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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010
Mágoa recíproca
Haroldo andava pela rua de madrugada, era uma quinta-feira, ele tinha bebido além da conta, tinha que acordar cedo pra procurar por trabalho no dia seguinte e sabia que seria difícil conforme constatava que as ondulações que a rua estava fazendo não podiam ser mais, senão fruto de sua bebedeira.
Conforme avançava no que acreditava ser a direção de sua casa ouvindo os próprios tênis golpeando as calçadas irregulares da Cidade Baixa, Haroldo lembrava de Taline.
Taline era, em parte, a culpada pela bebedeira de Haroldo, não pela dessa noite, particularmente, mas pelas primeiras do que ele considerava a "retomada" de sua vida etílica.
Aqui, cabe explicar. A mãe de Haroldo não era uma grande pessoa, nem seu pai o era. O pai de Haroldo, Herson, era um alcoólatra, quem o conhecesse não diria. Homem sério, uma calvície que sugeria seriedade, bigodes bem aparados, paletó e gravata. Em trinta anos de emprego jamais faltou. Tinha um cargo de chefia em uma empresa de eletrônicos e era um homem austero e dedicado. Isso era sua vida profissional. Na pessoal era um pai ausente e truculento, bebia muito, batia nos filhos e até na esposa bateu. Achava-se nesse direito, uma vez que provia uma vida confortável e não deixava que nada de material faltasse á sua família.
A mãe de Haroldo, Tânia, era uma mulher de pouca instrução, caira de amores por Herson logo que o conhecera, ele, tão educado, tão sério, dando trela para ela, uma moça simples... Apaixonou-se, não titubeou em dizer sim quando ele a pediu em casamento. Casou-se, teve quatro filhos do homem que amava, era mãe e esposa. Tornou-se uma feliz e dedicada dona de casa, isso porém não durou, os anos foram roubando a felicidade de Tânia. Herson bebia muito, quando permanecia em casa estava sempre casmurro e bebendo, e, quando bebia, tornava-se violento.
Tânia, em uma tentativa desesperada e pouco inteligente de impedir que Hérson bebesse em demasia, encorajava os filhos á bebericarem do copo do pai.
Com isso além de ser a esposa de um alcoólatra, tornou-se a mãe de outros quatro.
Haroldo era o segundo filho, como um dos mais velhos, sentia-se na obrigação de proteger a mãe, apanhara muito na infância, e sempre que via o copo do pai desprotegido, bebia. Tomou gosto pelo álcool, cresceu bebendo, e bebendo muito.
Saiu cedo de casa, não aguentava a vida que levava com a família.
Haroldo era magoado com o pai, magoado com a mãe, magoado com os irmãos e acima de tudo, magoado com a vida á qual fora relegado.
Não concluiu o segundo grau, tampouco ingressou na faculdade, entendia um pouco de motores, arranjou emprego em uma mecânica pouco recomendável em uma zona pouco recomendável do Centro da cidade, sem grandes perspectivas.
Até conhecer Taline. Taline, com seus cabelos castanhos lisos, com seus olhos verdes e marotos no rosto de menina. Taline com seu corpo bem torneado...
Haroldo á conheceu em um bar, como não poderia deixar de ser. Estava bebendo com os amigos logo depois do trabalho, e a viu. Ela estava com um grupo numeroso e barulhento de jovens. Todos idiotas na opinião de Haroldo, embora não conhecesse nenhum deles.
Ela conversava com alegria, ria jogando a cabeça pra trás, quando levava os lábios finos e bem desenhados ao canudo de onde bebia um drinque colorido, as maçãs de seu rosto se tornavam salientes e ela olhava para os lados como se estivesse desconfiada.
Haroldo foi falar com ela. Não era muito disso, tinha suas noites casuais de sexo, geralmente com mulheres feias e judiadas, era apenas pela necessidade fisiológica. Haroldo não as amava, nem sequer gostava delas. Se um poste na rua tivesse o calor e a umidade que Haroldo encontrava nelas, provavelmente ele iria preferir o sexo com o poste pela praticidade, o poste não falaria de sua vida, não faria perguntas, não iria pedir pra usar o banheiro...
Mas aquela moça, aquela moça era bonita, era radiante e cheia de vida. Ela era alguém que Haroldo quereria por perto.
Quando ele a cumprimentou, ela sorriu sem graça, e respondeu olhando para as amigas que estavam á seu lado na mesa segurando o riso. Haroldo não gostou daquilo. Na verdade, sua vontade era de dar um tapa nela. Mas conteve-se. Ela olhou pra ele novamente, e ele perguntou o nome dela.
Ela sorriu e disse:
-É Taline.
Ele repetiu: Taline. Então falou novamente, separando bem as sílabas. Riu e foi embora sem dizer nada.
Taline levou poucos segundos para se levantar e seguí-lo até onde ele estava, no balcão. Perguntou brava o que havia de engraçado no seu nome.
Haroldo respondeu honestamente que nada. Explicou que usara aquele estratagema para tirá-la da mesa e falar com ela á sós. Ofereceu-lhe um drique colorido como o que ela tomava na mesa com os amigos. Ela sorriu sem jeito, e aceitou sentando-se ao lado dele.
Conversaram por horas. Ela falava muito, ele, quase nada. Ela tinha dezenove anos, cursava faculdade, Geologia, gostava dos trabalhos de campo, gostava de viagens, de pequenas aventuras, gostava de estar ao ar-livre e de contato com a natureza. Morava com a mãe, que era viúva, o pai havia morrido quando ela tinha doze anos. Câncer, no estômago, tinha um irmão mais velho que morava na Bahia, trabalhava na Petrobrás, o grupo no bar era de colegas da faculdade, não tinha muitos amigos, especialmente naquele grupo. Gostava de esportes, menos futebol, sua cor preferida era verde, não assistia muita TV, não fumava, adorava dançar e ouvir música, mas tinha consciência que só ouvia porcaria, lia pouco, mas por falta de tempo, por causa da faculdade.
Haroldo ouviu tudo com atenção. Ela era linda. Os braços, os ombros, os seios, as pernas e os quadris. Os pés, as mãos o pescoço, tudo no corpo dela estava exatamente onde devia estar e tinha exatamente o tamanho que devia ter, pelo menos para o gosto de Haroldo.
Taline foi pra casa de Haroldo, mesmo estando levemente embriagada sabia o que queria, era dona de si. E entregou-se á Haroldo. O desempenho dele não foi particularmente memorável, nada de extraordinário aí, ele não era particularmente memorável, Taline, por outro lado, mereceria uma estátua pelo seu desempenho, mereceria canções. Haroldo se apaixonou, primeiro pelo sexo, é verdade. O sexo fora glorioso. Era algo que ele queria fazer de novo. Porém, ele achava que tinha poucas chances, não tinha nenhum grande atrativo. Não era particularmente bonito, muito menos inteligente. Não tinha dinheiro, morava mal, tinha um trabalho medíocre, uma educação medíocre, era um sujeito medíocre em uma vida medíocre.
Mas, talvez pela aura de cachorro abandonado que envolvia Haroldo, ele ganhou o coração de Taline. Ele acordou na manhã seguinte e encontrou um recado escrito com batom no espelho do banheiro, era o telefone de Taline com a recomendação "Me liga!" e vários asteriscos que, mais tarde, Haroldo descobriria representarem beijos.
Haroldo trabalhou melhor na manhã daquele dia. Na hora do almoço pensou em ligar para Taline, mas desistiu. Não queria parecer desesperado, e, pra ser franco, não sabia se o recado deixado em seu banheiro era sincero ou apenas uma delicada formalidade.
Á tarde trabalhou mal, não parava de pensar em Taline, mas não queria ligar. Depois do trabalho voltou ao bar da noite anterior para tentar encontrá-la por acaso, mas não logrou sucesso.
No dia seguinte, após uma manhã de trabalho pouco produtiva, tomou coragem e ligou.
Taline atendeu o telefone com voz musical, ele se identificou quase murmurando, ela repetiu seu nome bem alto, ele a convidou pra sair, ela aceitou na hora, sugeriu cinema e jantar, ele assentiu, embora pensasse em bebida e cama.
Foi um bom encontro, Haroldo nem lembrava como era fazer um programa que não envolvesse botecos e bêbados. Repetiram dois dias depois, e novamente depois de mais um dia. Logo, Haroldo e Taline namoravam.
Ele passou á se cuidar mais, estava se apaixonando por ela e queria estar á sua altura.
Ele conversava com pessoas, trabalhava melhor, bebia muito menos, vivia mais.
Não queria mais ser um auxiliar de oficina mecânica pelo resto da vida, procurou um supletivo, concluiu o segundo grau, fez pré-vestibular e passou numa boa faculdade privada. Engenharia mecânica.
Foram quatorze meses de felicidade com Taline, ela o pegou pelas mãos e o ergueu do fundo do poço onde estava, guiando-o até uma vida de verdade.
Ela o convidou para dividir um apartamento. Haroldo aceitou de imediato. Se divertiu procurando um apartamento com Taline, ambos se divertiram reformando o lugar, se divertiam assistindo filmes, ouvindo músicas e comendo juntos. Ele gostava de dormir com ela aninhada em seu peito, gostava do jeito como ela cantava enquanto fazia as unhas dos pés, gostava da palavra "delicadeza" tatuada em seu pé, gostava do modo como ela fechava os olhos e mordia o lábio inferior quando faziam amor (áquela altura o sexo com Taline já adquirira um novo significado para Haroldo.).
Mas os meses se passaram, e Haroldo começou á ficar entediado. Taline se ausentava com frequência por conta do final de seu curso universitário, e sozinho, Haroldo bebia enquanto estudava. No começo com moderação. Mas os velhos hábitos custam á morrer, e as doses de álcool aumentavam de acordo com a melancolia de Haroldo. E o álcool aumentava a melancolia de Haroldo num círculo vicioso que só podia levar à tragédia.
Num final de semana Taline viajou, nos três dias em que esteve sozinho, Haroldo não fez outra coisa exceto beber. A bebedeira levou à lamúria. A Lamúria levou à fúria.
Quando Taline voltou, na segunda pela manhã, encontrou a casa destruída por Haroldo em seu acesso hébrio de fúria injustificada.
Taline era gentil, era centrada, e perdoou o deslize de Haroldo, disse á ele que ainda o amava, mas que aquilo não podia acontecer de novo, ele precisava agir como uma pessoa normal, reparar seu erro.
Eles seguiram adiante. Haroldo trabalhou em turno dobrado para repôr o que havia destruído durante seu "chilique de bêbado" como Taline classificou o episódio.
Taline se formou, arranjou um emprego, Haroldo seguia trabalhando e estudando com relativo sucesso, mas surgiu um novo problema. Um problema que ele já havia visto. Ele se entediou com a vida calma que estava levando. Ficava casmurro, e bebia, ás vezes tinha crises de choro, se trancava no quarto, chorava feito uma mulher grávida, ou então fechava a cara e não respondia quando falavam com ele.
Faltava ao trabalho, á faculdade, discutia com Taline por bobagens e transformava tudo em confronto.
O cenário se estendeu além da conta. Haroldo perdeu o emprego, sua matrícula da faculdade foi trancada automaticamente quando o semestre virou e ele não procurou a renovação. A gota d'água veio quando ele saiu do quarto uma manhã e encontrou um bilhete de Taline. Ela estava se mudando pra Bahia. Iria trabalhar com o irmão, desejava sorte á ele, e se despedia com asteriscos.
Haroldo afundou feito pedra. Teve que sair por apartamento depois que venceram os meses de aluguel que Taline deixara pagos. Morou em quartos alugados, dormiu na rua. Trabalhava por curtos períodos e apenas o extritamente necessário para pagar o próximo porre. Ali, parado na rua, enquanto procurava ébrio pelo próprio equilíbrio perdido, olhava para o céu e reforçava suas posições. Ainda guardava mágoa do pai, da mãe, dos irmãos, guardava mágoa de Taline, e, acima de tudo, ainda guardava mágoa da vida. E, se a vida pudesse se manifestar verbalmente, provavelmente Haroldo saberia que a recíproca era verdadeira.
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