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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2020

Resenha Filme: Doutor Sono


Hoje em dia, eu não tenho a melhor das relações com filmes de horror, o que não deixa de ser irônico considerando que, na minha infância, o gênero dividia minha preferência com a ficção científica levando, quiçá, alguma vantagem na comparação.
Simplesmente havia algo em assassinos imortais, monstros, fantasmas, aparições e demônios que animavam sobremaneira meu eu dos sete aos dez, onze anos. Eu não lembro se cheguei a comentar nesse espaço, mas cheguei a criar, com meu amigo André, um assassino Slasher que matou toda a nossa turma da quarta série em um trabalho de português que se tornou o nosso livro: Um Assassino em Terceira Dimensão, um best seller em potencial que infelizmente jamais recebeu o devido crédito.
Com o passar dos anos eu fui perdendo o gosto pelos filmes de terror (algo que deve ter ficado evidente quando quase todos os meus filmes de terror preferidos eram longas da década de 1980 pra trás...), e, na verdade, tornando-me avesso ao gênero que pouco me assustou, e eventualmente conseguiu até mesmo parar de me divertir gerando um divórcio quase absoluto.
Quase, porque eventualmente eu ainda me sinto impelido a assistir algum filme de horror. Acho que, mais recentemente, assisti aos dois Invocação do Mal (que não achei ruins e, tenho quase certeza, elogiei nas resenhas), It: A Coisa, e, em meados do ano passado, em uma madrugada insone na companhia da morena mais linda que já pisou nessa Terra, assisti O Iluminado.
Sim, foi com quase quatro décadas de atraso que eu assisti o que muitos consideram a adaptação máxima de uma obra de Stephen King, e um dos filmes de horror essenciais de todos os tempos, e, eu preciso dizer, a desventura da família Torrance no Hotel Overlook não chegou a me impressionar.
Talvez pelo fato de eu não ser um fã das histórias de horror de King, ou por ser tremendamente avesso à forma de narrativa de Stanley Kubrick, seja como for, não achei O Iluminado um mau filme, mas também não achei bom. Ele me distraiu por suas quase duas horas e meia, e acho que isso já o torna superior à maioria dos filmes de horror de hoje em dia, mas não me marcou e nem mesmo chegou perto de entrar na minha lista de filmes de terror prediletos.
Não foi por mais senão acaso que a passagem do notável José Mojica Marins, o Zé do Caixão na última quarta-feira me fez ter vontade de assistir um filme de horror em homenagem ao mestre brasileiro do gênero. Ao entrar no serviço de aluguel digital do Google, um dos primeiros filmes que espocaram na sessão de lançamentos foi Doutor Sono, e, sem paciência para garimpar além disso, resolvi dar uma chance ao longa.
O longa abre em 1981, na Florida, quando conhecemos Rose a Chapéu (Rebecca Ferguson) e sua "família" a Nó Verdadeiro. Um grupo com cara de tribo de ciganos que vaga sem paradeiro pelos EUA em trailers, evitando as grandes rodovias e parecendo inofensivos.
É apenas uma fachada.
A Nó Verdadeiro é uma quadrilha de psicopatas quase imortais que se alimenta do vapor liberado por crianças "Brilhantes" quando elas são torturadas até a morte, crianças "Brilhantes" como o pequeno Danny Torrance (Roger Dale Floyd).
Quando o encontramos ele e sua mãe, Wendy (Alex Essoe), estão tentando se readaptar à vida normal após os trágicos acontecimentos do Hotel Overlook, mas não é uma luta fácil. Ambos estão profundamente traumatizados, e Danny ainda precisa lidar com todos os fantasmas que parecem ter se colado a ele após o inverno no Colorado. Mas Danny recebe a visita de Hallorann (Carl Lumbly), que lhe diz que existe uma forma de se livrar desses espíritos pérfidos. Uma maneira que Danny não demora a dominar.
Danny cresce. E não cresceu bem. Agora com a cara de Ewan McGregor ele é um alcoólatra que se envolve em brigas e faz sexo com desconhecidas, ele alcança o fundo do poço após passar a noite com uma mãe solteira de quem rouba na manhã seguinte, e ciente de que não tem mais como afundar, ele ruma para o norte em busca de um novo começo.
Em New Hampshire ele encontra uma comunidade, uma saída para o vício, e um propósito na vida. Ele passa a trabalhar em um hospital onde seus dons especiais lhe conferem a capacidade de confortar pacientes terminais de uma forma como apenas ele é capaz, o que lhe garante a alcunha de Doutor Sono.
Eventualmente ele começa a se corresponder telepaticamente com Abra Stone (Kyleigh Curran), uma jovem que também possui o "Brilho", é Abra que acidentalmente descobre a forma de agir do Nó Verdadeiro, e imediatamente entra na mira do grupo, forçando Dan a encarar uma difícil escolha: Seguir com sua vida quando finalmente parece ter encontrado a paz que buscou por tantos anos, ou reabrir as portas do inferno para tentar salvar uma criança indefesa de uma seita de monstros?
A tarefa do diretor/roteirista Mike Flanagan não foi nem um pouco invejável.
O Iluminado no cinema foi tão diferente de O Iluminado na literatura que Stephen King odeia o longa metragem, criar um filme que pudesse ser uma sequência do livro e do filme de 1980 sem desagradar aos fãs de nenhum dos dois é um trabalho de equilibrismo difícil de alcançar, e o cineasta bem que tentou.
Espertamente, ele não tenta emular o visual do longa de Kubrick até que seja estritamente necessário, e por mais que haja defeitos no roteiro do longa, ele faz um tremendo trabalho ao misturar o lado emocional e sobrenatural das vidas de seus personagens de uma forma que poucos filmes de horror ousariam, com isso, Doutor Sono encontra seus melhores momentos quando os personagens realmente têm algo de seu a dizer, como por exemplo no discurso de Danny na reunião do Alcoólicos Anônimos.
Infelizmente, o longa parece ter dificuldade em acompanhar três linhas narrativas correndo em paralelo ao longo de suas duas horas e meia, e esses momentos emocionais acabam sendo mais raros do que as inevitáveis memórias dos eventos do Overlook, que aí, ganham a cara cuspida e escarrada do longa de Kubrick, e fazem parecer que Doutor Sono está com medo de andar com as próprias pernas.
Quando o faz, ele dá ao seu elenco a oportunidade de brilhar, e ninguém brilha mais do que Rebecca Ferguson. A atriz rouba a cena sendo perversa e carismática até durante o brutal assassinato de uma criança. Kaleigh Curran também se sai bem, com a jovem Abra sendo mais do que uma vítima indefesa precisando de resgate, mas uma jovem autoconfiante e, ás vezes até arrogante demais para o próprio bem. McGregor tem alguns dos melhores momentos emocionais do filme, mas Dan Torrance se ressente de um roteiro melhor para si, por sorte o nosso Obi-Wan Kenobi é carismático o suficiente para manter sua dignidade intacta com os lampejos que o script lhe oferece.
Em geral, Doutor Sono é um bom filme, ele não é tanto um filme de horror quanto um suspense de fantasia sobrenatural, e, de certa forma, me fez pensar em A Hora do Pesadelo 3, de Chuck Russell O longa tem uma produção bem-intencionada, um roteiro que se mantém interessante pela maior parte de suas duas horas e quarenta minutos, e um bom trabalho do elenco (que conta com nomes como com Cliff Curtis, Bruce Greenwood, Zahn McClarnon, Jacob Tremblay e Emily Alyn Lind, entre outros). Eu francamente não sei por que o longa naufragou feio nas bilheterias, mas, se servir de consolo aos envolvidos, antes de virar objeto de culto, O Iluminado também foi um um tremendo fracasso de público.
Quem sabe o que o destino reserva a Doutor Sono?

"-Nossas crenças não nos tornam pessoas melhores. Nossas ações nos tornam pessoas melhores."

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