Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
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quinta-feira, 7 de outubro de 2010
Ducentésima Postagem
Jucelino não estava bem. No sentido mais amplo imaginável. Jucelino estava mal de emprego, de dinheiro, de amor... Estava mal fisicamente, também, não que estivesse doente, nem nada, mas não tinha vigor nem pra subir dois lances de escada sem ficar ofegante. Alguns diriam que Jucelino passava por uma maré de azar, se era verdade, era a maré mais longa da história. Era tão longa e tão constante, que Jucelino tinha, guardado a sete chaves na memória, o último momento feliz de que se lembrava:
Foi aos sete anos, quando ganhou de aniversário um skate dado por seu pai.
Ele estava na praia, em Rainha do Mar, e seu pai estava trabalhando em Porto Alegre, nos finais de semana ele ia à praia para ficar com a família, naquele final de semana, seria o aniversário de Jucelino, e seu pai atendeu suas súplicas e lhe deu um skate.
Era um skate bonito, grande, de uma rabeta, verde e preto com rodas cor de laranja, Jucelino ficou maravilhado quando viu. Imediatamente levou o novo brinquedo pra calçada de lajotas cor-de-laranja em frente à casa de veraneio da família e se pôs sobre o skate, tomou impulso com o pé direito enquanto se equilibrava com o esquerdo em cima da prancha como se fosse um Marty McFly.
Um passo, dois, três, e, quando colocou de novo o pé direito sobre o skate, e sentiu a brisa marinha lhe beijar a face, caiu.
Caiu, não. Se estabacou. Se fosse feito de louça, teria se espatifado em milhares de pedaços. Ralou cotovelo e joelhos, bateu com o rosto no chão e abriu o supercílio como se tivesse lutado boxe sem luvas com Mickey Um Soco.
Chegou em casa lavado de sangue, chorando como um recém nascido, só que com mais fôlego. Foi ao hospital, precisou de pontos, e bandagens. Em poucas semanas estaria pronto pra outra, disse o médico, desencadeando outro acesso de choro em Jucelino.
Ele não estaria, jamais, pronto pra outra.
Advertiu sua mãe e seu pai que não queria estar pronto pra outra, que não queria, nunca mais, se machucar daquele jeito.
Seus pais assentiram, disseram que estava tudo bem, que ele não precisava se preocupar, pois não precisaria passar por outra daquelas. Acharam que era por causa do susto.
Ao chegar de novo em casa, Jucelino se refugiou no quarto, de onde não saiu pelos próximos dias. Nem sequer quando seu pai lhe presenteou com um capatece, cotoveleiras e joelheiras para garantir sua segurança na próxima vez em que fosse andar de skate.
Mas Jucelino decidira, jamais andaria de skate de novo. E manteve sua decisão. Nunca mais subiu em um skate. Como resultado, jamais caiu de um skate de novo. Aquela perspectiva lhe agradou. Se alguma coisa tinha potencial para ferí-lo, Jucelino se abstinha dela.
Futebol? Não, posso quebrar a perna.
Vôlei? Não, posso levar uma bolada no rosto.
Andar de bicicleta? Não, posso cair e me machucar.
Funcionou tão bem para Jucelino que ele passou a evitar, também, atividades que pudessem magoá-lo. Amigos podiam desapontá-lo, melhor não tê-los. Tentar conseguir um emprego melhor? Não, podiam rejeitá-lo, e ele ficaria arrasado.
Aquele foi o último momento feliz da vida de Jucelino. Dali em diante, apenas momentos pasteurizados de alguma satisfação. Felicidade, mesmo, pura, como aquela do skate, nunca mais.
Agora, ali estava ele, trinta anos depois, sem esposa, sem filhos, abstendo-se de tentar por conta do medo de fracassar.
E, de certo modo, satisfeito. Tudo bem, uma satisfação morna, algo sem graça, aquela confusão que muitas pessoas fazem de marasmo com segurança.
A satisfação de Jucelino, porém, ganhou data para acabar. Foi quando seu chefe avisou aos funcionários que estava contratando uma firma de consultoria para informatizar a empresa, dar uma mexida geral e fazer as coisas acontecerem. Tudo o que Jucelino não queria. Enfim, resignou-se, para o que não havia remédio...
A consultoria e a informatização chegaram paulatinamente na forma de Carmem, uma mulher pouco mais jovem que Jucelino, e que agia como se fosse uma exterminadora do futuro movida pela bateria do coelinho da Duracel, não parava jamais, não parecia sentir sede, fome ou cansaço.
Jucelino a detestaria se ela não fosse linda, inteligente e cheirasse divinamente bem, como ela detinha todos esses predicados, Jucelino a tratava com distante cordialidade, em mais de uma ocasião, flagrou-se beirando o flerte com Carmem, para seu próprio espanto.
Indagava-se o que estava fazendo. Como podia abandonar daquele modo, a filosofia que por tanto tempo o mantivera seguro? Precisava resguardar-se, manter-se longe de tudo o que pudesse lhe fazer mal, era bom nisso, praticara essa arte ao longo de trinta anos, afinal de contas.
Todavia, um gesto estava destinado a mudar tudo. Jucelino estava sentado em sua mesa, resfolegando de ódio enquanto lutava com o cabeamento da internet em seu computador, quando Carmem passou, perguntando o que estava errado. Jucelino respondeu que nada, apenas uma dificuldade técnica.
Carmem, então, se debruçou sobre a escrivaninha de Jucelino desenhando um arco por sobre o ombro dele com o torso, enquanto delicadamente ajeitava o plugue de alimentação do cabo. Levou poucos segundos para que ela reolvesse o problema.
Era um dia quente. Jucelino suava feito um suíno aguardando pelo abate, Carmem, porém, não. Estava fresca como se recém houvesse deixado o chuveiro, exalava um cheiro suave e agradável que depunham em nome de um banho recente, também. Enquanto ela estava ali, tão perto de Jucelino, ele foi levado de novo até aquele aniversário de oito anos. Uma vez mais, sentiu aquela sensação de felicidade que não experimentava havia tantos anos.
Carmem se endireitou, enquanto advertia que ele precisava aprender aquilo rápido, já que ela estava de saída no final da semana e não poderia salvá-lo sempre. Mostrou mais três vezes, detalhadamente, como se ajustava o plugue do cabo de ethernet do computador, então saiu.
Era uma terça-feira. Jucelino passou a quarta e a quinta lutando com todas as forças para resistir à tentação e não chamar Carmem para sair. Precisava suportar, se ela o rejeitasse, e ela o rejeitaria, afinal, era linda, inteligente e cheirava divinamente bem, ele provavelmente se transformaria em um molusco de concha e viveria o resto de seus dias se martirizando por ter se exposto ao risco de sofrer um novo tombo. Foi na madrugada de quinta para sexta, porém, que tomou sua decisão. Na manhã seguinte, tomou um banho caprichado, como não tomava fazia tempo. Se perfumou, penteou os cabelos, escolheu uma roupa ao invés de simplesmente vestir a primeira coisa que viu no armário, e saiu.
Passou o dia todo evitando suar, fez seu trabalho mecanicamente, perdido em pensamentos, e, meia hora antes do fim do expediente, quando os funcionários se ornganizavam para fazer a despedida de Carmem, Jucelino se aproximou dela, a parabenizou pelo ótimo trabalho, e fez uma pergunta que não imaginava, jamais, ouvir sair de sua boca:
-Tu quer sair depois do trabalho? Beber algum coisa, ou jantar?
Carmem sorriu sem graça, e mostrou a mão esquerda. Era casada. Desculpou-se, disse que lamentava, mas Jucelino deu de ombros. Disse que ela não precisava se desculpar, que ela não tinha culpa de nada. Desejou-lhe boa sorte, e aproveitou a festa para ir mais cedo para casa. Bateu o ponto e saiu.
Andou duas quadras e entrou em uma loja de departamentos, dez minutos depois saiu. Em frente à loja, vestiu um capacete e largou um skate no chão. Era bem menor do que se lembrava, tinha duas rabetas. Pousou o pé esquerdo sobre a prancha e respirou fundo enquanto tomava impulso com o pé direito.
Sentia-se bem. Feliz como não se sentia em muitos anos.
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''Passou o dia todo evitando suar '' hahahahahahahahahahahahahahaha, muito bom .
ResponderExcluir200 posts? Parabéns !! Aproveito pra dizer (novamente) o quanto gosto de tudo o que você escreve ( lembrando que as Traduções me assustam um pouco rs ) e que venha a quadricentésima postagem pra me fazer rir aqui do outro lado do mundo, sempre no horário do meu expediente :)
Ehehehe, orbigado, Laís, é sempre bom saber que as crônicas são apreciadas, e espero que tu saiba que a recíproca é verdadeira.
ResponderExcluirParabéns pela ducentésima postagem.
ResponderExcluiré divertido ler, pelas manhãs e pensar ao longo dia, seja por que gostei (a maioria delas) ou por que de alguma forma me afetou.
Abraços, Bastet.
keeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee masssssssssssa....numca avia visto u dexeeeeeeeeeeeeeeeeeeee......................................................
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