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segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Horizontes...


Jamir era um sujeito em seus vinte e poucos anos, anos demais pra ser um "guri", mas responsabilidades e vivências de menos pra ser um homem. Jamir se sentia nada. Ele ainda era office boy na firma em que trabalhava. Jamir começara tarde no trabalho, arranjou o primeiro emprego somente aos vinte e um anos! Como não tinha nenhuma experiência e nem o ensino médio completo, Jamir precisou aceitar qualquer emprego, não que se importasse, Jamir era um sujeito de horizontes limitados.
Na verdade, se dependesse dele, Jamir seguiria vivendo da pensão da mãe. A mãe de Jamir, dona Cremilda, era viúva, Jamir jamais conheceu seu pai. Ele morreu atropelado por um caminhão de cerveja quando Jamir tinha quatro meses de idade.
Wilmar, era o nome do pai de Jamir, era um homem correto. Fizera um seguro de vida e deixara dinheiro o bastante pra que Cremilda comprasse uma casinha. Havia também a pensão, que se não permitia uma vida de luxos, ao menos não deixaria faltar o básico á Cremilda e Jamir.
Cremilda sentia falta da atenção de Wilmar, mas não se casaria novamente, nem namoraria. Era muito devota, a Cremilda. E feia. Cremilda era gorda, não fofinha, não reforçada, ou fornida. Cremilda era uma porca de tão gorda. E feia. Cremilda tinha o nariz de um boxeador peso pesado, tinha peso de peso pesado, também. E altura de peso mosca, o rosto dela tinha pele demais. Wilmar não sabia como uma mulher tão gorda podia ter excesso de pele. Ele temia que Cremilda seguisse engordando pra preencher toda aquela pele que parecia solta no rosto. Quando Cremilda deitava, sempre de barriga pra cima, ela parecia outra pessoa. A pele ia escorrendo em direção ás orelhas dela, mudando as suas feições. Para Wilmar, era quando ela ficava mais bonita. Wilmar á amava, também não era bonito, o Wilmar, mas era consenso que podia ter se casado melhor. Mas ele amava Cremilda, casou com ela na igreja, engravidaram, e nasceu Jamir, á quem Wilmar não pode ensinar seu ofício. Era encanador.
A mãe de Jamir sofreu muito com a morte do marido. Sofreu tanto, e tanto, por que Wilmar vivia pra ela. E quando Wilmar morreu, houve uma comoção dos familiares, e Cremilda teve atenção e amparo de todos, mas menos de um ano depois todos voltaram á suas rotinas. E Cremilda, embora estivesse bem financeiramente, não tinha amor ou atenção. Por isso ela se mudava. Quando chegava á uma nova vizinhança, ela sempre era bem tratada, e contava histórias diferentes de vida em cada novo bairro. Ás vezes dizia que a bebida tinha matado o marido, não era mentira, fora um caminhão da Malte 90 que o atropelara, em outras dizia que ele havia morrido de amor por ela, não era mentira também, ele morreu indo ao mercado por que ela estava cansada.
Enfim, Cremilda sustentava Jamir até além do tido como básico, não lhe cobrava que estudasse, nem lhe dava obrigações. Cremilda cuidava de tudo. Á sua maneira, mas cuidava. Só lavava a louça após uma semana de comunhão de pratos e talheres sujos, limpava a casa em períodos bissextos, tomava banho á cada três dias.
Ela era repelente ás outras pessoas, e Jamir, criado naquele ambiente, com aquela companhia, cresceu igual.
Jamir odiava o próprio nome. Jamir... Rearranjando as letras surgia a palavra "mijar", e Jamir detestava isso. Ninguém jamais fez esse trocadilho com Jamir, e ele vivia sob a sombra de duas possibilidades:
Ou as pessoas não diziam isso na sua cara, preferindo rir dele pelas costas, ou ele não conhecia ninguém inteligente o suficiente pra fazer o trocadilho.
Qualquer uma das possibilidades o desagradavam profundamente.
Jamir também não era um gênio, aos 17 anos estava cursando a sexta série do ensino fundamental, foi na escola que conheceu Heloísa. Se Jamir não era brilhante, Heloísa era burra. Burra, burra, burra. Todos os professores diziam que ela era desatenta, relapsa, carecia de reforço em casa. Mas a verdade é que Heloísa era burra. Era burra como uma porta. Era, nas palavras do próprio pai, uma "tamanca".
Mas, á despeito da falta de dotes intelectuais, Heloísa era deveras dotada fisicamente. Era o tipo de menina que se desenvolve cedo. Tinha seios fartos, cintura fina, quadris generosos, pernas torneadas. Pintava o cabelo de loiro, se maquiava e usava roupas provocantes como as moças do Big Brother que via sempre que passava e achava lindas.
Povoava os sonhos masturbatórios de seus colegas de sala, todos fedelhos de onze ou doze anos de idade. Exceto por Jamir. Jamir era mais velho, e Heloísa, aos quinze anos, o achava atraente, algo perigoso.
Burrice dela, claro. Jamir era inofensivo. Ele era, de fato, relapso, desatento, mas não era perigoso, não era um marginal. Jamais infringira a lei, exceto fazendo downloads ilegais de músicas e filmes na internet. Se vestia como um rapper, apesar de ser branco, usava correntes grossas no pescoço, viseiras com a aba apontando para o ombro, óculos escuros, camisetas de times de basquete e calças com a barra da cintura na altura do púbis e, como os fedelhos da classe, também tinha Heloísa e suas roupas sumárias como musa do onanismo.
Acabou que Jamir não era tão inofensivo quanto se pensava, e, numa tarde, em sua casa, sob o pretexto de fazer um trabalho de História que Heloísa jamais faria sozinha, Jamir provou sua astúcia fazendo sexo com Heloísa, que não aproveitou muito, mas ficou feliz pois pelo que vira em Malhação a maior preocupação das garotas de sua idade era transar.
Cremilda, que estava em casa dormindo durante a consumação do ato, ficou chocada ao receber a notícia pelo pai de Heloísa dois meses depois, mais chocada ainda ao saber que Heloísa estava grávida. Como devota que era, levou Jamir e Heloísa até o pastor, e, após uma longa conversa, ficou combinado que casariam.
Porém, se há um Deus no céu, ele foi sábio, e impediu que a prole daquele casal caminhasse sobre a terra. Heloísa sofreu um aborto espontâneo, para alívio de seu pai, que tremia de horror ao imaginar uma família chefiada por Jamir e sua filha.
Cremilda, secretamente ficou satisfeita. Ela chamou Jamir para uma conversa séria, explicou-lhe com paciência o que diziam as escrituras á respeito de fornicação, e lhe disse que Deus o protegera naquele episódio, mas que poderia não protegê-lo depois.
O assunto morreu.
Jamir largou a escola sob o pretexto de cursar um supletivo, o que jamais se concretizou, e se tornou um completo vagabundo. Cremilda não ligava, ela achava que, se desse tempo á Jamir, ele poderia receber o chamado divino e se tornar um pastor. Era o sonho de Cremilda, por isso ela seguia alimentando seus desejos além do básico. Video games de última geração, internet rápida, TV á cabo, tênis de marcas estrangeiras com grandes molas sob os calcanhares... Tudo para que ele visse o quanto era afortunado.
Até, que, numa tarde fatídica, Cremilda acordou por volta de quatro da tarde, estava com fome, saiu andando com dificuldade por dentro de casa e, ao passar pelo quarto de Jamir ouviu um ruído estranho e compassado. Uma respiração ofegante. Pensou em bater na porta, mas ignorou a ideia. Abriu-a.
Lá estava Jamir, nu, exceto pela viseira, pelas meias e os tênis, engajado em atividades fornicatórias com Heloísa. Pior de tudo, uma modalidade que Cremilda abominava desde que lera á respeito na Bíblia.
Cremilda gritou, esperneou, jogou as roupas de Heloísa na moça e ordenou que se vestisse, fez o mesmo com Jamir.
Com sangue nos olhos disse que ele estava expulso de casa. Que se queria ser um vadio e um sodomita que o fosse sob outro teto que não o dela.
Jamir não discutiu. No fim daquele dia ele arrumou as malas e foi embora. Andou quatro quarteirões e foi amparado por seu Francisco, o pai de Heloísa.
Francisco construiu um sobrado onde permitiu que Heloísa e Jamir morassem. Ambos conseguiram emprego, condição imposta por Francisco para lhes dar onde morar, Jamir como boy, Heloísa como manicure.
Jamir e Heloísa viviam como marido e mulher. Francisco respeitava a privacidade do casal, e, pra ser franco, lhe tranquilizava ter a filha por perto, "sob suas vistas", como dizia.
Heloísa gostava daquela vida, não tinha muito do glamour com o qual ela sonhava, mas as regras eram simples, ela trabalhava, dava parte do dinheiro ao pai para ajudá-lo com as despesas e tinha o direito de passar o tempo livre com Jamir, o bad boy á quem ela tanto amava. Ou, pelo menos achava que era amor o que sentia. Gostava de passar tempo com ele, por mais que nem sempre estivesse confortável com o que faziam juntos.
Quanto á Cremilda, ela permaneceu devotada, doou ao templo todos os mimos que comprara em 36 vezes para o pecador que fora seu filho. Ela nunca ficou sabendo que nenhuma obra de caridade jamais chegou sequer perto de ver as coisas, todas foram parar nas mãos de parentes do pastor. Morresse naquele dia, seria com uma única mágoa, não ter criado melhor o filho.
E Jamir... Jamir sentia falta, se não da mãe, da vida fácil que ela representava. Sentia falta do video game, do computador, da TV á cabo... Principalmente quando Heloísa se instalava em frente á TV para acompanhar o Big Brother, pelo qual Jamir nutria velado desprezo, ele não gostava do emprego, e ficava cansado ao final do dia, mas, ao mesmo tempo, ele tinha Heloísa. E, mais do que isso, tinha o que Heloísa representava. E isso o deixava muito satisfeito. Satisfeito o suficiente para aceitar aquela vida.
Jamir era, como já foi dito, um sujeito de horizontes limitados.

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