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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020
Resenha Filme: Os Mortos Não Morrem
Sábado, enquanto os blocos varriam a Cidade Baixa em Porto Alegre, eu estava tranquilamente aquartelado em meu covil mais do que disposto a não ouvir nem sequer uma única nota de samba-enredo, pagode, axé ou funk durante os quatro dias da folia de Momo.
Não foi particularmente difícil. Foi-se o tempo em que o carnaval era uma ditadura e o sujeito não tinha pra onde se virar se fosse alheio ao ziriguidum. Com o advento de videogames, serviços de streaming, TV a cabo e aluguéis digitais, o carnaval tornou-se genuinamente democrático, e eu só fui ver qualquer coisa relacionada aos festejos enquanto assistia o noticiário de ontem.
No sábado, porém, eu pedi comida pelo telefone, e, quando ela chegou, saí à caça desse Os Mortos Não Morrem, de Jim Jarmusch, mesmo do excelente Amantes Eternos, cujo trailer eu havia visto, sei lá, na metade do ano passado, e estava com vontade de ver desde então.
A comédia de zumbis de Jarmusch se passa na cidadezinha de Centerville.
A pacata cidade que conta com apenas três policiais tão habituados à suas rotinas que até ser recebidos a tiros pelo eremita local não os faz se enervar vê as coisas mudarem de figura quando o fato de a Terra estar fora do seu eixo (uma iniciativa governamental em nome de energia que, garantem as autoridades, não é motivo de preocupação e nem é ruim para o meio-ambiente) começa a provocar mudanças na vida de todos.
Primeiro, os dias se tornam mais longos, não há entardecer, a noite simplesmente cai. As telecomunicações não funcionam direito e telefones celulares tornam-se inúteis. Como se isso não fosse o suficiente, os mortos começam a se levantar de seus túmulos para se alimentar da carne dos vivos.
Inicialmente a resposta do chefe de polícia local, Cliff Robertson (Bill Murray), é esperar que as coisas se acalmem, embora o oficial Ronnie Peterson (Adam Driver) tenha certeza de que as coisas vão acabar mal, e a oficial Mindy Morrison (Chloë Sevigny) simplesmente não tenha estrutura emocional para lidar com a infestação de zumbis.
Enquanto a polícia decide o melhor curso de ação conforme suas suspeitas se tornam certezas, o restante da população da cidade lida com a crise cada um à sua maneira. O fazendeiro racista Frank Miller (Steve Buscemi, com direito a um boné vermelho ostentando uma versão da frase de campanha de Donald Trump) se enfurna em sua propriedade com seus rifles atirando nos invasores trôpegos. O dono da ferragem local, Hank (Danny Glover) se junta a Bobby (Called Landry Jones), o nerd que gerencia o posto de gasolina/loja de memorabília nerd da cidade, e ambos montam uma barricada na loja do primeiro. A papa-defunto Zelda Winston (Tilda Swinton) não parece preocupada com a situação nem mesmo quando os cadáveres na mesa de sua funerária começam a se levantar, forçando-a a agir com sua katana, enquanto o eremita Bob (Tom Waits) observa tudo à distância, com binóculos em meio à mata.
A premissa de Os Mortos Não Morrem é tão básica quanto podem ser as premissas de fitas de zumbi. Está tudo lá, a cidadezinha, os policiais tentando lidar com a situação, a pletora de personagens, daqueles que simpatizamos àqueles que devemos torcer para serem devorados, mas esse é um filme de Jim Jarmusch, então a obviedade da coisa toda fica na premissa.
Antes mesmo de os cadáveres reanimados começarem a se levantar, o longa mergulha com força na metalinguagem, com Ronnie informando ao chefe que a canção no rádio, The Dead Don't Die, de Sturgill Simpson, parece familiar por ser a música-tema do filme. O resultado é por vezes termos os personagens reafirmando, para a audiência, coisas que o filme já deixara claro na sua própria narrativa, como o fato de que, de certa forma, esses cabeças-oca já estavam mortos antes de serem devorados pelos cadáveres. Isso não é uma falha, mas uma decisão consciente de Jarmusch, que decide cutucar a audiência, explicando a piada conforme a conta para garantir que todos entendam, mesmo as pessoas que, a exemplo dos zumbis na tela, andam pelas ruas com o celular na mão murmurando "Wi-fi...", enquanto dá um sorriso e uma piscadela para o sub-gênero dos filmes de mortos-vivos e para a parcela da audiência que entendeu a mensagem:
Isso vai acabar mal.
Porque não importa sob qual ponto de vista o espectador se alinhe, o de Ronnie, que sabe que estamos condenados mas mantém uma fagulha de curiosidade acadêmica sobre como esse fim está chegando, Zelda, que parece estar mais interessada em outras coisas para prestar atenção à carnificina que se desenrola ao seu redor, ou o Chefe Robertson, entristecido com o desperdício de potencial, ou o eremita Bob, que não é mártir nessa história, mas testemunha, a ideia por trás de Os Mortos Não Morrem é pessimista. Fatalista, até, conforme as últimas linhas do filme atestam.
Sob as lentes do cinematógrafo Frederick Elmes Jim Jarmmusch filma com indiscutível elegância o seu estrelado elenco (que ainda conta com Rosie Perez, RZA, Larry Fessenden, Selena Gomez, Austin Butler, Iggy Pop e Carol Kane, entre outros) navegar por essa história de horror autoconsciente que, na melhor tradição dos longas de horror e ficção científica dos anos 50/60, é uma metáfora para os horrores do mundo real, e, a exemplo dos filmes de zumbi de George Romero, mostra um apocalipse zumbi que não é mais senão uma versão anabolizada da ruína social que presenciamos todos os dias.
Centerville é o mundo em uma casca de noz. Cultural e economicamente decadente, habitada por gente vazia presa à uma rotina sem sentido de uma maneira tão flagrante que a única diferença quando se instaura o horror morto-vivo é o canibalismo, e quando eles percebem a gravidade da ameaça, já é tarde demais, porque eles passaram muito tempo em negação, e, ainda na estirpe dessa qualidade de filmes de horror/ficção, a extinção vem pelas mãos da própria humanidade, que é excessivamente ignorante e gananciosa para se dar conta que é a agente da própria tragédia.
Não é difícil perceber que Os Mortos Não Morrem não é pra todas as audiências. Ter nosso nariz esfregado na sujeira não é uma experiência aprazível, mas, para aqueles com um mínimo de sagacidade e capacidade para rir de si próprio, certamente vale assistir.
Os Mortos Não Morrem é um filme perspicaz, elegante, e que não se leva a sério, e isso sempre merece audiência.
"-Tão famintos... Mas já passaram um bocado de seu prazo de validade."
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