destaca na força policial de Colorado Springs como uma cebola na salada de frutas, mas ao telefone ele consegue se passar por um "verdadeiro herói da América branca".
John David Washington é ótimo no papel, exibindo sempre uma confiança que o roteiro de Charlie Wachtel, David Rabinowitz, Kevin Willmott e do próprio Lee colocam à prova durante todo o longa, mas a interpretação de Adam Driver, indicada ao Oscar, é a mais interessante do filme. O Kylo Ren dos novos Star Wars também precisa assumir um papel, no caso, o mesmo de Ron, o de um racista branco, mas sobrepõe isso ao papel que já interpreta em sua vida. O de alguém que não é judeu.
À certa altura o personagem diz que não foi a muitos bar mitzvahs, e que ele próprio jamais teve um, mas que estar infiltrado na Klan e conviver com todo o ódio gratuito o faz se flagrar pensando em tradição e herança o tempo todo, e Lee parece saber que a linha de Zimmerman é mais desafiadora à sua maneira, pois enquanto Ron recebe uma vida fora da investigação e do departamento, saindo para dançar com Patrice e brincando de golpes de kung fu ao ser insultado por seus colegas brancos, Flip está sempre no limiar de um ataque de nervos, pois seu ato como um não-judeu é em tempo integral.
O respeito de Lee por seus personagens e pela trama do filme mantém a mensagem no banco do carona até o encerramento do filme, quando o diretor esfrega a cara da audiência na contemporaneidade dos temas abordados na comédia policial durante os cento e trinta minutos prévios ao mostrar impactantes imagens dos incidentes de Charlottesville nos EUA em 2017, quando supremacistas brancos entraram em conflito com manifestantes anti-racismo inclusive com a morte da ativista Heather Hayer, homenageada no final do filme com a frase "descanse em poder".
Infiltrado na Klan é um dos melhores filmes da carreira de um maduro Spike Lee, que segue sendo um polemista de mão cheia, mas um polemista necessário e no momento certo e não apenas nos Estados Unidos.
Essa é uma cruz flamejante cujo peso várias partes do mundo compartilham com os EUA nos nossos dias, e o Brasil não é uma exceção.
Assista.

"-Pra você isso é uma cruzada. Pra mim, é um trabalho.
-Você é judeu. Eles te odeiam. Isso não te deixa puto? Por que fica agindo como se não fosse pessoal?"

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