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segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Época mágica


Pois é, segunda-feira, a primeira do ano.
O dia primeiro de Janeiro desse nosso 2010, ainda com cheirinho de novo, caiu, apropriadamente, em uma sexta, os dias 2 e 3, obviamente, acabaram em um sábado e um domingo, respectivamente. Então, pra fins práticos, o ano começou hoje, dia 4, primeiro dia útil do ano.
O primeiro dia útil do ano é um período ideal para essa época mágica em que as pessoas dão início aos seus projetos pro ano novo. As tais resoluções de fim de ano hoje farão muita gente agir diferente do que fez ao longo de 2009, pelo menos aqueles que já não tentaram na sexta, no sábado e no domingo e desistiram.
Resoluções de fim de ano incluem parar de fumar. Parar de beber. Voltar a estudar. Ir mais ao teatro. Fazer dieta. Se exercitar mais ao ar livre...
Todas essas coisas que, se não nos tornarão pessoas melhores, ao menos mais saudáveis, ou mais cultas, o problema é que geralmente essas resoluções não duram mais do que a ressaca da festa de fim de ano.
É como a história do Pereira.
Pereira era um cara legal. Baixinho, barrigudinho, inteligente, bom de papo. Tinha trinta e tantos, quase quarenta. Casado com Filomena havia quatorze anos, tinha um filho de onze, o Pereirinha, tinha um emprego estável em um órgão estatal desses que não funcionam direito mas pagam em dia, estava se não com a vida ganha, com a vida tranquila.
O Pereira era gente boa, querido pelos amigos, não deixava faltar nada à esposa nem ao júnior, ia ao mercado, levava o lixo na rua, raramente esquecia datas especiais, ensinava equações de segundo grau pro guri, mas, claro, Pereira era humano. E isso não é um elogio.
O Pereira fumava feito uma chaminé. Acendia um cigarro no outro. Acordava de madrugada pra ir ao banheiro, e, no caminho da cama até a privada, acendia um cigarro, dava duas ou três tragadas, e só depois voltava a dormir.
O Pereira também estava engordando bastante. Jogava futebol uma vez por semana, exercício insuficiente pra sua vida sedentária. Ia de carro pro serviço, trabalhava sentado oito horas diárias, almoçava e jantava em porções generosas, passava no mercado no caminho do trabalho pra casa... Isso tudo estava sendo prejudicial pra silhueta do Pereira, e, se ele não ligava pra isso, chegava numa idade em que começava á temer pela própria saúde. Nem lembrava a última vez em que fora ao médico, mas sabia, com certeza, que se fosse á um não ouviria notícias animadoras.
Mas, acima de todos esses, o traço mais desprezível da personalidade de Pereira, pelo menos na opinião do próprio, era o fato de ele trair Filomena.
A Filó. Sua santa esposa.
Pereira não era desses sujeitos endinheirados que têm amante fixa, tipo um "coroné" nordestino com teúda e manteúda, nem era frequentador de casas e tolerância iluminadas por abajures lilases, não. O modus operandi do Pereira era diferente...
No sábado, depois do futebolzinho com os amigos, esticava até algum boteco com o pessoal, lá, entre chopinhos e iscas de filé, ou tábuas de frios, ou sanduíches abertos, ás vezes apareciam mulheres, digamos, dadas. Conhecidas de amigas de alguém da mesa, e, eventualmente, alguma coisa acontecia.
A primeira vez fora quase sem querer, O Pereira estava conversando com a moça, sendo educado, talvez flertando um pouco, mas só pelo esporte, sem nenhuma segunda intenção prática, quando, sem aviso prévio, a mulher enfiou-lhe a língua garganta abaixo. Uma coisa levou a outra, e o Pereira acabou em um motel com a estranha amigável. Cheio de culpa depois de conhecê-la no sentido bíblico disse a ela que fora um erro, que se deixara levar pelo momento, mas que era casado, que amava a esposa que tinha um filho. A resposta da jovem o desconcertou.
Ela disse que também era casada, e que aquilo fora apenas por diversão, e que Pereira não se preocupasse. Racharam a conta do motel sob protestos do Pereira, e cada um seguiu seu caminho. Na semana seguinte se cumprimentaram com cortesia no bar como ex-colegas de trabalho ou de faculdade.
Pereira , a despeito do assombro inicial, gostou daquilo, e transformou a novidade em hábito. Não deixou, jamais, de amar Filomena, na verdade, racionalizava que era bom para o casamento e a família que eles tivessem um tempo para si próprios, fazendo um loucurinha aqui e ali.
Claro, ele convenientemente não quis incomodar Filó partilhando essa teoria, de modo que jamais descobriu se ela estava de acordo com a nova prática.
Entretanto, o final do ano chegou, e Pereira, tomado por aquele espírito dos feriados de Natal e Ano novo, fez algumas caridades mundanas e tomou suas resoluções de fim de ano.
Ele se decidira a, após o reveillon, parar com o cigarro, caminhar um hora todo dia de manhã bem cedo, e parar de trair a esposa, Filó.
Munido de chicletes, adesivos de nicotina e de tênis de corrida da Adidas, acordou com o lilili do despertador ás seis da manhã, e deu início a seu ano com uma longa caminhada na orla do Guaíba, seus pulmões arderam um pouco, seus pés e pernas idem, mas ele gostou. Ao contrário do que imaginara a orla estava bastante fresca naquela manhã de verão, e algumas pessoas caminhavam e corriam em número suficiente pra que Pereira não tivesse nem medo do deserto, nem o incômodo da multidão.
Passou por pessoas de todas as idades e gêneros que vez ou outra o cumprimentavam como se estivessem o aceitando em uma irmandade.
Feliz da vida chegou em casa, tomou café e banho e foi trabalhar.
Repetiu o ritual durante a semana inteira, sem desanimar com as dores musculares, fez até uma amizade, Letícia, pouco mais nova que Pereira, o viu mancando de dor no quarto dia, e passou a lhe dar dicas de alongamento, na segunda semana caminhavam juntos em ritmo acelerado, conversando.
Letícia era casada, tinha dois filhos, não trabalhava fora, e aproveitava as manhãs para caminhar tentando manter a forma, como Pereira estava tentando largar o cigarro, mas se tinha mais sucesso no exercício seguia perdendo a briga pro vício. O marido dela, Sérgio, era gerente regional da Microsoft, e viajava muito.
Os filhos tinham 6 e 8 anos e estavam com os avós em Atlântida, ela só iria pra lá no final do mês, quando Sérgio chegasse de São Paulo.
Pereira gostou dela, era uma pessoa centrada. Podia ser amiga de Filó. Convidaria ela e o marido para um jantar, ou almoço um dia desses.
Enquanto lutava contra os cigarros, com eventuais recaídas, especialmente após o almoço, quando tomava um cafezinho, Pereira já perdera peso, e, mais importante, parou de esticar no bar depois do futebol, onde o fôlego renovado melhorara seu desempenho.
Depois do esporte, voltava como um cordeirinho pra casa, via a Sessão Super-Estréia do Telecine com Filó e Júnior, e se recolhia cedo para jogar futebol no parque Marinha na manhã de domingo. Estava satisfeito com o novo modelo de vida que levava e ao qual se adaptou ao longo dos primeiros meses do ano.
Até que, numa manhã de segunda, não encontrou Letícia. Imaginou que o marido houvesse voltado de São Paulo, ou que ela tivesse ido à praia com os filhos e os sogros.
Na terça e na quarta ela não apareceu de novo, nem na quinta. Pereira pensou em ligar para saber o que houvera, mas não tinha o telefone dela nem sabia se seria de bom tom telefonar pra parceira eventual de caminhada.
Na sexta, porém, ela estava lá, alongando no ponto próximo à Usina do Gasômetro, onde se encontravam sempre. A cumprimentou com um sorriso, ela respondeu um pouco seca, ele puxou assunto, ela foi monossilábica, deixando-o desconfortável, até que, sem aviso, Letícia se pôs a chorar copiosamente. Pereira pousou a mão sobre o ombro macio dela, perguntando o que acontecera. Ela respondeu entre soluços que a vida dela era vazia, que não se sentia importante, que queria fazer coisas mais importantes do que apenas ser dona de casa, que o marido não a valorizava, estava sempre viajando, que devia ter um caso, que os filhos eram muito jovens para apreciar o trabalho que ela tinha com a casa e tudo mais, e ninguém a apoiava.
Pereira, um pouco desconcertado, a consolou, disse que ela era jovem, inteligente, bonita, que assim que os guris estivessem maiores ela podia fazer o que quisesse, que seu marido era um idiota se não a valorizava, logo ela, bonita, inteligente, ativa...
A abraçou, colocando a mão na cabeça dela, de encontro ao seu ombro. Ela parou de chorar, ergueu os olhos e o beijou. Quando Pereira deu por si, estava em um motel, atrasado pro trabalho.
Correu em casa, lavou-se, pulou o café, e foi trabalhar.
Na manhã seguinte, sem saber bem como agir, foi caminhar como sempre. Encontrou Letícia, ela lhe disse que entenderia se ele não quisesse mais vê-la, mas que gostara demais do que acontecera na manhã anterior.
Disse isso olhando Pereira nos olhos, com a mão pousada em sua coxa. Uma vez mais, ele mandou sua resolução de fim de ano lá pra casa do Capita e eles acabaram no motel.
Pereira continuou saindo todo dia de manhã usando calção, tênis e regata, mas, ao invés de caminhar, ia para o motel com Letícia. No carro dela.
Após uma semana de encontros tórridos, deitado na cama ao lado de Letícia ficou olhando enquanto ela catava da bolsa um maço de cigarros e acendia um, tragando longamente. Ela o espiou de esguelha e estendeu a mão perguntando:
-Quer um pega?
Ele chegou a se recostar para alcançar o filtro do cigarro com os lábios, mas parou um segundo, e endireitou-se na cama agradecendo com um não.
"Uma em três é melhor que nada", pensou.

Bueno, eu não vou fazer como o Pereira, tenho só duas resoluções de fim de ano, perder peso, qualquer peso, e voltar a jogar futebol. Sábado joguei, as dores musculares inacreditáveis estão aí pra provar. Agora só falta perder peso.

"...And a happy new year!"

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