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terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Natanael Kopesh




O Milton Kopesh sempre lembrava de seu tio Natanael quando se encontrava nas encruzilhadas da vida.
Natanael Kopesh era um cavalheiro. Ele se outorgava esse título com certa pompa. Natanael tinha o cavalheirismo como profissão. Ele era o cavalheiro de um cavalheiro. Natanael não era mordomo, não era assessor, não era secretário. Era o cavalheiro de um cavalheiro, e isso era ser uma combinação de todos os títulos mencionados, além de ser cúmplice e conselheiro de um cavalheiro.
O cavalheiro em questão era o Doutor Gillmar Bernardes de Oliveira e Sant'Anna, médico cardiologista, ex-vereador, membro emérito do Lion's Club, ex-dirigente do Grêmio Porto Alegrense. Era um homem de posses o doutor Sant'anna, nascera abastado em família tradicional, ele e seus quatro irmãos eram criados desde a tenra infância para serem homens públicos.
Eram médicos, engenheiros, advogados, administradores, todos desempenharam, em algum momento da vida, cargos públicos, eletivos ou por indicação. Eram amigos de governadores e de deputados federais. Eram homens de família, todos tinham muitos filhos e muitas filhas, exceto pelo doutor Sant'Anna.
Doutor Sant'Anna era um solteirão.
Ele prezava demais a profissão e todas as obrigações que se impunha. "Não tinha tempo para valorizar uma família como achava que era o correto", era o que todos diziam.
Natanael Kopesh, porém, conhecia a verdade.
O doutor Sant'Anna era, de fato, um homossexual enrustido. Sim, aquele grande homem público, convidado á festas no Palácio Piratini, debatedor costumeiro de programas de rádio, amigo íntimo dos Sirotsky, cidadão modelo, acima de qualquer suspeita, era uma rematada bichona, de dar gritinhos agudos de susto vendo filmes de terror, que tanto adorava... De suspirar olhando fotos de namorados, de chorar aos soluços, de bruços na cama, cara enterrada no travesseiro sacudindo as pernas quando um amante o abandonava.
Natanael Kopesh sabia.
Mas ninguém jamais ficou sabendo de qualquer coisa por ele, que era um cofre de segredos tratados com extrema discrição e zelo.
Era depositário dos segredos do doutor. Era, afinal de contas, seu cavalheiro, e um cavalheiro não sai por aí fazendo indiscrições sobre a vida privada de outrem, especialmente se estas pudessem lhe causar desconforto público, de modo que ninguém, exceto os eventuais amantes do doutor, jamais ficaram sabendo.
Nem a mãe de Natanael, dona Mirtes Kopesh, nem seu pai, Amaury Kopesh, nem seus irmãos, ninguém jamais ouviu palavra que fosse sobre as preferências de alcova do doutor Sant'Anna.
Kopesh acompanhava o doutor em suas viagens de férias e a trabalho, era nesses momentos que o doutor Sant'Anna encontrava outros homens, de preferência de posição e estofo semelhantes, com quem dividiria seu leito por algumas noites.
Apenas em uma ocasião o doutor Sant'Anna levou um homem pra casa em Porto Alegre, era um enfermeiro jovem, o doutor Sant'Anna se apaixonou pelo rapaz, chegou a cogitar a hipótese de assumir sua homossexualidade publicamente.
Foi dissuadido por Kopesh, que sabia que seria uma tragédia para sua família e um escândalo público sem precedentes. Um dos irmãos do doutor ocupava uma cadeira no secretariado estadual, o momento era delicado, não era hora.
O caso seguiu em segredo até que o jovem disse ao doutor Sant'Anna que não queria viver uma mentira, que precisava encontrar alguém que o assumisse e esses "papos de viado" como lembraria Natanael, mais tarde, e abandonou o doutor.
Foram meses difíceis após o rompimento. Natanael Kopesh ajudou o doutor a segurar as pontas, e, com o tempo, superar. Não por que fosse sua obrigação profissional, mas porque Kopesh era um bom homem.
Era uma pessoa humilde. Embora tivesse uma excelente educação, era uma pessoa de origem pobre, que sabia viver com pouco, era muito econômico, cuidava bem de suas roupas, gastava com tanta parcimônia que beirava o pão-durismo, adorava fazer compras em lojas de R$1,99, onde dizia, se podia encontrar de tudo, e, acima de tudo, se importava verdadeiramente com o doutor, embora tivessem lá suas discordâncias.
Kopesh jamais entendeu, por exemplo, como o doutor podia preferir dividir sua cama com outros homens quando haviam tantas e tão belas mulheres disponíveis para um homem com sua fama e suas posses. Kopesh não era religioso nem supersticioso, e o doutor era, e muito, era um devotado espírita, que realizava sessões em sua casa e acreditava piamente que o lugar era infestado de almas penadas. Espiritismo era outra bobagem completa para Kopesh... Kopesh era colorado, o doutor gremista... Mas essas divergências jamais causaram nenhum atrito entre eles, que além de patrão e empregado, eram amigos.
Anos se passaram, o doutor seguiu sua vida, até adoecer e morrer aos 82 anos. Foi uma morte tranquila, morreu dormindo em sua cama, no quarto que ocupara nos últimos 40 anos no casarão da Lopo Gonçalves.
Na leitura do testamento, estavam presentes apenas Kopesh, o fiel escudeiro do doutor Sant'Anna e Tobias, sobrinho-neto, bon vivant, aos vinte e sete anos fora o primeiro Sant'Anna a não concluir os estudos na universidade, e jamais trabalhara na vida, por um acaso familiar, Tobias fora batizado pelo doutor Sant'Anna, que lhe enviava presentes e cartões nos aniversários e em datas especiais, mas com quem jamais teve nenhum contato mais próximo.
O testamenteiro lia o documento diante do olhar desinteressado de Tobias e do olhar perdido de Kopesh, ouvidos e olhos atentos a tudo o que ocorria. Em seu coração Natanael tinha esperanças de herdar a casa onde morara desde os 23 anos de idade, mas sabia que, provavelmente, o destino da residência, assim como dos demais bens do doutor, era algum membro da família Sant'Anna.
Foi, então, uma surpresa, tanto para Tobias quanto para Kopesh, quando o testamenteiro disse que a casa seria de seu afilhado, Tobias, mas apenas se ele passasse uma noite inteira sozinho na residência, exatamente no dia seguinte à leitura do testamento.
Kopesh havia ganho uma boa soma em dinheiro, não uma fortuna, mas uma quantia interessante, talvez suficiente para comprar um bom carro, ou fazer uma bela viagem, mas Kopesh trocaria, sem pestanejar, o dinheiro pela casa à qual se afeiçoara, e agora, ali estava, a apenas dois passos de distância, Tobias, que não falava com o tio-avô desde os treze anos de idade, e agora surgia como um abutre para pilhar os bens do defunto.
Eis que Kopesh teve um estalo!
Tobias precisava dormir uma noite na casa para ter direito a herdá-la. Para ter direito à posse da residência, Kopesh apenas precisava impedir Tobias de cumprir a cláusula imposta pelo doutor Sant'Anna.
Quando saiam do escritório do advogado testamenteiro, Tobias sorriu de maneira zombeteira para Kopesh, desejando-lhe bom dia enquanto girava a chave da casa no dedo.
Kopesh sorriu de volta. Sabia o que faria. Aproveitaria a superstição do doutor, sua crença em espíritos e bobagens do tipo, e usaria isso para afugentar Tobias e ficar com a casa.
Passou em uma loja de R$1,99 e comprou um daqueles despertadores que fazem "li,li,li,lí", e então numa ferragem onde comprou um metro de corrente. Municiou-se também de um lençol branco e, à noite, adentrou o pátio da casa do falecido doutor, sentou-se sob a janela do quarto onde seu patrão morrera, ajustou o despertador para as três da manhã, hora em que daria início á sua sinfonia macabra, cobriu-se com o lençol, segurou a corrente firmemente com a mão esquerda, e resolveu tirar um cochilo.
Acordou ao ouvir um grito, por sob o lençol, ainda com sono, reconheceu Tobias, de imediato sacolejou a corrente e gemeu imitando a voz grave do doutor, fez isso por alguns segundos, até perceber o céu azul atrás de Tobias, que o olhava com uma expressão confusa. Largou a corrente e olhou o despertador, ele marcava oito e quinze.
Tobia perguntou o que estava acontecendo.
Kopesh levantou, recolheu a corrente e o despertador, enrolou o lençol no braço, e disse, furioso:
-Lilili de merda!
O Plano de Natanael talvez tivesse funcionado... Tobias era um cagalhão, morria de medo de fantasmas, espíritos e coisas do além. Infelizmente, conforme lembraria nos anos vindouros, Natanael fora vítima de seu próprio pão-durismo. Não tivesse se municiado de um despertador "lililí" de 1,99, talvez tivesse conseguido se tornar dono da casa à qual tanto amara.

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