Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
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quinta-feira, 21 de outubro de 2010
Tarrafa
Ataliba engatilhou a arma, um revólver Taurus calibre .38 que fora de seu pai, antes de pertencer a ele. O revólver pesava em sua mão. "Sempre fora pesado assim?" questionou-se Ataliba enquanto balançava a arma. Não lembrava. Suava muito, e nem sequer estava tão quente naquele dia de outono. Secou a testa com a mão e limpou a mão suada na parte de trás das calças jeans. Respirou fundo. Abriu o tambor da arma para averiguar a munição, devia ser a nonagésima vez que fazia aquilo nas últimas horas, mas não conseguia evitar. Conferiu. Tudo certo. Seis balas no tambor. Balas novas, compradas recentemente, não eram as da caixa de papelão amarelo e preto toda embolorada que estavam com a arma quando seu pai morreu prematuramente. Essas eram novas, compradas em uma obscura loja de caça e pesca na avenida Júlio de Castilhos, de um sujeito magro e de rosto encovado que olhou Ataliba por cima dos óculos quando este perguntou se ele tinha munição calibre .38.
-Não conheço ninguém que caça com revólver.- Disse o sujeito por trás do balcão com a voz encharcada de ironia.
Ataliba chegou a virar as costas pra ir embora, nervoso que estava, mas o sujeito o impediu, disse que tinha, sim, a munição, mas que ia ser cara. Ataliba disse que não tinha problema, e comprou uma caixa com 50 munições. Achou um exagero, mas não quis regular. Pagou os cento e quarenta reais sabendo que era mais que o dobro do preço de mercado, enfim, munição de ponta oca, sem perguntas, nem registros, valia a pena, pensou.
Agora ali estava Ataliba, silenciosamente do lado de fora do próprio quarto, segurando um revólver, agachado e silencioso, sentindo as pernas adormecerem por conta do desconforto da posição em que se encontrava, ouvindo apenas o som da própria respiração e os risinhos maliciosos que vinham de seu quarto. E eram os risinhos que o faziam suar de ira. Não eram as respirações ofegantes, tampouco o rangido compassado das molas de sua cama, em última instância nem o fato de, lá dentro de seu quarto, sobre a sua cama, com a sua esposa, não ser ele. Eram, mesmo, os risinhos. Parecia que estavam rindo dele, caçoando dele, em seu inconsciente, Ataliba ouvia aquelas pequenas risadinhas como gargalhadas, e aquilo o enfurecia. Aquilo o enfurecia tanto que Ataliba se viu prestes a explodir de ódio. Mas Ataliba não era pessoa de explodir. Não era de seu feitio externar suas emoções. Ataliba não era de chorar, de ter aqueles pequenos e corriqueiros acessos de fúria que eventualmente as pessoas têm, de bater portas e gritar ou chorar. Ataliba era comedido, contido, sorumbático. Ataliba guardava pra si as coisas que o desagradavam, afligiam e incomodavam, e as digeria silenciosamente. Via de regra se afastava. Não achava que tivesse o direito de tentar mudar as pessoas pois não queria que ninguém o mudasse. Se não estivessem satisfeitos com a forma como se comportava bastava que não o procurassem mais. Ataliba era assim. Não exigia que ninguém mudasse pois não queria mudar, dera-se relativamente bem na vida assim. Transformara a pequena loja de seu pai em uma empresa de porte médio com dezenas de funcionários e que fazia negócios com fornecedores de todo o estado.
Se sentia bem sozinho, fazendo as coisas a seu modo sem se preocupar com o que pensavam os outros. Achava que era uma boa vida, até que, aos trinta e dois anos, conheceu Rosana. Rosana que era bonita, que era innteligente e viva. Rosana que acabou despertando em Ataliba uma fagulha que ele próprio desconhecia. Uma porção quase secreta de seu ser, capaz de pequenas extravagâncias como decidir viajar para o litoral em uma terça-feira chuvosa, ou pegar o telefone no meio da madrugada e fazer uma sonolenta declaração de amor incondicional.
O efeito de Rosana em Ataliba foi tamanho que ele, outrora um solitário convicto, viu-se disposto a casar, ter filhos, formar uma família, comprar uma casa no subúrbio, um utilitário familiar, uma casa no litoral onde pudesse ensinar seus filhos a pescar de tarrafa como seu pai fizera com ele, quando pequeno.
Ataliba pediu a mão de Rosana em casamento em uma sexta feira ao entardecer. Ela disse sim, e ficou ainda mais linda com a luz do pôr do sol do Guaíba iluminando-lhe o rosto. Ataliba teve ali, a certeza de que aquele era o momento mais feliz de sua vida, e que só poderia igualar aquela felicidade. Jamais superá-la.
Foi com dificuldade e um pouco de desapontamento que Ataliba percebeu que estava certo com relação a felicidade do instante em que Rosana disse-lhe sim. Aquela felicidade não foi superada. Pra ser bastante honesto, Ataliba não voltou a experimentar nenhum tipo de felicidade após aquilo.
Como todas as decisões tomadas de forma apressada seu casamento com Rosana naufragou, em parte por responsabilidade dela, que praticamente se tornou outra pessoa após agregar o sobrenome de Ataliba ao seu, em parte por causa de Ataliba, que ingenuamente achou que um namoro com encontros regulares e um casamento de vida comum diária eram a mesma coisa e podiam ser administrados da mesma forma. Não eram. Não podiam.
Infelizmente, até se dar conta disso, Ataliba já estava em um casamento onde nenhum dos dois era feliz e onde a birra e os bens do casal impediam uma separação de comum acordo. E, se Ataliba estava infeliz antes, só piorou ao descobrir que Rosana tinha um amante. Um sujeito mais ou menos da mesma idade que Ataliba, que não era nem sequer bonito. Um tipo bem comum desses que encontramos em qualquer boteco com camisa listrada de mangas curtas bebendo cerveja naqueles copos pequenos divididos em gomos. O sujeito sequer se dignava a levar Rosana para sua própria casa, encontrava-se com ela, o miserável, na casa de Ataliba quando este viajava a negócios.
Ele foi alertado por seu vizinho fofoqueiro, Walter, que lhe informou, não de maneira altruísta, querendo avisar um amigo para qe não fizesse papel de bobo, mas querendo saborear um bocadinho da tragédia alheia como convém aos seres humanos e após já ter contado pra praticamente todos os vizinhos. Disse tudo, em detalhes a Ataliba. Como o sujeito era, a que horas chegava e quando saía, tudinho.
Ataliba, ainda que não tivesse motivos para duvidar, resolveu tomar uma atitude apenas quando visse com seus próprios olhos. Inventou uma viagem, mas, ao invés de deixar a cidade, se pôs de tocaia na frente de casa. Viu o sujeito chegando por volta das oito e meia, e saindo pouco antes da meia-noite. No dia seguinte a mesma coisa. No terceiro, o sujeito chegou perto da meia-noite e saiu de manhã bem cedo, antes das seis.
Ataliba imediatamente soube o que faria. Procurou na garagem, em meio as muitas caixas que lá estavam empilhadas e encontrou o velho revólver de seu pai. Uma arma já com seus vinte anos, mas que certamente ainda funcionava.
Seguiu-se a isso a compra das munições e uma viagem de fachada para fora da cidade. Sete dias. Viajou, de fato, para uma cidade próxima. Hospedou-se em um hotel, e, no dia seguinte, sem fazer check-out, voltou.
Chegou antes das oito à frente de sua casa, onde estacionou e pôde ver, de dentro do carro, o amante sendo recebido novamente por Rosana. Esperou algumas horas e entrou sorrateiro na casa que era sua. Sacou do bolso do paletó a arma. E esperou.
Agora estava ali, imaginando o que faria após encher a desalmada e seu amante de chumbo. Voltaria para o hotel da cidade vizinha, e marcaria, por telefone, uma reunião para o dia seguinte com um fornecedor local e pronto. A morte de Rosana e seu amante teria sido apenas outra fatalidade torpe, mais um zero vírgula alguma coisa por cento nas estatísticas da criminalidade. Precisava lembrar de simular um assalto subtraindo algumas coisas. DVD, Televisor, aparelho de som, dinheiro... Precisava manter a cabeça fria. Repassou seu plano:
Entraria no quarto, arma em punho como convém ao corno enfurecido que era. Falaria baixo para não atrair a atenção dos vizinhos, confrontaria Rosana e o amante, e então mataria ele primeiro. Não tinha nada pessoal contra o sujeito, mas, enfim, era o amante, um dos responsáveis pelo seu infortúnio, e, além do mais, matá-lo primeiro deixaria Rosana apavorada, e ele queria isso. Falaria para ela dos planos que tinha, e de como ela fora vil e estúpida o suficiente para, em dois anos, transformar um conto de fadas em uma história de Nelson Rodrigues. Esperava que ela chorasse. Queria usar a expressão "Lágrimas de crocodilo" e não faria sentido se ela não chorasse.
Concluiu, pelo silêncio, que aquele era o momento de fazer sua entrada.
Abriu cuidadosamente a porta do quarto, e, na penumbra, discerniu as formas de Rosana e do amante sobre sua cama, resfolegando sob os lençóis que ele pagara com o suor de seu rosto. Mirou os dois por longos momentos, segurou com força o cabo do revólver. Apanhou uma almofada da poltrona que ficava próxima da cama, atiraria através da almofada, já que não se lembrara de comprar um silenciador. Será que abafaria o som como nos filmes? Empunhou a arma com a almofada colada ao cano, e pensou no que diria. Talvez devesse acender a luz, antes. Mas e se alguma coisa desse errado? E se na hora em que ele acendesse a luz a Rosana acordasse? Ou o amante? E Ataliba não estaria com a arma empunhada e, vai saber, e se o sujeito fosse faixa preta de caratê e o desarmasse com facilidade? Melhor não arriscar. Ataliba deu mais alguns passos pra longe da cama, de modo a enxergar o quarto todo. Pigarrearia. Pigarrear? Será que eles acordariam? Faria o quê? Um ruído? Chamaria Rosana e mandaria ela acordar o amante? É. Isso. É assim que ele faria. E assim que ela acordasse o pulha, Ataliba o alvejaria através da almofada. Daquela distância era difícil errar, certo? Então faria seu discurso, "história de Nelson Rodrigues", "Lágrimas de Crocodilo", etcetera... Respirou fundo, dali pra frente não haveria mais volta. Estava escrevendo um novo capítulo em sua vida, sendo pego, ou não, seria um assassino. Poderia justificar e racionalizar o quanto quisesse, e Ataliba era bom em racionalizar e justificar, mas a verdade era uma só: Seria um assassino. Ponto final.
Mas... Valia a pena? Cogitando a hipótese de não ser preso... Mesmo assim. Valia a pena matar Rosana e o amante? Ter aquilo em sua consciência pra sempre? Matar os dois e pronto? Friamente? De maneira premeditada? OK, Rosana matara seus sonhos, mas foram sonhos que aquela vaca miserável plantou nele, então, no final das contas, eram um pouco dela. Isso não justificava as ações da cachorra, mas vai saber, né?
Rosana se virou na cama e jogou a perna nua por cima do amante. Ataliba engatilhou a arma, respirou fundo, engoliu em seco e... Guardou o revólver no bolso novamente.
Andou na ponta dos pés até o escritório contíguo, fez uma ligação breve pelo celular e apanhou sua máquina fotográfica.
Esperou que Walter, seu vizinho pusilânime aparecesse na janela e deixou que ele entrasse. Voltou ao quarto acompanhado de Walter, acendeu a luz e tirou várias e várias fotos. Fotos e Rosana e do amante dormindo, foto dos dois acordando nus, fotos de ambos protegendo a nudez com expressões de puro espanto.
Houve um longo processo judicial. Ataliba conseguiu se livrar de Rosana que, eventualmente acabou casando com seu amante, Cássio, e foram felizes. Mais do que eram com sua relação clandestina. Walter, o vizinho fofoqueiro, foi testemunha no processo de divórcio de Ataliba e Rosana, e ficou feliz da vida com a possibilidade de poder contar, em primeira mão, à toda a vizinhança, todos os detalhes sórdidos da noite em que Ataliba apanhou a mulher com a boca na botija.
Ataliba vendeu a casa, e passou a morar no litoral, administrando seus negócios quase que inteiramente pela internet.
Caminhava na praia de manhã, e, de vez em quando, ainda pensava em como seria bom ensinar uns moleques a pescar com tarrafa. Mas, se aprendera alguma coisa com tudo o que aconteceu, além de dar ouvidos aos seus instintos foi a ter paciência e saber esperar.
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Incrível como você domina bem todo tipo de escrita. Adorei esse thriller.
ResponderExcluirAhh e toda vez que venho aqui, aprendo uma palavra nova, a de hoje foi ''sorumbático'', já aprender a ter paciência e saber esperar, é um pouco mais difícil ...
OK, fiquei com muuuita vergonha, agora, mas obrigado, Laís, e, putz, eu adoro essa palavra, "sorumbático",acho maneiraça, mas nem sempre acho onde encaixar, eheheheheh.
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