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segunda-feira, 29 de novembro de 2010

Sinais


O Irineu parou na frente do balcão da pastelaria com os fones enfiados nas orelhas. Atrás do balcão o pasteleiro, tiozinho simpático, japa, a maior cara de Sonny Chiba, lembra dele? O Hattori Hanzo do primeiro Kill Bill? Então, parecido com ele. O pasteleiro olhava o Irineu com interesse. O Irineu ficou olhando pra tabela de preços do dublê do Sonny Chiba, escolhendo um sabor de pastel enquanto ouvia Revolver dos Beatles. Pensou um pouco. Suspirou e abriu a boca pra falar, mas parou. A Beatriz passou andando rápido, também com fones nos ouvidos, na porta da pastelaria e acenou pra ele. Ele a viu, e imediatamente tirou os fones do ouvido e gritou sorrindo:
-I'm Only Sleeping, e tu?
-Blackbird! -Ela gritou de volta, com um sorrisão bem aberto e ainda caminhando.
O irineu sorriu e ficou olhando ela ir embora. Quando ela sumiu de vista, o Irineu sorriu pro pasteleiro:
-Um de palmito. Médio, por favor.
O pasteleiro começou a fazer o seu ofício, e perguntou casualmente:
-Por que aquela moça bonita não tá aqui contigo?
O Irineu sorriu sem responder, olhava pro chão. Ainda sorrindo. O pasteleiro perguntou de novo:
-Ela parece gostar de ti. Tá na cara que tu gosta dela... Qual o problema?
-É complicado. -Balbuciou Irineu.
-Complicado é ruim...
-É... A gente acostuma, eu acho.
-Acostumar com "complicado" é ainda pior, eu acho.
O Irineu não respondeu. Silêncio, exceto pelo ruído do azeite fervendo. O japonês tirou o pastel do óleo fervente com uma pinça grande, o pousou em uma bandeja forrada com uma toalha de papel que absorveu a maior parte da gordura.
-Pra levar?
-É.
Embrulhou o pastel, o colocou em uma sacolinha plástica.
-Três "pila".
O Irineu olhou em volta enquanto sacava a carteira do bolso.
-E um refri de lata.
-Cinco pila.
Irineu pagou, andou até a geladeira e pegou uma lata de Fanta. Se dirigia à saída, quando o pasteleiro perguntou:
-Vai falar com ela quando?
O Irineu sorriu.
-No dia em que a gente estiver ouvindo a mesma música.
-Ah... Um sinal, né? Pra garantir.
O Irineu assentiu com a cabeça, sorrindo. Mas o pasteleiro fez uma expressão intrigada:
-Mas e se já tiver havido algum outro sinal? Um mais sutil, mas com mais significado?
O Irineu não sabia. Deu de ombros.
-Hoje vocês dois ouviam Beatles... Há quem possa considerar isso um sinal. Ela te acenou, isso, pra mim, é um sinal bem claro, também. A tua cara olhando ela ir embora, nossa, sinalaço... Eu não sei. Talvez, se tu esperar demais por um sinal muito específico, pode acabar perdendo uma parte muito boa, de alguma coisa muito boa. Sei lá...
O Irineu ficou pensativo um instante, olhando pra sacolinha com o pastel na mão direita. Então levantou a cabeça e se deu conta de o quanto o pasteleiro parecia com o Hattori Hanzo.
-O senhor é de onde?
-Dom Pedrito. - Respondeu o japonês.
-Ah. Bom... Obrigado, hein? Tchau.
O Irineu foi embora. Se o pasteleiro fosse de Okinawa, ah, isso seria um tremendo sinal, mas Dom Pedrito? Isso não significava nada. Colocou os fones de ouvido, apertou o play e George começou a cantar Love You To. Enquanto isso, cerca de quatro quarteirões adiante, Beatriz começava a ouvir a mesma música, ela que era apaixonada pela voz do Harrison e pelo som da cítara, mas o Irineu nunca ficou sabendo disso, pois esperava por sinais específicos demais enquanto nem sabia interpretar os que haviam ao seu redor.

sábado, 27 de novembro de 2010

Resenha DVD: Predadores


Finalmente vi Predadores, que queria ter assistido no cinema, mas, por uma série de imprevistos, acabou passando batido. Aluguei ontem, e, á noite, munido de uma generosa porção de sorvete de pistache e coca-cola geladinha, me sentei confortavelmente no sofá pra ver a produção de Robert Rodriguez dirigida pelo francês Ninrod Antal onde um grupo de assassinos, soldados e guerrilheiros é abduzido na terra para servir de diversão a um grupo de predadores entediados em um planeta-resort de caça.
O filme é maneiro, divertido, fiel à mitologia da série, presta um belo tributo ao filme de 87, dá um banho em qualquer Aliens Vs. Predador e está anos luz a frente de Predador II (Filme que eu acho até bem simpático), o elenco encabeçado por Adrien Brody que é um baita ator, é bom. Conta ainda com Danny Trejo (e ele fica fora de algum filme com a mão de Robert Rodriguez?), Laurence Fishburne (Personagem mais descartável o dele, viu?), o eterno Eric Foreman, Topher Grace, e Walton Goggins além de outros dois ou três casca-grossa sem lá muito estofo ou carga dramática.
O destaque, além de Brody, fica por conta da brasileira Alice Braga, co-protagonizando o filme, muito linda, mandando bem na atuação em inglês e servindo como consciência do grupo de bandidões.
Não existe, no filme, o mistério que cercava o monstro no longa original, afinal, com miniaturas, jogos de video-game, e os filmes da série AVP todo mundo tá careca de saber como são os crustáceos espaciais de dreadlock no cabelo, o que é compensado pelo ritmo ágil do filme. O roteiro não tem lá grandes inovações, nem buracos especialmente profundos onde tropeçar, afinal, estamos falando de um filme de ação com monstro espacial, a grande inovação fica por conta dos "preda-cães", e do Predador Berseker, uma variante maior, mais feia (E tinha como?) e mais malvada do monstro que todos amamos.
O time de personagens casca-grossa é jóia, a ação é divertida, mas uma coisa precisa ficar clara pra referência futura do pessoal de Hollywood, e alguns podem considerar isso algum tipo de spoiller, de qualquer forma, aqui vai:
NINGUÉM VENCE UM PREDADOR NO MANO-A-MANO!!!!!!
Nem Schwarzenegger venceu o Predador no mano a mano, não se pode botar qualquer vagabundo com uma lâmina ou um porrete, bater de frente com um predador e sair andando. E tenho dito!

"Isso é uma colônia de caça. E nós somos a caça."

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Tem limite.


A moça, com cabelos bem negros, olhos castanho-escuros, óculos, muito bonita, estava sentada na praça de alimentação do shopping com meio milk shake de Ovomaltine do Bob's em frente a ela. Concentrada lia um livro. Meu Nome É Vermelho, do Orhan Pamuk. Lia com voracidade o livro, absorta na história do Negro. Foi quando desviou os olhos da página para tomar um gole da bebida doce e cremosa no copo diante de si, e viu, do outro lado da praça de alimentação, um rapaz. Era alto, magro. Tinha cabelos ruivos e uma barba de alguns dias. Olhos muito verdes. Vestido com um jeans desbotado, tênis All-Star vermelhos gastos e uma camisa de flanela xadrez azul e preta. Parecia ter estacionado no tempo na época do Nirvana. Era bonito. Parecia interessante. A moça pensou que poderia abraçar uma pequena dose de anacronismo visual em sua vida. Especialmente se viesse embrulhando um rapaz alto e bonito de olhos verdes como aquele. Estava olhando para o rapaz enquanto sugava com sofreguidão o milk-shake pelo canudo, foi quando deu-se conta que ele também a olhava.
Susto!
O que o sujeito iria pensar dela? Ali, olhando descaradamente pra ele enquanto chupava o canudo? Homens são costumeiramente podres na hora de associar qualquer coisa a sexo. Imagine o que ele iria imaginar? Baixou os olhos. Então, os ergueu novamente e o mirou. Ele ainda a olhava. Sorriu. Ai, meu Deus! Começou a andar em sua direção. O que ela ia fazer? O que ela ia fazer?
Respirou fundo. Fingiria desinteresse e continuaria lendo seu livro? Quando ele se apriximasse ela diria que não olhou pra ele coisíssima nenhuma e desejaria bom dia. Ou então diria que pensou que o conhecesse. Isso! Diria que achou que ele era seu primo Marvin.
"Marvin"? Precisava parar de ouvir aquele disco dos Titãs. Ele estava mais perto. O sorriso franco bem aberto. Dentes tortos... Meio Ethan Hawke. Charmoso até. Quem sabe... Quem sabe ele não era o homem da sua vida? Quem sabe todas as escolhas certas e erradas que ela fizera na vida tenham servido para fazê-la chegar até aquele momento, áquele lugar? Quem sabe os homens com quem ela pensara em dividir a sua vida até ali tenham sido meros estágios para que ela encontrasse aquele pseudo-Ethan Hawke ruivo no shopping enquanto bebia milk shake e lia Orhan Pamuk? Por que não? Ele era bonito, tinha algum charme, apesar de parecer um grunge perdido no tempo, mas que diabos, a moda vai e volta, quem sabe as camisas de flanela xadrez estivessem apenas esperando o momento de atacar novamente? Talvez ela estivesse sozinha por ser demasiado exigente consigo e com os outros, talvez aquele grunge extemporâneo fosse o teste derradeiro para ela deixar de lado os velhos preconceitos e abraçar a novidade e a espontaneidade de uma relação baseada no acaso e mais nada.
Respirou fundo, ele estava muito perto. Parou perto dela.
Ela ergueu os olhos e sorriu. Ele sorriu de volta:
-Tu é linda, pena que é colorada...
Ela não entendeu:
-Quê?
Ele apontou com o queixo pro livro sobre a mesa:
-Tá lendo livro do Inter...
-Desinfeta, fedelho burro.
O rapaz saiu sem entender e voltou pra onde estava. A moça suspirou. Espontaneidade, novidade, abandonar os velhos preconceitos, vá lá, mas tem limite: Burrice, não. Burrice nem morta.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Dá ou desce


O Bartolomeu, moleque malvado de bermuda e camiseta do Ben 10 nos seus sete, oito anos, chegou perto da Flavinha, um amor de menina, com vestidinho de tafetá cor-de-rosa, toda alegre durante o recreio no pátio do colégio, e disse;
-Ou dá ou desce!
-Desce. - Respondeu a Flavinha, ruborizada.
O Bartolomeu, então, a agarrou pela nuca e a empurrou pra baixo até seu joelhinho delicado tocar o chão. Quando a largou ela estava chorando com os vergões vermelhos deixados desenhados atrás de seu pescoço pelos dedos do moleque.
A Flavinha contou pra profe, que chamou o Bartolomeu e exigiu desculpa, que ele pediu, mas não foi sincero.
Já na quarta série, o Bartolomeu se inclinou pra carteira do lado onde a Flavinha sentava. Silêncio absoluto durante a prova de matemática, ele cochichou sibilando perdigotos em meio aos dentes guarnecidos pelo aparelho:
-Flávia... Como é que resolve a quatro?
E a Flavinha quieta.
-Flávi-a! Me dá a resposta da quatro!
E a Flavinha nada.
-Flávia... Ou dá ou desce.
A Flavinha virou enfurecida:
-Desce.
E o Bartolomeu:
-Sora! A Flávia tá me pedindo cola.
Lá foram os dois pra direção. Até a mãe da Flavinha foi chamada. O Bartolomeu foi repreendido, também, mas pra ele, moleque que era, não fazia diferença.
No primeiro ano do ensino médio, o Bartolomeu sentou do lado da Flavinha na cafeteria:
-Flavinha... Me arruma o telefone da tua amiga, a Ana?
-Não. Ela não quer nada com um trouxa que nem tu.
-Ah, Flavinha... Por favor. Vai que ela gosta de trouxa?
-Não.
-Por favo-oooor... Eu faço teus lados com um amigo meu que tu ache bonito e não ache trouxa...
-Pra ser teu amigo tem que ser trouxa.
-Ah, Flávia... Dá o telefone da Ana pra mim...
-Não.
-Flávia... Ou dá ou desce.
-Desço.
Naquela noite o Bril, amigo do Bartolomeu que unia físico de pudim e cabelo de palha de aço, apareceu na casa da Flavinha pra levar ela no cinema. "Mas como? Tá louco? Eu não marquei nada...", disse a Flavinha. "O Bartolomeu que me deu o recado..." respondeu um confuso Bril, com gel no cabelo desgrenhado e usando uma camisa branca estampada com estrias roxas abotoada até o ponto mais alto do colarinho. A mãe da Flavinha, penalizada com a expressão aturdida do Bril obrigou a filha a ir até o cinema ver um filme com o pobrezinho do guri. No dia seguinte estavam chamando a Flavinha de Scotty-Bright no colégio. Alguém a vira no cinema com o Bril e espalhara a notícia.
Foi a última peça de Bartolomeu em Flavinha. Perderam contato. Ele se mudou com os pais, não se viram mais. Dois anos de paz para Flavinha. A fase final da adolescência foi boa pra ela, cresceu, botou corpo, deixou de ser aquela menina magricela com joelhos ossudos e pouca cintura. Concluiu o ensino médio, prestou vestibular e passou. Nutrição. Primeiro dia na faculdade, Flavinha, poderosa, segura de si, encontra quem? O Bartolomeu. Aqueles dois anos haviam sido bons com ele, também. Não tinha mais aquele corte de cabelo militar que o fazia parecer ainda mais irritante do que era. Os óculos também o deixaram mais sério, e a barba caíra bem. Estava bonito. Quando a viu, abriu um sorriso franco, que ela, por força do hábito, achou que seria seguido de uma chacota de alguma espécie. Mas não. A abraçou com civilidade, deu-lhe um beijo estalado na bochecha. Conversou animadamente com ela. Perguntou como ela estava, e, pasmem! Se desculpou pelas peças da infância. Perdera o pai, complicações após uma cirurgia, estava trabalhando, estágio em uma firma de engenharia, estudava ali, também. Estava no terceiro semestre. Prontificou-se a servir de guia para Flávia na faculdade se ela precisasse. Apresentar-lhe algumas pessoas. "Tudo trouxa", brincou. Flávia não entendeu a referência na hora.
Começaram a andar juntos. Ficaram amigos. "A namorada dele deve ser uma guria sortuda pra caramba.", pensou a Flávia encantada com a mudança dele da água pro vinho. "Está solteiro!", descobriu uma efusiva Flávia. Era só esperar, concluiu. Em algum momento ele vai dar o bote, certo?
É... Não. A mudança de atitude do Bartolomeu fora profunda, mesmo. Respeitador até demais. Levando todo o lance de amizade extremamente a sério.
"Ai, que bonitinho", pensou a Flávia. E preparou-se, ela, pra dar o bote.
Tentou, primeiro, contato físico. Passava a mão na perna dele enquanto conversavam. Sutil demais. Não funcionou.
Tentou algo um pouco mais descarado. O recebia em casa em trajes sumários. Shortinhos ínfimos. Blusas amarradas sob os seios dando-lhes volume. Também não surtiu o efeito desejado.
Foi tentando coisas. Abriu cartas de tarô para ele, "só de farra!", onde "via" que a mulher da vida dele estava mais próxima do que ele imaginava. O levou pra ver filmes de horror no cinema onde se abraçava forte nele a cada susto fingido. Pediu massagens nas costas. Nada parecia funcionar. Teria o Bartolomeu crescido e se tornado uma bichona? Resolveu fazer um último movimento. Daqueles escondidos dentro de uma caixa sobre um martelo e onde se lia: Em caso de emergência quebre o vidro.
Chamou o Bartolomeu para jantar na casa dela. Sexta á noite. Quando o Bartolomeu chegou, encontrou a porta entreaberta. As luzes apagadas, velas aromáticas acesas por toda a parte e a voz de Barry Whyte ecoando pelos cômodos do apartamento entoando uma daquelas melodias mezzo sexy, mezzo cafona.
Fechou a porta atrás de si e entrou a passos lentos. Na sala, sobre a mesa, morangos e uma garrafa de vinho. Assomou na porta, a figura de Flavinha, usando um conjunto de lingerie que merecia canções e sonetos. Jogou os cabelos pra trás, e olhando Bartolomeu com os olhos semi cerrados disse:
-Bartolomeu...
Ele respondeu com a voz embargada e a boca entreaberta:
-Flavinha?
Ela completou articulando bem as palavras com os lábios cobertos de gloss:
-Ou dá ou desce.

Limpeza



A dona Sônia, esposa do doutor Otávio, andava desesperada.
Desde que a dona Neuza, antiga faxineira, se aposentara por conta da idade e dos problemas de coluna à ela relacionados, a dona Sônia não tinha sossego.
Dona Sônia era muito exigente com relação à limpeza e arrumação do lar.
OK...
"Muito exigente" não faz justiça a relação entre dona Sônia e limpeza.
A dona Sônia era maluca, fanática, doida de pedra quando o assunto era limpeza e arrumação.
A dona Sônia tinha comichão se visse uma roupa amarrotada. A dona Sônia tinha acessos de ira se via migalhas no sofá. A dona Sônia sentia pontadas no coração se um copo de líquido gelado pousasse sobre um móvel sem uma daquelas bolachas de apoio.
A dona Sônia levara três anos testando faxineiras para auxiliá-la em sua guerra contra a sujeira e a bagunça até encontrar a dona Neuza.
A Neuza parecia uma fortaleza.
Uma mulher parruda e robusta, capaz de arrastar móveis de um lado pra outro sem pedir ajuda nem água. Acatava todas as ordens de dona Sônia com a prontidão de um sargento, e as executava com a meticulosidade fria de um assassino em série.
Era tudo que a dona Sônia queria.
Agora, após a aposentadoria de Neuza, ali estava ela. Há mais de duas semanas sem alguém que pudesse servir como seu aliado na guerra contra a imundície que assolava sua casa.
Até tentou recrutar o doutor Otávio para ajudá-la no sábado, mas o doutor Otávio desertara. Argumentou que trabalhava o dia inteiro de segunda a sexta e que merecia descansar no sábado pela manhã antes de ir ao clube.
Dona Sônia pensou em contra-argumentar que ela também trabalhava de segunda a sexta, e ainda no sábado e no domingo, uma vez que a comida que ele comia e as roupas limpas que ele usava não brotavam de Nárnia durante os finais de semana. Mas achou por bem abreviar o conflito. Avisou-lhe, porém, que iria procurar uma nova faxineira para aparecer uma vez por semana.
E que a nova pessoa certamente cobraria mais caro do que Neuza, a antiga.
O doutor Otávio, também interessado em abreviar o conflito, assentiu com a cabeça após fazer um rápido cálculo de orçamento mental. Impôs um limite razoável ao acréscimo dos honorários da nova faxineira, e entregou-se novamente ao prazer da leitura do jornal matutino.
Dona Sônia foi para o telefone em busca de agências que pudessem lhe indicar uma nova faxineira.
Penou.
Dona Sônia era muito exigente, referências que não fossem perfeitas não lhe serviam, ainda havia a questão do dinheiro, pois dona Sônia não era uma perdulária.
Após meia dúzia de ligações para agências, dona Sônia partiu para o computador onde examinou referências enviadas por e-mail.
Não gostou de nenhuma.
Ou cobravam muito caro, ou não tinham referências que oferecessem suporte à confiança inestimável de dona Sônia.
Resolveu trabalhar à moda antiga.
Saiu, conversou com pessoas, colocou anúncio no jornal, entrevistou candidatas... Nada funcionava, e os dias seguiam passando e a sujeira ia vencendo a guerra contra dona Sônia. Até que, na quinta-feira, ela apareceu.
Shirley.
No primeiro momento dona Sônia chegou a suspirar de desgosto, tamanha foi sua insatisfação com a moça.
Muito jovem. Não tinha o físico de sumotori que tornara Neuza tão útil, era baixinha, magra, apesar das pernas musculosas, dificilmente poderia erguer o sofá com uma das mãos e passar o aspirador com a outra como Neuza fazia.
Parecia fraquinha a Shirley.
Provavelmente, se dona Sônia não estivesse sem candidatas para entrevistar e se já não estivesse começando a ser tomada pelo pânico de ver poeira sobre algumas peças da mobília, ela nem sequer teria entrevistado a Shirley, entretanto, como as referências que a moça apresentou eram excelentes, como o preço que ela cobrava era bastante aceitável, e como ela tinha toda a documentação, dona Sônia resolveu experimentar, nem que fosse como paliativo até encontrar uma faxineira de verdade.
Porém, surpresa:
Gostou do resultado.
Mais que isso, achou excelente.
Shirley era silenciosa, trabalhava bem e rápido, mas não com pressa. Retirava pó com dedicação e meticulosidade de iluminista turco, arredava a mobília para alcançar os cantos mais obscuros com o aspirador de pó, lavava e escovava os ladrilhos da área de serviço com água e sabão, colocava roupas na lavadora com amaciante na medida certa, lustrava os móveis, e tirava manchas de mofo dos cantos do teto do banheiro com um escovão.
Dona Sônia se encantou.
Imediatamente acertou a faxina semanal com a Shirley, todo o sábado pela manhã. A casa ficaria um brinco.
Tudo acertado, avisou o doutor Otávio que encontrara uma nova moça para a limpeza. O doutor Otávio fez um indefinido ruído de concordância.
No sábado pela manhã, Shirley chegou cedíssimo.
Sete e dois, e pediu desculpas pelo atraso.
Dona Sônia amou. Apenas dois minutos atrasada e se desculpando!
Pediu licença e mudou de roupa no banheiro. Trocou a saia preta curta e a blusa regata por uma calça de abrigo de mescla, estilo Rocky Balboa e um camisetão com a efígie desbocada da Hello Kitty, e as sandálias de salto por tênis confortáveis. Prendeu os longos cabelos encaracolados em um rabo de cavalo no alto da cabeça e, munida de balde e escova, pôs-se a trabalhar.
Em um primeiro momento, o doutor Otávio nem percebeu a moça. Deu-lhe bom-dia algo sonolento, e disse "prazer" sem muito alarde quando a dona Sônia apresentou-os formalmente. Tomou um café da manhã rápido e foi para a sala ler o seu jornal.
TV ligada sem volume na Globo News, jornal na mão, o doutor Otávio, tranquilo quando assomou a Shirley.
Pediu licença, e começou a retirar os livros e revistas que estavam na parte de baixo da mesinha de centro, em seguida os bibelôs da dona Sônia, que estavam na parte de cima, colocou tudo na poltrona contígua, e posicionou-se sobre os joelhos. Apanhou um pano, um frasco de lustra-móveis, e começou a passar na superfície da mesa.
O doutor Otávio lia o jornal, mas, casualmente, desviou os olhos da folha repleta de letras. Foi quando viu, com o rabo dos olhos, pouco abaixo da curva das costas flexíveis de Shirley... Uma tatuagem, um desenho tribal qualquer, desses tão em moda entre as moças daquela idade, e, logo abaixo, um ínfimo "T" de tecido vermelho que denunciava a calcinha fio-dental que Shirley envergava sob as largas calças de abrigo.
O doutor Otávio continuou segurando o jornal na altura dos olhos, mas seria incapaz de dizer sobre o que se tratava a página que tinha diante de si.
Tinha olhos apenas para o corpo esguio da moça que serpenteava a sua frente, resfolegando, assoprando para longe dos olhos os fios que teimavam em escapar de seu rabo de cavalo, naquele balé de movimentos vigorosos e ritmados que davam brilho à mesinha e excitavam o velho doutor. Foi a semente da tragédia.
O doutor Otávio, vil como os homens costumam ser, foi seduzido pelo corpo atlético e miúdo da jovem.
Passou a cortejá-la em segredo, e, eventualmente, logrou sucesso em seu intento. Que jovem inexperiente e humilde não seria seduzida pela astúcia e malícia de um homem mais velho?
No início, o doutor Otávio oferecia à Shirley uma carona até a parada de ônibus. Dona Sônia não tinha razão para desconfiar, era mesmo o caminho que Otávio fazia para ir ao clube jogar paddle com os seus amigos, e Shirley e ele saíam praticamente no mesmo horário. Era nesse interím, após Shirley terminar a faxina e antes de Otávio se juntar aos outros velhos sem-vergonha do clube, que os dois se entregavam a devassidão de sua relação proibida.
Levou tempo para dona Sônia desconfiar de algo.
Ela não tinha razões para tanto, e mesmo que tivesse, ainda estava extasiada com a qualidade da faxina de Shirley.
Foi apenas vários meses depois de Shirley ter começado a trabalhar que dona Sônia encontrou um embrulho oculto no porta-malas do carro do doutor Otávio.
Foi mero acaso.
Dona Sônia procurara por um alvejante de limão que pedira ao doutor, e ao não recebê-lo, achou que Otávio poderia ter esquecido no porta-malas ao retirar as demais compras.
O embrulho misterioso continha uma caixa de bombons, um perfume e uma lasciva calcinha fio-dental que não teria servido na dona Sônia nem quando ela tinha trinta anos.
Ela chegou a pensar em agarrar a tralha e fazer um escândalo com Otávio.
Mas refreou-se.
Apanhou seu telefone celular e fotografou os itens no porta-malas, engoliu em seco, e seguiu com seus afazeres.
No sábado seguinte, porém, reconheceu o cheiro do perfume em Shirley quando esta chegou para o trabalho.
E, no mesmo dia, reconheceu a sumária peça de roupa íntima quando Shirley se agachou para arredar o sofá da sala.
Chamou a moça e expôs à ela a foto dos itens no porta-malas do carro do doutor. Após uma pequena insistência, a moça, em prantos, assentiu que sim. Que estava tendo um caso com o doutor.
Se desculpou muito.
Disse que não queria, mas que fora seduzida. Lamentou imensamente, disse que se a dona Sônia quisesse ela iria embora naquele momento e jamais voltaria. Todavia dona Sônia, firme como uma rocha, disse que falariam sobre ela depois. Que naquele momento, tinham que resolver o caso do doutor Otávio.
Foram até o crápula, onde dona Sônia revelou saber de tudo. Em um primeiro momento o doutor negou, no segundo tentou culpar Shirley, a seguir, voltou a negar, até, finalmente, assumir, cabisbaixo, o adultério.
-Desculpa, Sônia. Me desculpa. Eu não sei o que deu em mim, fui dominado pelos meus instintos mais baixos. Mas me dê outra chance. Nós podemos recomeçar, tentar de novo, e arranjamos alguma coisa pra Shirley, pra ela não ficar desamparada...
Dona Sônia não chegou nem a piscar:
-Não Otávio. Tu vai embora, eu quero o divórcio.
O doutor Otávio ainda tentou argumentar:
-Quê? Mas meu bem-
-Não tem "meu bem", acabou. Tu vai arrumar as tuas coisas e encaminhar a papelada.
Dona Sônia estava irredutível.
O doutor não discutiu. Arrumou as malas em silêncio, apanhou sua pasta e seguiu em direção à porta da rua. No caminho, olhou para dona Sônia, que devolveu-lhe um olhar gélido. Olhou, então, para Shirley:
-Olha, Shirley... Me desculpe, por tudo, sim? Eu vou falar com os meus amigos e ver se te arrumo um trabalho...
-Não precisa. -Disse dona Sônia, firme. -A Shirley vai continuar trabalhando aqui.
O doutor Otávio não entendeu.
-Tu vai perdoar ela, Sônia, mas não a mim?
-É. -Admitiu dona Sônia, fechando a porta com o doutor do lado de fora.
A verdade é que a dona Sônia tinha grandeza suficiente em seu coração pra perdoar tanto o doutor Otávio quanto a Shirley, mas, para fazer isso, teria que mandar a Shirley embora. Foi vendo a limpeza do chão da cozinha que dona Sônia percebeu que não poderia, em sã consciência, deixar a Shirley partir.
Um marido advogado de meia-idade chato, preguiçoso e de caráter duvidoso se arruma chutando qualquer macega, mas uma faxineira como a Shirley...
Aquilo era matéria raríssima.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Amor-próprio


O Walter estava acabado. Os últimos três dias haviam sido os piores da vida dele, ele não comeu, nem dormiu, nem fez nada desde aquela quinta-feira fatídica em que a Fabiane pediu pra conversar, e, olhando dentro de seus olhos disse a ele que estava tudo acabado entre os dois.
Assim. A seco. Na maior. Sem nem sequer dar detalhes de por que estava fazendo aquilo.
-Por qweáhhh, Fabi???? - Se perguntava chorando copiosamente Walter na solidão e na penumbra de seu apartamento. -Puór qwééééáaaaargh?
O síndico até foi bater à porta de Walter pra saber se estava tudo bem. Alguns vizinhos haviam ouvido choro, estavam preocupados.
-Tudo bem aí, seu Walter?
O Walter nem abriu a porta, respondeu lá de dentro, com os olhos inchados, vermelhos e o rosto molhado:
-Tá... Tá tudo bem...
Para imediatamente se por a prantear novamente, chorar muito, de soluçar. De ficar com os lábios inchados e tudo.
Por três dias Walter se entregou a dor e ao desespero. Ao luto por um amor assassinado pela faca fria da desfaçatez e falta de coração de uma mulher. Sim... Walter jamais amaria novamente. Dedicar-se-ia ao celibato. Usaria roupas de gola rulê pretas, calças desbotadas e coturnos. Quem sabe passasse a escrever poemas? Sim, lindos versos e sonetos celebrando a dor de um coração partido. As mulheres iriam se apaixonar por seus sonetos. Ofereceriam-lhe mundos e fundos em troca de seus versos, em troca de uma oportunidade de tentar sanar seu coração dilacerado pelo abandono. Mas ele jamais aceitaria. Permaneceria sozinho, distante de todos., Deixaria crescer uma barba hirsuta, usaria os cabelos desgrenhados, comeria apenas alimentos brancos, pois branca é a cor da paz que seu coração esmigalhado pelo malho do vil abando... Bateram à porta.
Seria o síndico de novo?
Olhou pelo olho-mágico, era Fabiane.
Ele ajeitou a roupa amarrotada. A mesma da quinta-feira. Abriu a porta hesitante.
A Fabiane olhou pra ele:
-Walter...
Tinha os olhos marejados, parecia se esforçar pra não chorar.
-Olha... Me desculpa, Walter eu... Eu tô tão arrependida. Olha, me desculpa, eu não sei onde tava com a cabeça quando falei contigo na semana passada. Eu... Eu não quero viver sem você ao meu lado. Eu não quero. Por favor, me desculpa, me aceita de volta. Eu tava... Sei lá. Frustrada, brava. Não pensei. E, nesse final de semana, saí com as minhas amigas, e não aproveitei nada. Elas lá falando, se divertindo, e eu só conseguia chorar e lembrar de ti, que tu nunca mais ia me abraçar forte, beijar o meu pescoço, ou fazer amor comigo. E começou a me dar um desespero. As gurias me mandavam parar de chorar, mas eu não conseguia, eu tentava parar e só soluçava... Foi horrível. Tu pode me desculpar? Me dar outra chance? Será que tu pode?
Walter olhou no fundo dos olhos da Fabiane, abriu um meio sorriso, respirou fundo, e respondeu.
-Nem fodendo. Vaza.
E bateu a porta. Enquanto apanhava a toalha para tomar banho, ainda pensou:
Credo. Que falta de amor próprio, viu?

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Desejos


Antenor dormia pesadamente. Estava tendo um sonho bom. Estranho, mas bom. No sonho ele fazia sexo com a Kirsten Dunst, em pé, no banheiro de um teatro. Estranho é que ele nem achava a Kirsten Dunst particularmente atraente, na verdade, ele achava ela tremendamente mal-escolhida pro papel de Mary Jane em Homem-Aranha, só tinha achado ela bonitinha em Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembrança, e ainda assim, achava que ela desaparecia perto da Kate Winslet. De qualquer forma, estava aproveitando o sexo onírico, estava até orgulhoso da própria performance, podia sentir a maciez da pele dela, podia sentir o hálito dela em seu rosto quando ela suspirava, tremendo sonho.
Acordou, porém, antes de ver o desfecho de sua fantasia involuntária. Acordou com todas as lembranças do sonho, com lembranças das sensações físicas, tudo, tudo. Cheiros, sons, texturas... Olhou o relógio, quatro e dezoito da madrugada. Só tinha que levantar as sete. Nem tentou dormir, sabia que não conseguiria, foi direto para o chuveiro. Tomou um banho frio. "Que bobagem", pensou. Voltou pra cama. Deitou-se, cobriu-se.
"Bem que podia repetir o sonho...", desejou casualmente. Acordou na manhã seguinte, lavou o rosto, escovou os dentes, se vestiu e saiu de casa devorando uma maçã verde. Chegou ao escritório, sentou-se em sua cadeira, diante de sua escrivaninha, empilhou os relatórios que tinha que organizar para o dia, e ligou o computador. Clicou no internet explorer ao invés do Excel. Abriu-se diante dele o oráculo moderno do Google. Clicou em imagens. Digitou K-R-I-S-T-E-N-espaço-D-U-N-S-T, e ENTER.
O Sábio Google o corrigiu: "Você quis dizer 'Kirsten' Dunst". Antenor confirmou.
Várias fotos, em quase todas ela estava loira. Estranho, ela ficava mais bonita loira do que ruiva. Geralmente acontecia o contrário com as mulheres. Achou fotos dela bêbada, achou fotos dela vestida de personagem de anime, achou uma foto dela na praia, com os seios de fora após, provavelmente ser atingida por uma onda ou dar um mergulho. Clicou naquela. Ficou ali, mesmerizado pela imagem. O colega do lado se esgueirou por trás dele:
-Ricas tetinhas, hein?
Assustado, Antenor fechou o navegador em um sobressalto, e olhou para o intrometido com cara de poucos amigos. O sujeito riu e voltou aos seus afazeres. Antenor também.
Quando saiu do trabalho, ás seis, passou na locadora. Pegou Jumanji e Entrevista com o Vampiro, mas largou novamente. Preferiu alugar Homem-Aranha 2, e Wimbledon - O Jogo do Amor. Foi à academia, voltou pra casa, tomou banho, e assistiu os filmes um atrás do outro comendo um daqueles lanches de microondas e bebendo suco de graviola. Enquanto via os filmes, Antenor certificava-se que a Kirsten Dunst não só não era particularmente atraente pro seu gosto particular, como também era uma atriz bem limitada.
Depois de terminar de assistir aos filmes, Antenor escovou os dentes, e foi pra cama. Assistiu, deitado, o noticiário noturno, ajustou o despertador, e desligou a TV. Antes de dormir sorriu pra si mesmo, pensando na tolice de sua mini obssessão por Kirsten Dunst. Uma atriz nem tão bonita, nem tão talentosa. "Que bobagem", pensou, novamente.
Fechou os olhos. Antes de pegar no sono, porém, pensou rapidamente que seria bom sonhar com ela de novo. No dia seguinte alugaria Maria Antonieta.
Desejos, enfim, são engraçados. Não se pode explicá-los através de lógica, pois muitas vezes eles não têm nenhuma.

sábado, 20 de novembro de 2010

Parlamento



A Letícia chegou ao local marcado por almoço com o Sérgio carregando a bolsa, o casaco e o guarda-chuva. Parecia esbaforida.
Deu um beijo rápido nele, daqueles em que um só cola os lábios nos do outro e faz o barulho de estalo ou um 'uwha".
Ajeitou as suas coisas na outra cadeira, sentou, tirou os óculos da bolsa e encarou Sérgio. Quando abriu a boca pra falar, a figura do garçom assomou a seu lado. Queria saber se já tinham escolhido. A Letícia, impaciente como ela só, ainda começou a articular que recém havia chegado, que mal sentara, e que, pra piorar, não tinha nem recebido um cardápio de modo que, só podia ter escolhido se fosse uma discípula de Charles Xavier ou se fosse uma freguês assídua do lugar o que, com aquele tipo de atendimento, era difícil de acontecer.
Mas Sérgio se antecipou. Disse:
-Ainda não vimos o cardápio. Pode trazer um pra nós, por favor?
O garçom aquiesceu com um aceno de cabeça e saiu, trazendo o cardápio de volta segundos depois.
-Quando escolherem é só chamar.
-Obrigado.
Sérgio era assim. Um poço de educação. Era raro vê-lo pedir algo sem um "por favor" antes, e receber sem um "obrigado" depois. Parece básico, claro. Todas as pessoas educadas dizem "obrigado" e " por favor". São palavras que abrem quase tantas portas quanto "puxe" e "empurre", mas Sérgio... Bom, Sérgio levava essa coisa de educação e polidez quase a sério demais. Era calmo, também. Sereno feito um monge zen-budista, Letícia jamais o vira ter qualquer tipo de explosão. O mais perto disso que Sérgio chegava era ficar rabugento de vez em quando, ainda assim, era extremamente educado, mesmo estando mal humorado.
Era sensível, também.
Chorava vendo filmes, ás vezes ouvindo músicas. E raramente verbalizava seus sentimentos. De vez em quando chegava a dar nos nervos da Letícia, que era, sim, muito educada, mas que também era despojada, destemida e briguenta em várias ocasiões. Era o tipo de moça que fazia as coisas acontecerem sem esperar por ninguém. Sua aparência e físico refletiam sua personalidade.
Era atlética, alta, com cabelos castanhos claros bem lisos quase sempre presos em um prático rabo de cavalo, usava roupas confortáveis e fazia esportes desde a adolescência, todo esse arsenal de características e atividades se aliavam para formar a persona de Letícia, que, em muitos aspectos, era o extremo oposto de Sérgio.
Ela, um exemplo vivo de pró-atividade e ação, e Sérgio, um tranquilo seguidor da reação, e olhe lá.
Ainda assim, fosse pelo que fosse, Letícia e Sérgio namoravam já há algum tempo, e davam-se bem, obrigado.
Tinham um relacionamento adulto, baseado em confiança e diálogo.
Se algo não estivesse funcionando, se não estivesse perfeito para ambos, eles sentavam, conversavam, e resolviam, era o que Sérgio batizara de parlamento.
Acontecera naquele final de semana, a Letícia chamou o Sérgio, sentaram, e ela disse a ele que não gostava do fato de a ex-namorada dele ficar lhe mandando recados via Orkut o tempo inteiro. Ela sabia que ele e ela já não tinham nada há anos, sabia que ele não sentia nada por ela, mas aquilo a deixava desconfortável, e ela gostaria muito que acabasse.
Comedido como sempre, Sérgio argumentou que não podia simplesmente mandar a guria parar de deixar scraps pra ele de uma hora pra outra, que seria falta de educação, mas que responderia aos scraps apenas se eles contivessem perguntas, o que, provavelmente, a desencorajaria de manter a correspondência. Perguntou se servia para Letícia, ela confirmou, e voilá, estavam de volta às boas de onde, na verdade, jamais haviam saído.
A Letícia sabia que, ás vezes, era meio exigente em excesso, sabia que devia ser difícil pro Sérgio atender às demandas dela. Mas, ao mesmo tempo, ela sabia como era difícil pra ela lidar indiretamente com algo que a incomodava.
Fosse anos antes, e Letícia teria ido pessoalmente até a tal da ex e dito à ela, ipsis litteris que desaparecesse da vida do Sérgio pois ele já estava comprometido com outra, e que ela já tivera a sua chance e a havia desperdiçado. O diálogo, talvez, até contivesse algumas ameaças de violência física.
Mas isso foi antes.
Antes de Letícia amadurecer e aprender a contemporizar algumas coisas. Poucas, é verdade, mas melhor que nada. Fora justamente pensando nisso, no fato de contemporizar pouco, que Letícia se deu conta que, nos pouco menos de dezoito meses de namoro com Sérgio, e desde o advento das conversas para resolução, Sérgio jamais chamara Letícia para conversar e demandar qualquer mudança.
Nunca.
Uma outra pessoa poderia iludir-se supondo que isso era devido ao fato de não dar nenhuma razão para que o parceiro demandasse qualquer mudança. Não era o caso de Letícia. Briguenta e despojada, sim, iludida, não. Letícia possuía o dom da auto-crítica, sabia que não era perfeita, aceitava isso, prova irrefutável é que lutava constantemente para não ceder ao próprio comportamento explosivo. Lutava constantemente contra o próprio temperamento querendo crescer enquanto fosse possível, melhorar a si própria e ao ambiente onde vivia. E isso incluía Sérgio, com quem se importava barbaridade.
Foi essa a razão de ela chamá-lo para almoçar naquela segunda-feira, quando geralmente se viam apenas no fim do dia, após o trabalho e a faculdade, na casa de um dos dois.
Quando o garçom se afastou, Sérgio se pôs a ler o cardápio, mas Letícia o interrompeu:
-Tu não quer saber por que eu te chamei pra almoçar?
-Não é por que tu tava com saudades de mim, eu, com saudades de ti, e a gente podia comer juntos e depois ficar abraçadinhos ali na Praça da Matriz até ter que voltar por trabalho?
-Não, Sérgio. Eu preciso te perguntar uma coisa.
-Graham Bell deve estar se revirando na cova após ouvir isso e perceber que tu ignora a maior invenção dele.
-Não, o que eu quero perguntar não podia ser pelo telefone. Nem podia esperar até de noite.
-Credo, que gravíssimo. Tá bem, manda, então.
-Por que tu nunca me chama pra conversar?
-Não sei se entendi bem essa pergunta...
-As nossas conversas. O nosso parlamento. Por que tu nunca me pede nada? Pra mudar nada?
-Sei lá... Eu tô satisfeito com a nossa relação, Lê. Não quero mudar nada nela...
-Nada? Nunca? Nada te incomoda no meu comportamento? No fato de eu ter um monte de amigos homens? De adorar sair de noite? De sair sozinha com meus amigos, que não são teus amigos, e chegar tarde em casa?
-Não me incomodava, não, mas agora, contigo colocando as coisas desse modo...
-Sério?
-Não, boba. Eu confio em ti. Eu sei que se, em algum momento, algo na nossa relação te incomodar a ponto de tu pensar em obter algo que falta entre a gente fora, tu vai falar comigo antes.
-Então nada te incomoda? Nunca? Pra ti a nossa relação é perfeita?
-Não... Eu te amo. Amo o que a gente têm. Mas não acho que seja perfeito. Sei que não é. Mas supre todas as minhas necessidades. Me faz feliz. A ponto de eu preferir relevar algumas pequenas coisas que eventualmente me desagradam, como tu achar que o Daniel Craig é o melhor Bond quando todo mundo sabe que ele é um Jason Bourne disfarçado. Como tu gostar daquela barulheira medonha do Iron Maiden e Black Sabbath e não gostar dos Beatles, de Oasis e Coldplay. Como tu sempre fazer um comentário mordaz quando eu estou assistindo Peixe Grande ou Duas Vidas e chorando de novo, e, de vez em quando tu ser ríspida com as pessoas. Como tu secar descaradamente o meu time em todos os jogos e demandar que eu te leve ao estádio pra ver os jogos do teu time. Como tu cobrir os olhos e os ouvidos nas partes mais assustadoras daqueles filmes idiotas de terror que tu volta e meia aluga, ou o fato de tu jamais ter aceitado se vestir de Princesa Leia na versão escrava do Jabba pra ir a uma festa a fantasia comigo... Tudo isso me incomoda, sim. Mas são pequenas coisas, e eu, que sou um incréu nato, um pessimista de carteirinha, acho que, se essas são as partes ruins do que nós temos, se são o preço a pagar pelos bons momentos, então é só me mostrar onde eu assino, pois eu estou mais que satisfeito com a relação custo-benefício.
A Letícia não disse nada. Tinha os olhos marejados, mas não deixou escorrer nenhuma lágrima. Olhou pra cima até os olhos secarem. O garçom se aproximou de novo:
-Querem pedir?
-Quando a gente decidir o que quer tu vai ser o primeiro a saber.- Respondeu Letícia, ríspida.
-Obrigado.- Disse Sérgio enquanto o garçom se afastava.
Ele olhou pra Letícia e disse baixinho:
-Megera.
-Bichinha.- Ela respondeu.
Deram as mãos por cima da mesa e se puseram a ler o cardápio.

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Glossário


Têm palavras que dá gosto de dizer. Não são todas, não servem pra qualquer situação, mas puxa, são muito gostosas de usar. Elas servem pra dar impacto a um relato, ou pra expressar a veracidade de uma surpresa. Há quem empregue palavrões com essa finalidade, eu, embora escreva alguns palavrões, falo muito poucos. Aquele "Caralho!" exclamado quando bato com o dedo mínimo do pé esquerdo no rack do computador em um gélido dia de inverno Porto Alegrense, sempre sai. Durante um jogo de futebol, vociferações de baixíssimo calão sobre a mãe do juíz e como as habilidades dela são admiradas na zona do baixo meretrício, também podem acontecer, jogando video game com os amigos, claro, mas meio que para por aí. Eu prefiro, via de regra, não dizer palavrões, até por que o nosso vernáculo tem tantas palavras bacanas pra todo tipo de situação...
Adoro negar coisas com um "não peremptório", por exemplo. Putz, que prazer dizer "peremptório". "Peremptório" é genial. Não deixa margem pra argumentos.
-Vamos ao cinema ver Lua Nova?
-Ah, não.
-Ah, vamos, por favor...
-Não. Peremptoriamente, não.
Ah, coisa boa. "Absolutamente não", "veementemente não" poderiam surtir o mesmo efeito, o tradicional "nem fodendo", também, mas, uh, peremptoriamente... Ah, peremtoriamente é totalmente diferente.
Lascívia é outra. Quando os homens querem se referir ao desejo sexual de certas mulheres, o que mais se ouve é "ninfo", "tarada", "sem-vergonha".
Blá.
Nenhuma dessas chega aos pés de "lasciva". Ninguém tem medo de uma tarada, nem de uma ninfomaníaca, tampouco de uma sem-vergonha, mas "lasciva"... Ah, "lasciva" gera aquele misto de curiosidade e receio.
-Cuidado, hein, Guilherme. A margarete anda te mirando com lascívia nos olhos.
-Quê?
"Lascívia" deixa o Guilherme assustado, nervoso, com um pé atrás, mas ao mesmo tempo, louco pra saber se o resto da Margarete faz justiça ao olhar dela.
Se o Guilherme ficasse sabendo que a Margarete tava "cheia de amor pra dar", ele talvez nem sequer levasse em consideração, mas "lasciva"... "Lasciva" não pode ser ignorado.
"Abalroar", então? Esbarrar acontece, as pessoas se esbarram, carros colidem, esbarrões e colisões são pequenos acidentes, agora, um abalroamento... Nossa, "abalroamento" é tombo feio na certa, com direito a luxação e osso fraturado, "abalroamento" é naufrágio, "abalroamento" não deixa sobvreviventes.
E pra tamanho? Tem que ser "Abissal". Grande? Bobagem, há bebês que são grandes. Enorme? Aviões são enormes. Gigantes? Há centenas de edifícios gigantes no mundo, mas "abissal"? Não... "Abissal" assusta. Tu sente vertigem tentando encontrar a parte mais alta de algo que é "abissal", se um troço abissal estacionar na tua cidade, centenas de pessoas vão ter um infarto.
Bagunça, criancinha faz bagunça, mas "baderna", não. "Baderna" é caso de polícia. Bagunçeiros apenas nos irritam, mas "Baderneiros" nos revoltam.
Barulheira, por exemplo, barulheiras acordam velhinhas, barulheira faz a vizinha do 614 reclamar com o síndico, "zoeira", por outro lado, é, no mínimo multa, na pior das hipóteses abaixo-assinado pra obter ordem de despejo. Ninguém suporta "zoeira".
Temos muitas palavras boas pra usar. Quando usamos um palavrão por escolha, querendo dar um ar mais coloquial a um diálogo, ou demonstrando quanta intimidade temos com um amigo, é uma coisa, mas querer usar palavrão pra expressar emoções... Nah, não precisa disso, nossa língua tem palavras pra tudo, são tantas que a gente pode se dar ao luxo de usar sinônimos pra diferenciar quando a mesmíssima coisa é boa de quando não é.
É como se despedir de alguém de quem se tem muitas saudades com um "amplexo". Abraço a gente dá até em cunhado, mas "amplexo" é um lance que a gente guarda pra quem importa de verdade. Amplexo é pra amigos com quem se divide confidências, pra aquele amigo a quem doaríamos um rim. Os abraços a gente distribui na festa de fim de ano da firma, os amplexos estão guardados e etiquetados em um cômodo mais secreto que a Bat-Caverna e dados unicamente no momento certo, e apenas áqueles que merecem.
Ao contrário de "ósculo". Se beijo a gente dá em quem a gente ama, se o beijo é macio, saboroso, quente, uma manifestação de como queremos bem a uma pessoa, "ósculo" é o que a gente dá naquela tia velha que tem costeletas de Emerson Fittipaldi e unha de catador de marisco.
-Vixe, lá vem a tia Nilza, vou ter que dar um ósculo na véia...
Na dúvida, lembre que, se te der água na boca, é beijo, ósculo meio que te repugna.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

Realidade


O Bertoldo era doido pela Glória. Doido mesmo. O Bertoldo amava ela. Achava ela o supra-sumo, o Olimpo, o máximo que uma mulher podia ser. Bertoldo sonhava com Glória, com seus ombros bem torneados, com seus seios firmes, com sua cinturinha fina, com suas côxas rijas e com o espaço entre uma coisa e outra.
Não era apenas o físico. Bertoldo amava a personalidade da Glória. Amava ela por sempre ser franca e honesta, por não fazer joguinhos, por não esconder o que sentia. Amava o fato de ela ser divertida, engraçada, meio moleca.
O Bertoldo, enfim, achava Glória perfeita. Sonhava, literalmente, em tê-la em seus braços, em acariciar seu cabelo castanho-claro encaracolado, em mirar de perto seus olhos verdes, e beijar seus lábios carnudos sentindo seu hálito fresco.
Os amigos de Bertoldo, várias vezes, mandavam-no virar o disco, pois não aguentavam mais ouvir falar da Glória, diziam que Bertoldo precisava arrumar outra mulher pra deixar a Glória de lado, um pouco. Mas Bertoldo nem queria ouvir essa possibilidade, ele estava interessado na Glória, compunha sonetos pensando na Glória, quando via uma mulher bonita em uma revista ou filme, comparava-a à Glória.
Bertoldo tinha Glória em tão alta conta, que hesitou muito em convidá-la pra sair. Era, claro, inseguro como todos os homens são, e não se achava digno daquela mulher que queria fazer sua um dia, mas, como a sorte só ama áqueles que tentam, Bertoldo tentou, e conseguiu. Glória aceitou seu convite pra um chopinho no bar, o encontro foi bem, e rendeu um segundo, que envolveu jantar e cinema, e depois outro que envolveu jantar e motelzinho.
No dia seguinte a esse terceiro encontro, Bertoldo encontrou seus amigos após o trabalho. Todos o olharam com malícia, deram gritos, ouviram-se muitos "Finalmente!". Todos o cercaram:
-E aí?
-Conta, e aí como foi?
-Matou quem tava te matando?
-Fala, rapaz!
Bertoldo sorriu tímido, olhou em volta, suspirou e disse:
-É...
Os outros retrucaram:
-Como assim "é"?
-Fala mais!
Bertoldo revirou os olhos impaciente, respirou fundo de novo e completou:
-... Pois é.
E não se falou mais no assunto. Os amigos sabiam o que acontecera a Bertoldo. É o problema de se obter o que mais se deseja. Raramente a realidade supera a perspectiva.

Silêncio


Salu era tímido. Muito tímido. Salu era tão tímido que estava a meio passo de algum grave transtorno anti-social. Salu não se sentia bem entre desconhecidos, nem estava disposto a fazer um esforço e conhecer as pessoas. Ele preferia que elas continuassem sendo estranhas, assim ele poderia continuar afastado delas com a desculpa do desconforto.
Salu tinha amigos, por incrível que possa parecer. Não eram muitos, mas eram bons. Aliás, pra sustentar uma amizade com Salu, ser um bom amigo, mas bom amigo, mesmo, era uma condição básica. Era dessa forma por que Salu era algo inconstante no seu comportamento.
Hoje, ele ia, de bom grade, ao jogo do Inter contigo, no Beira-Rio. Vocês riam, se divertiam, xingavam o árbitro, comentavam sobre os quadris bem torneados da morena com a camiseta branca de 1997 que ficava pendurada na mureta gritando á plenos pulmões:
"D'alessaaaaaaaaaaaaaaandroan!"
Vocês bebiam Pepsi morna, e celebravam o gol do Damião ou do Sóbis gritando feito cro-magnons em volta da fogueira.
Amanhã, porém, Salu podia não atender ao telefone. Ou recusar peremptoriamente um convite para ir ao cinema, ou para jogar bola. E desaparecer por um ou duas semanas.
Salu não fazia por mal. Era apenas o seu jeito. De vez em quando Salu se desligava do mundo em geral. Seus colegas do trabalho achavam-no mal-humorado, os colegas da faculdade o achavam antipático, seus parentes sabiam que Salu era daquele jeito, mesmo, e seus conhecidos, ou amigos menos próximos e menos pacientes diziam à boca pequena que o Salu era "meio autista".
Enfim, isso não chegava a preocupar Salu, ele era quem era, e pronto. Não podia e nem achava que queria mudar. Pelo menos não de todo, não de uma hora pra outra. O que Salu podia fazer era tentar relevar aqui e ali, abrir uma ou outra exceção. Submeter-se a certos rituais sociais que considerava absolutamente risíveis em nome da amizade das pessoas que ele achava que valiam a pena. Não eram muitas, de qualquer forma, então, ele podia abrir mão de uma parcela de sua privacidade de quando em quando, Salu era tranquilo quanto a isso.
Menos tranquilo Salu ficava naquelas raras ocasiões em que, de fato, sentia que se apaixonava por alguém. Nesses momentos Salu se perguntava como seria para uma pessoa socialmente normal, se relacionar com alguém que era praticamente um eremita. Como uma mulher sociável, divertida e comunicativa faria para viver com um sujeito que contava nos dedos as pessoas com quem gostava de passar tempo, e, ainda assim, não era lá muito tempo?
Salu não sabia responder a essa pergunta. E por isso, por mais que de vez em quando tivesse vontade de gritar bem alto que amava alguém, respirava fundo, engolia a declaração, e se recolhia por uns tempos. Pra se acalmar de novo.

Resenha Cinema: RED - Aposentados e Perigosos


Encarei nesse feriadão a minha primeira sessão de cinema em meses, estava precisando, costumo ir ao cinema, em média, uma vez por semana, e ficar afastado das telonas pelo tempo que fiquei já estava me causando desconforto físico, então, foi bom voltar à sala escura.
Me desentoquei e fui assistir RED - Aposentados e Perigosos (A vergonha alheia que eu sinto com os subtítulos dos filmes aqui no Brasil não acaba jamais.), adaptação do diretor Robert Schwentke (Diga isso com a boca cheia de farofa), do gibi de autoria de Warren Ellis, publicado lá fora em três edições.
Como o gibi segue inédito no Brasil (Embora a Panini tenha prometido publicá-lo ainda esse mês por aqui), eu não faço nem a mais remota ideia de como o filme funciona enquanto adaptação, vamos então, ao modo como funciona enquanto entretenimento.
RED mostra Frank Moses (Bruce Willis, fazendo o que sempre faz, mas tirando vantagem de já ter alguma idade), operativo aposentado da CIA que tenta se acostumar com sua nova e tranquila vida após anos no front. Solitário, o ex-agente mantém contato unicamente com Sarah (Mary-Louise Parker, com aqueles inacreditáveis olhos negros.), a telefonista do Seguro Social, por que se interessa a ponto de rasgar o cheque da pensão, plantar sementes de abacate e ler romancezinhos baratos ao estilo Julia, apenas para ter motivo para ligar pra ela e assunto para conversarem.
Quando planeja viajar para encontrar Sarah em pessoa, Moses é atacado em sua casa por um grupo de assassinos, ele escapa, mas agora precisa fugir se quiser sobreviver para descobrir quem o quer morto, e, mais importante, por quê.
No caminho, Frank precisa proteger Sarah, que também se tornou alvo por conta do interesse do espião aposentado nela, começa aí a montanha russa de viagens, tiroteios e encontros que faz o filme. Frank procura ajuda de Joe Matheson (Morgan Freeman, divertido.), de Marvin Boggs (John Malkovich, dando show!), Ivan (Bryan Cox, divertidíssimo.), e Victoria (Helen Mirren, se divertindo às pampas com suas metralhadoras) enquanto foge do agente William Cooper (Karl "Éomer" Urban), designado pela Companhia para neutralizá-lo.
Não chega a ser um super filme, não é a grande obra cinematográfica do ano, nem do mês, mas é um filme despretencioso, divertido, e, á despeito de todas as armas e tiroteios em cena, leve. O elenco de primeira (Que conta ainda com Richard Dreyfuss e Julian McMahon) não faz feio, o diretor segura a onda apesar de algumas escorregadas, e o roteiro, exceto por alguns eventuais buracos, não compromete a diversão, que parece ser o alvo primário o tempo todo.
Enfim, RED não vai mudar a trajetória do cinema contemporâneo, nem será lembrado futuramente em nenhum dos infâmes Top-10 Casa do Capita, mas certamente não ofende ninguém, e diverte por umas boas duas horas.

"Nunca pensei que voltaria a dizer isso, mas é hora de pegar o porco!"

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Conchas


Era o momento. Finalmente, após mais de cinco anos de amizade franca, sugestões dúbias e flerte descarado, finalmente, finalmente, Francisco e Juliana iriam sair para um encontro de verdade. Encontro mesmo, não pra sair como amigos, não pra ver um filme ou sentar em algum lugar e falar da vida, naquela noite, a natureza do encontro era outra. Era a coisa de verdade, era noite de fechar o acordo. A noite era tão especial que Francisco fez a barba, ele que odiava fazer a barba. Francisco lixou os calcanhares ásperos, cortou as unhas dos pés e usou cotonetes no ouvido. Francisco até aparou os pêlos do nariz.
Juliana não ficou muito atrás, não. Foi à manicure, depilou as pernas, as axilas e além. Não colocou calcinha confortável, colocou lingerie sexy, e sutiã com armação. Sim, sim, aquela era a noite de fechar o acordo. Todo mundo que conhecia Francisco e Juliana, afinal de contas, percebia que, por trás daquela amizade toda, existia mais. Existia algo mais profundo hibernando, feito um imenso urso pardo cheio de amor pra dar, e que os dois idiotas precisavam apenas dar um passo cada para que as coisas se encaminhassem. Eles se divertiam juntos, terminavam as frases um do outro, tinham gostos semelhantes pra quase tudo, se importavam, de fato, um com o outro.
Na verdade, se ainda não haviam ficado juntos, não era por mais, senão desencontros. Em mais de uma oportunidade uma decisão tomada e executada em questão de dias os impediu de engatar o romance que, pra todo mundo mais, já devia ter acontecido a tempos.
Deram um pouco de azar, também. Quando se conheceram, Francisco estava namorando. Ficaram amigos, outros sentimentos se insinuaram, mas permaneceram apenas amigos. Depois, quando o namoro de Francisco terminou, Juliana estava namorando. Quando o namoro de Juliana terminou, Francisco viajara para a Bahia a trabalho, onde permaneceu por dois anos. Quando Francisco voltou da Bahia, Juliana fora para o interioro do estado cuidar da avó doente.
Um ano e meio se passara desde o retorno de Francisco, e outros seis meses após Juliana finalmente ver a avó enferma se recuperar, e ele finalmente se reencontraram. Não foi a catarse de beijos apaixonados e juras de amor que os amigos dos dois esperavam, não, mas eles pareciam, mesmo, muito felizes.
Francisco e Juliana estavam mais próximos do que nunca, mas apesar disso, ainda não haviam dado aquele passo a frente. Se viam com frequência, saíam juntos, mas nada além disso, á despeito das quase súplicas dos amigos dos dois, que diziam que, pelo amor de Deus, se juntassem logo, antes que mais alguma coisa acontecesse. Mas os dois seguiam na defensiva, encerrados em suas conchas.
Especialmente Francisco, que ainda pensava se valia a pena comprometer uma amizade tão bacana e duradoura em nome de outra coisa que, vai saber, podia nem dar em nada, especialmente relembrando os históricos de relacionamentos de um e do outro, a maneira totalmente diferente como encaravam namoros e a vida a dois, mas acabou se rendendo, mesmo sentindo uma ponta de pânico, aos seus sentimentos.
Francisco resolveu tomar coragem e dar um salto de fé. Declarou-se à Juliana. Disse como se sentia, e falou que não queria mais ser apenas seu amigo. Juliana correspondeu.
Disse que sentia o mesmo, e que estava com medo que jamais fossem dar o passo que faltava. Beijaram-se longamente, apaixonadamente, e marcaram um encontro para a noite.
"É hoje." pensou um apreenssivo Francisco.
"É hoje." pensou uma excitada Juliana.
Naquela noite o Francisco e a Juliana jantaram e foram ao cinema, coisas que eles faziam sempre, mas ainda assim, naquela noite, as coisas pareciam diferentes, eles estavam diferentes. Sua conversa, seus toques, nada tinha a mesma espontaneidade de antes, eles estavam tratando um ao outro como se fossem feitos de vidro, os toques, antes tão comuns e naturais, se resumiram a pequenas e forçadas pegadas de mão, tudo parecia fora de lugar, errado. Francisco ficou pensando em qual seria a solução pra aquele desconforto todo. Pedir um intervalo?
"Tempo, tempo... Dá pra gente voltar a ser amigos enquanto jantamos? Não consigo falar contigo direito...".
Pra sua amiga, Juliana ele poderia dizer uma bobagem dessas, para Juliana, seu interesse romântico, provavelmente não pegaria bem...
Juliana, por sua vez, também se sentia deslocada, com pessoas que não a conheciam a anos ela sabia ser sensual, sexualmente agressiva e sedutora, com alguém que a vira sujar o nariz de sorvete e pra quem se queixara de cólicas menstruais era bem mais difícil.
O que também era difícil para ambos era apagar anos de reminiscências, os dois sabiam tudo um do outro, as manias, os vícios, os defeitos, a maneira como se comportavam quando alguma coisa os deixava desconfortáveis ou nervosos, e agora, ali estavam eles, frente a frente, em um restaurante não muito diferente de trocentos outros restaurantes onde já haviam estado juntos trocentas outras vezes, mas, pela primeira vez em anos, não sabiam como se comportar um com o outro, por que algo parecia fora de lugar, tão fora de lugar que até um "me passa o sal, fa'çoavor?" soava artificial, forçado.
Agora, ali estavam os dois em silêncio, sentados no restaurante, olhando para o prato, e pensando o que diabos estavam fazendo. Acabou que os dois estavam errados. Não foi naquela noite. Juliana se sentiu mal, Francisco a levou pra casa, disse que conversavam no dia seguinte, mas não ligou.
Juliana pensou que, provavelmente, Francisco achou que ela tivesse mentido á respeito do mal-estar.
Francisco, de fato, achou que Juliana simulara o mal-estar para sair daquela situação incômoda.
Agora, estavam os dois mais encerrados do que nunca em suas conchas, sem saber o que fazer a seguir. Se deviam dar uma nova chance àquela relação, ou se deviam esquecer tudo e continuar sendo apenas bons amigos, ou se, por tentarem transformar sua amizade em algo mais, a haviam assassinado peremptoriamente.
Confusos e assustados, eles se afastaram sem perceber que as melhores relações, começam baseadas em amizade, e que pra dar o próximo passo, não precisavam mudar ou subtrair nada no modo como tratavam um ao outro, apenas acrescentar coisas novas.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Medos


Foi em uma tarde fria de inverno, sentado em um banco de pedra do parque da Redenção, que Arnaldo, cansado após correr por mais tempo do que seus pulmões e suas pernas podiam suportar, percebeu a aproximação de um sujeito.
Era uma quarta-feira à tarde, Arnaldo recebera folga do serviço e foi correr em um horário em que o parque estava mais vazio, queria evitar multidões, e agora, estando sozinho em um raio de vários e vários metros, via a aproximação daquele camarada suspeito.
Como fazia sempre que alguma situação se apresentava, Arnaldo avaliou-a de forma científica e comedida. O sujeito que se aproximava podia ser apenas um transeunte. Um sujeito que também fora à boa e velha Redença para se exercitar. Não devia ser, não estava vestido apropriadamente. Usava jeans, botinas e um casaco de moletom com capuz sobre uma touca de lã enterrada até as sobrancelhas.
OK, o sujeito que se aproximava podia ser apenas um transeunte. Um sujeito trabalhador e atarefado que cortava caminho entre a Oswaldo Aranha e a João Pessoa pelo parque respirando um pouco de ar puro naquela mini-floresta em meio ao caos da cidade. Não devia ser. O sujeito não parecia ter nenhuma pressa, andava devagar, avaliando o espaço cada vez menor entre ele e o lugar onde Arnaldo estava sentado.
Mais uma tentativa, então: O sujeito que se aproximava era uma das bichonas sobre as quais ouvira falar. Que iam ao parque em horários de menor movimento tentar saciar sua sede de sexo casual com outros homossexuais que estivessem ali com a mesma finalidade... Podia ser. Embora, pelas feições do sujeito, Arnaldo jamais fosse julgar que tratava-se de um pederasta.
Uma última chance: O sujeito que se aproximava era um assaltante extremamente dedicado. Tão dedicado que nem esperara escurecer para começar seu trabalho de assaltar transeuntes que se exercitavam no parque. Podia ser... Não era comum, mas fazia sentido. Arnaldo se perguntou como definiria o sujeito que seguia andando disfarçadamente em sua direção com mais propriedade: "Aquele veado", ou "Aquele marginal"? Certamente estava mais pra "Aquele marginal". Arnaldo pensou em se levantar e começar a correr na direção contrária a do sujeito. Não seria sem sentido, ele estava vestindo tênis com amortecedores, calções, uma camiseta muito suada onde lia-se "running", relógio e boné. Tudo nele indicava que ele era um corredor.
Não seria um fiasco, ele não precisaria sentir-se um covarde como se sentia na escola quando mudava a direção de seu trajeto evitando cruzar com os marmanjos da oitava série. Nem qundo ele era adolescente e sentia a urgência de atravessar a rua quando via um grupo de maltrapilhos vindo na direção contrária. Ele podia se levantar, alongar-se rapidamente, e sair correndo de onde estava sem levantar a menor suspeita. Ninguém jamais o taxaria de covarde. Era apenas a sequência natural dos fatos. Ele sentara após correr um pouco, recuperara o fôlego, descansara os músculos cansados, e voilá, estava se pondo a correr novamente, certo?
É... O Arnaldo não conseguia. Ele se sentia tão envergonhado quando evitava os marmanjos da oitava série no ensino fundamental que em inúmeras oportunidades cruzou os grupos de maltrapilhos andando e forma altiva. Desde os quatorze anos não fugia de uma briga para o bem ou para o mal, e, por alguma razão, ficou ali sentado quando todos os seus sentidos lhe mandavam levantar e sair de onde estava.
Lutou contra seus instintos por breves instantes, até que não havia mais tempo. O sujeito assomou diante dele e perguntou com uma voz fanhosa e que tremia como um motor de motocicleta de baixa cilindrada:
-Tem horas, véio?
Arnaldo olhou o relógio e respondeu:
-Quatro e quinze.
O sujeito não agradeceu, deus as costas a Arnaldo, enquanto olhava os arredores, e então virou-se rápido, já com um revólver em punho.
-Dá os tênis, o relógio e o boné, e ligeiro.
A arma, um trinta e oito enferrujado de cano curto, estava a pouco mais de trinta centímetros do rosto de Arnaldo. Não era, infelizmente, a primeira vez que Arnaldo encarava o cano de uma arma. Já acontecera antes.
-Porra, velho... Sério? Tu vai roubar os meus bagulhos na cara dura?
-Anda, velho, os bagulhos, agora!
-Não.
-Anda, meu, se não te meto um pregaço na cara!
-Quer saber, vagabundo? Eu duvido que tu tenha colhão pra me meter uma bala. Sério, mesmo. Duvido. Digo mais, quero ver: Atira se for homem.
O sujeito empunhou a arma com mais força, como se fosse puxar o gatilho, mas Arnaldo nem piscou. Continuou o encarando:
-E pra hoje, boneca?
O meliante tentou novamente, dessa vez sua voz de motor de 50 cilindradas saiu baixa, cheia de dúvidas, quase perguntando:
-Vá lá, véio... Os bagulhos...
Arnaldo se levantou. Era bem mais alto do que o assaltante:
-Seguinte, chinelão: Tu vai te mandar daqui agora, e aí, quem sabe, eu não te encho de porrada.
O assaltante olhou pra arma, a enfiou de volta no bolso da jaqueta e saiu andando. Após uns seis metros virou e gritou:
-A gente vai se cruzar numa quebrada uma hora dessas.
Era possível, claro, mas muito improvável, pensou Arnaldo. De qualquer forma, ele raramente corria na Redenção, seu local de exercícios predileto era a avenida Beira-Rio, de modo que era quase nula a chance de encontrar aquele assaltante novamente.
Arnaldo não era a prova de balas, nem tinha aquela qualidade intimidadora de Clint Eastwood, Charles Bronson e de seu avô, nem tampouco era um suicida em potencial, como já foi mencionado, não fora a primeira vez que Arnaldo se vira encarando o cano de uma arma carregada. Dez anos antes, ele perdera cinquenta reais e uma camiseta de goleiro linda do Inter, toda preta, da Adidas, em um situação semelhante, a única diferença de lá pra cá? A arma, daquela vez, estava carregada. Dessa vez, não. Quando o sujeito apontou-lhe a arma, Arnaldo viu que as quatro câmaras expostas do tambor estavam vazias, achou pouco provável que um assaltante saísse para desempenhar seu ofício com apenas uma bala no revólver, um revólver tão, mas tão enferrujado, que provavelmente nem atirava mais.
Arnaldo era assim. Analisava tudo. Precisava disso. Já escapara de inúmeras outras situações que pareciam roubadas sem conserto por conta disso. Arnaldo não era um maníaco controlador, não queria controlar as pessoas, da maioria, na verdade, queria apenas distância, mas gostava de ter algum controle sobre situações, especialmente as difíceis.
Arnaldo também não era de sentir medo. Seu perfil extremamente analítico o tinha tornado uma pessoa que, na maior parte das vezes, não chegava nem sequer a ficar apreensivo. Não é que fosse um Demolidor, um Homem sem Medo, nem que fosse um Sherlock Holmes, ciente de tudo ao seu redor, mas era quase um escoteiro, sempre alerta. Apenas duas coisas assustavam Arnaldo:
Se apaixonar e não poder cuidar das pessoas que amava.
E, com mil demônios, as duas coisas estavam acontecendo com ele àquela altura.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Papéis


Desde pequenos, nos vemos em inúmeros papéis ao longo da vida. Eu, por exemplo, já fui um jedi que brandia sabres de luz em lutas contra as forças imperiais e o lado negro da Força em uma galáxia bem, bem distante. Já fui um playboy milionário que combate o crime vestido de morcego, um jovem tímido que de vez em quando se balança entre os arranha-céus de Nova York enfrentando o perigo. Também fui um intrépido arqueólogo explorando catacumbas milenares. Eu já fui um policial transformado em ciborgue, já fui um cientista no limiar de uma descoberta que iria mudar a história da humanidade, já fui o capitão de uma navio e persegui obstinadamente uma baleia assassina, já fui o general de exércitos justos e honrados que enfrentou hordas assassinas de inimigos cruéis, já fui um astro do rock, fui um peixe e um leopardo albino.
Tudo isso na infância, após fechar um gibi, após sair do cinema, no parque, jogando futebol com outros moleques, enquanto brincava com um kit "Jovem Cientista" que me foi sonegado após perceberem que eu estava experimentando sem seguir as instruções, na pracinha, na praia, embalado por nada exceto a imaginação e aquele estranho senso de inadequação que rege a vida de piás tímidos.
Todos interpretamos esses papéis, ou outros semelhantes. As meninas foram princesas, super-heroínas, modelos de passarela, Marion Ravenwood, Ana Moser, Magic Paula... Outros guris foram Falcão, Romário, Stoychkov, Ronaldinho, Figo, Zidane cada vez que entravam em uma quadra ou campinho pra jogar bola...
Depois, mais velhos, na adolescência, nossos papéis seguem, variam bastante, se tornam mais sutis, mas ainda estão ali. Mau aluno, boa aluna, rebelde sem causa, rebelde com causa, CDF, esportista, patricinha, playboyzinho, roqueira, funkeiro, pagodeira, namorado fiel, namorada infiel (e vice e versa), até chegarmos na idade adulta, quando, geralmente já sabemos quem somos, quando já nos tornamos o produto final de nosso ambiente e de nossas escolhas e oportunidades. Nessa fase da vida, já não interpretamos os papéis do dia a dia com a teatralidade que fazemos quando somos mais jovens, mas ainda o fazemos.
Mesmo aqueles de nós que sabem exatamente em são, o que fazem e por que fazem, aquelas pessoas que escolheram ser o que são, estão desempenhando um papel, a diferença é que é o papel que escolheram fazer, e ainda assim, não há garantia de que poderemos escolher sempre.
Nos colocamos no papel de alguém no comando, de alguém insensível, de um mártir, de uma testemunha, de vítima... Nós sempre temos papéis a desempenhar, alguns de que gostamos, outros que iríamos preferir jamais ter que interpretar, mas isso é a vida, então, já que estamos aqui, melhor fazer com que ela seja digna de um Oscar.

domingo, 7 de novembro de 2010

Oração

Ele não acredita em Deus. Na verdade, ele não acredita em praticamente nada, embora guarde lá alguma esperança quanto ao amor. Ele adoraria que amor fosse de verdade e fosse eterno, mas tem os dois pés atrás.
Ele acredita em trabalho, acredita em esforço, acredita em ciência, quase sempre (Embora tenha a mais inabalada certeza de que o homem jamais foi à Lua.), e nas coisas que estão ao seu redor. Coisas palpáveis, verdadeiras.
Sua mãe, por outro lado, é uma fervorosa católica. Do tipo que vai à missa todo domingo, que tem um quadro enorme de cristo na sala de estar, que lê a Bíblia nas horas vagas e que conversa com o padre... Católica assim.
Essa violenta diferença de opinião em termos de crença, vale algumas conversas bastante interessantes entre os dois. Algumas, ás vezes, até se tornam discussões acaloradas, mas, como nenhum dos dois é um maluco ignorante, eles acabam sempre rindo do conflito, ele, pelo menos, sempre acaba.
Mas a mãe dele, agora, não está bem. No hospital, sob sedação após um acidente vascular encefálico, ela passou por uma cirurgia delicada, e os médicos, embora otimistas, não podem prometer nada, e dizem apenas que precisam esperar.
Ele, vendo-se no meio da família perdida, e aturdida pela dor e pelo choque, se mostra otimista e luta como pode pra não desabar, também, e, de noite, em casa, quando ele fica sozinho, até chora um pouco algumas vezes, e chora muito em outras.
Ele é um incrédulo. Um ateu. Mas jamais quis parecer um incrédulo fanático, ao estilo Richard Dawkins, nem nada do tipo. Ele está aberto a possibilidade de estar enganado. Então ontem, fez uma oração.
Uma oração algo rude, mas muito franca, bem ao seu estilo:
"Deus? Seguinte... Se tu existir, e sacanear a minha mãe, eu te encontro e te arrebento, falou?"

Força, mãe. Sai dessa.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Rapidinhas do Capita


A Paula e o Matheus se implicavam mutuamente o tempo inteiro. A Paula era uma moça muito inteligente, cursava medicina, assistia filmes do Godard e do Terrence Malyck, ouvia Jorge Drexler e sabia, por alto, do que se tratava a teoria das super cordas. O Matheus não era o mais brilhante dos homens, até pelo contrário, era meio tacanho pra algumas coisas. Tinha concluído o ensino médio e ainda estava pensando se ia cursar faculdade, só de pensar em estudar pra fazer as provas já sentia sono. Ele gostava dos filmes dos irmãos Wayans e do Eli Roth, ouvia funk, e achava que super cordas eram aquelas do porto que prendem navios de grande calado às docas.
Se conheciam por que moravam no mesmo prédio, a Paula no apartamento que ela alugava, bem em cima do apartamento onde o Matheus morava com a mãe e a irmã mais nova. Tinham mais ou menos a mesma idade, e faziam pequenas grosserias um pro outro.
A Paula sabia que o Matheus dormia até tarde, então, acordava cedo, ia pra sua bicicleta ergométrica e ouvia música em volume bem alto enquanto se exercitava.
O Matheus sabia que a Paula não fumava e abominava o cheiro do cigarro, então fumava na janela, assoprando a sua fumaça cancerígena pras roupas de Paula no varal.
Ás vezes ela deixava a porta bater no nariz dele soltando-a nop último segundo quando, casualmente, entravam juntos no prédio.
Em outras ele bloqueava a passagem dela no corredor fingindo não tê-la visto, epecialmente se ele notasse que ela estava com pressa.
Mas, por trás de toda essa animosidade infantil que ficava visível na superfície, Matheus achava Paula muito bonita. Também achava fascinante a dedicação dela aos estudos e a independência que ela ostentava.
Paula, por vezes, achava Matheus engraçado. Achava bacana ele não ter medo de dizer o que pensava e não querer parecer alguém que não era. E, olhando ele chegar todo suado, de calção e sem camisa do futebol, até que ele não era de se jogar fora.
Mas jamais foram além das pequenas implicâncias mútuas. Paula jamais desceu do salto. Matheus jamais deu o braço a torcer, e eles continuaram apenas assim. Implicando-se mutuamente.
Ás vezes o destino não veste uma camiseta pró-amor, e as pessoas são orgulhosas demais pra dizer o que pensam e sentem, são incapazes de abandonarem de suas conchas. E voilá. Está instaurada uma história de amor sem amor...

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O Robson estava nervoso. Sentado ao lado da Vandirene mal conseguia respirar. E ela ali, tranquilona, mascando chiclete e lixando as unhas:
-Vandirene?
-Quié?
-Olha, Vandirene... Eu andei pensando, sabe? Sobre nós. Sobre como eu me sinto quando a gente tá junto, e, tipo... Eu... Olha. Eu te amo, Vandirene. É isso. Eu te amo.
-Arram.
-...? Vandirene, tu ouviu o que eu te disse? Eu disse que te amo.
-Valeu.
-Como... Como "valeu", Vandirene? Tu sabe... Tu faz ideia... Tu tem noção de o quanto eu ensaiei pra dizer isso, Vandirene? Tu sabe o pavor que eu tava de te dizer isso e, sei lá, parecer ridículo? Tu sabe? E tu reage assim? Eu... Eu nunca disse isso pra ninguém, Vandirene. Nunca. E eu já tive lá a minha cota de namoradas, viu? Mas nunca disse isso pra nenhuma delas. Nunca soube se, o que eu sentia por elas, era amor, mesmo, ou apenas carinho, ou, sei lá, só tesão, mesmo, no final das contas. Eu era muito novo, de repente nem sequer sabia distinguir. Mas contigo, Vandirene. Contigo eu sei que é amor, Vandirene. Eu sinto isso, essa dor, essa falta que tu me faz quando estamos longe. Essa... Essa sensação de estar amputado da minha melhor parte quando estamos apartados. E aí, quando eu verbalizo o que eu sinto, quando eu finalmente ponho pra fora, suando frio, com medo da tua reação, a tua reação é pior do que a pior que eu podia ter imaginado... O pior cenário que eu visualizei era tu me olhar surpresa sem dizer nada. Mas aí tu consegue... Tu consegue o que parecia impossível. Piorar o meu pior cenário. E isso que eu sou um pessimista nato. E aí, tu, com esse balde, balde, não, que balde é pouco. Tu com essa caixa d'água, com essa represa Hoover de desdém, vai lá e acaba comigo. Acaba com tudo. Acaba com a gente...
-Hã?
-Porra, Vandirene... Eu tava dizendo que-
-Quer dar uns malhos ali em casa?
-Bora.
Pois é. Homens são fáceis de agradar.

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TRADUÇÃO:

Ele disse:
-Penélope, não é tu, sou eu. Não tá dando mais eu me sinto vigiado, algemado, tolhido nessa relação, e, puxa, o amor tem que ser baseado em confiança acima de tudo, e eu não sinto que tu confia em mim enquanto eu respeito a tua individualidade, respeito teu espaço e confio cegamente em ti... Puxa.
Mas, na verdade ele quis dizer:
-Penélope, é tu, mesmo. Não dá mais. Eu ando louco pra dar uma variada, pegar essas minas porra-louca na noite e tu parece um guarda de presídio, tentei até te dar corda, te soltar com as tuas amigas, por que, afinal de contas, não me interessa o que tu faz ou deixa de fazer, e nem assim... Credo.

Ele disse:
-Não, não, Luciana, eu tô te dizendo, passei o final de semana inteiro pescando com os guris. Não, capaz, a gente tava em Rainha do Mar, Não chegamos nem perto de Atlântida, só radinho, cervejinha e conversa de homem. Quem te disse isso te mentiu, garanto que foi a fofoqueira da Giovana, é. Olha, longe de mim fazer intriga, mas ela tá sempre elogiando as minhas pernas quando tu não tá perto, muy amiga...
Mas, na verdade ele quis dizer:
-Não. Não, Luciana, eu vou morrer negando, e jurando de pés juntos que eu não cheguei nem perto de Atlântida nesse feriadão. Mesmo que a gente não tenha nem visto os caniços eu jamais vou admitir que a gente usou a pescaria como pretexto pra fugir das namoradas. Aquela gorda mal amada da Giovanna me paga, por que não ficou em Porto Alegre ou foi pro interior que nem uma pessoa normal? Seguinte, eu afundo, mas não vou sozinho, aquela gorda me paga...

Vozinhas.


O Frederico e a Marília se amavam, muito, profundamente. Se amavam de não desgrudar. Se amavam de dar beijo de despedida quando saiam pra trabalhar. O Frederico e a Marília eram um casal perfeito. Tinham lá suas briguinhas e discussões de quando em quando, mas ás vezes parecia que eles brigavam e discutiam só pra se curtirem mais quando fizessem as pazes.
O Frederico e a Marília tinha vozinhas pra falar um com o outro, sabe? Aquelas vozes engraçadinhas que as pessoas geralmente usam pra falar com criança? Pois então, o Frederico e a Marília tinham essas vozinhas pra falar um com o outro. A do Frederico lembrava um pouco a do Batatinha, aquele gato azul e gorducho que era amigo do Manda-Chuva, lembra dele? Pois é, essa era a voz do Frederico quando ele se dirigia à Marília, especialmente se estava com saudades dela.
Coisas como "Que saudades de ti, amor.", que soam tão normais na voz de qualquer pessoa adulta, ganhava toda uma outra conotação quando entoada pelo Frederico dirigindo-se à Marília. Quem estava em volta e ainda não conhecia essa particularidade da dinãmica do relacionamento dos dois, tinha até vontade de rir, mas quando os dois começavam a se beijar como se estivessem procurando ouro na boca um do outro, as pessoas não achavam mais graça e ficavam até com um pouco de inveja.
A Marília também tinha uma vozinha pra falar com o Frederico, era uma voz grave e meio rouca, mas ainda assim, guardando a doçura da voz normal da Marília. Geralmente ela usava essa voz pra fazer reprimendas cheias de amor ao Frederico.
"Ai, fredizinho, tu comprou a bolsa que eu tinha visto?"
Frederico e Marília não eram, porém, desses casais pré-fabricados, não tinha sido "feitos um para o outro", e tinham em comum tantas coisas quanto tinham de extremamente diferentes. A Marília, por exemplo, adorava filmes de terror, o Frederico detestava. A Marília adorava viajar, o Frederico pagava imposto pra não sair de Porto Alegre. O Frederico adorava filmes de ficção, a Marília não suportava. O Frederico lia até bula de remédio, a Marília não era uma leitora das mais entusiasmadas. A Marília adorava Djavan, o Frederico achava ele o maior chato. Mas trabalhavam essas diferenças, abrindo pequenos precedentes um pros gostos do outro de modo a fazer o namoro funcionar sem que ninguém precisasse abrir mão de suas preferências, e funcionava bem. Eles estavam juntos a mais de quatro anos, queriam casar, ter filhos, mudar pra uma casa maior, tudo isso.
Alguns acreditavam que era por causa dos precedentes. Outros que era por que a Marília era uma graça e o Frederico não era louco de deixar ela escapar, mas havia quem soubesse que, indispensável, mesmo, era a vozinha.
Relacionamento feliz não sobrevive sem uma vozinha.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Quando o amor acaba...


Eram mais de três e meia da manhã quando a Rose entrou em casa na ponta dos pés. Na mão direita segurava a bolsa e os sapatos de salto alto sobre os quais não conseguiria se equilibrar nem sob decreto imperial, na esquerda trazia uma garrafa long Neck quase cheia de uma daquelas bebidas prontas de vodka e suco. Entrou, fechou, com cuidado, a porta atrás de si enquanto decidia se acenderia a luz, ou não. Achou melhor não ligar. Seus olhos se habituariam à escuridão e ela não precisaria correr o risco de acordar o Ayrton. Trocaria de roupa no banheiro, detaria no sofá e, na manhã seguinte, diria que chegou antes da uma e meia, e que acabou pegando no sono ali, mesmo.
Ao entrar na sala, na penumbra atacou o pé da poltorna com o dedo mínimo do pé direito. Gritou um "Ai!" Sussurrado, e deu mais um passo, e chutou algo. Algo que não devia estar ali. O pé do Ayrton.
-Tava boa a noite, Rose?- Perguntou ele, sentado nas trevas.
-Que horror, Ayrton! O que tu faz sentado sozinho no escuro á essa hora?- Quis saber Rose, após se recuperar do susto.
-Nada... Não tinha o que fazer... Tava boa a noite?
-Tava, tava... Saí com as gurias, a gente foi á um barzinho, pra conversar, mesmo, mas aí a Lê disse que precisava dançar, por que tinha brigado com o namorado, e queria ver gente bonita dançando, e aí a gente foi...
-Podia ter ligado. Eu fiquei preocupado. Liguei pro teu celular, mas deu caixa postal.
-Bah, nem ouvi, no meio daquela zoeira...
-Hm...
-O quê, Ayrton?
-Como assim, "O quê", Rose? Eu não disse nada.
-Não disse, mesmo. Deu uma gemida, aí. Quer falar alguma coisa fala, logo. O que que é? O que tá te incomodando?
-Por que tu tá tão na defensiva, Rose? Alguma coisa aconteceu diferente do que tu queria essa noite?
-Ah, eu sabia. Eu sabia. Tu tá paranóico, Ayrton. Ficou a noite inteira aí, sentado no escuro esperando eu chegar... Qual é teu problema? Tu acha que é meu marido? Meu dono?
-Se eu... Eu não sei se tu reparou, mas tu chegou em casa ás três e meia da madrugada, de cara cheia, depois de passar a noite inteira sabe Deus onde, fazendo sabe Deus o quê, na companhia daquelas tuas amigas piranhas, como, aliás, tu faz com alguma frequência, e eu nunca disse que tu não podia ir. Em nunca fiquei ligando querendo saber á que horas tu iria chegar, até hoje, quando deu três da manhã e eu fiquei preocupado, então, acho que isso já responde a questão de eu achar que sou teu "dono", Rose.
-Então o que que é, Ayrton? Tu acha que eu saí pra dar? É isso? Tu acha que eu tava dando na madrugada porto alegrense?
-Na hora em que eu achar que eu devo me preocupar com isso tu vai achar só a tua mala na porta do apartamento, Rose. Por que eu não gosto de sentir ciúmes e acho traição a coisa mais escrota do mundo, especialente entre pessoas que, como nós, não tem nenhuma obrigação uma pra com a outra.
-Ah, então é assim? Teu apartamento e se eu não me comportar direitinho é rua? É isso?
-Qual a tua definição de "comportar direitinho"? Por que... São três da manhã, tu tá bêbada na sala aventando a hipótese de ter saído, nas tuas palavras, pra "dar" pra alguém, isso, no meu tempo, tava bem longe de ser se "comportar direitinho".
-Não vem com essa de "no meu tempo", bobalhão, que eu sou mais velha que tu, aliás, tu sabe, tá sempre jogando isso na minha cara.
-Não, Rose, não. Eu raramente lembro que tu é mais velha, até por que, tu te comporta como se tivesse dezesseis anos a maior parte do tempo.
-Vai pro raio que te parta!
Foi ali que acabou a relação. Pra Rose, pelo menos. Pra ela "vai por raio que te parta" foi a fronteira, a linha a ser ultrapassada, o momento em que ela percebeu que não respeitava mais o Ayrton, em que ela percebeu que aquelas saídas esporádicas com as amigas dela, em que ela até flertava um pouco, mas onde jamais o traíra, de fato, eram o ponto alto de sua vida de "pseudo-casada". Foi ali que ela viu que não gostava da pessoa que tinha virado naquela relação, e que talvez ela tivesse ficado daquele jeito por causa do Ayrton, do jeito hiper bom-moço dele, daquela coisa politicamente correta que chegava a dar nos nervos de vez em quando, pelo fato de que, quando eles começaram a namorar, todos diziam que eles se completavam, ela impulsiva, comunicativa, explosiva, e ele comedido, tímido, contido. E ela gostava dele, gostava de ele se comportar como se fosse um homem com o dobro da idade, gostava de seu jeito cerebral, da forma como ele falava... Talvez por isso Rose tenha começado a agir como uma caricatura de si mesma, tentando, quiçá inconscientemente, ser mais e mais a parte que faltava a Ayrton, a ponto de reforçar coisas que ela própria considerava defeitos. Até ali. Até dizer "vai pro raio que te parta", colocando um ponto final à conversa, e perceber que odiara tudo o que disse durante a discussão. Dali em diante não tinha mais volta pra Ayrton e ela, era cada um por si. Ela arrumou as malas e, por volta das cinco da manhã estava saindo. Ayrton não disse nada. Nem sequer pediu que ela ficasse. Ela foi pra casa da tia, que tinha um quarto vago, onde ficaria até pensar no que fazer.
O ayrton olhou pela janela a Rose pegar o táxi que ele chamou pelo telefone. Não queria que ela ficasse quarando em frente ao prédio no meio da madrugada, e sabia que ela não iria lembrar de ligar pra chamar, então, pareceu o mais correto a fazer.
Ayrton sentiu um pequeno vaziu ao chegar ao quarto e perceber quão monocromático ele ficava sem as almofadas coloridas e bichos de pelúcia de Rose. Foi engraçado, também, perceber como sentia falta de alguém a quem já não amava mais. Ayrton, com seu descontrolado espírito analítico, sabia, aliás, exatamente quando deixara de amar Rose. Não foi quando ela o mandara ir para um raio que o partisse, nem quando suas saídas com as amigas de moral duvidosa tornaram-se mais frequentes, nem quando ela começou a negar seus convites para ir ao cinema ou ao theatro. Foi cerca de dois meses atrás, quando ela mandara uma mensagem de texto pra ele, convidando-o para alguma coisa, e após vários "beijo" escritos sem separação, havia um emoticon, uma carinha piscando de língua de fora. Foi a primeira vez que Ayrton não fez a careta representada no emoticon após ler o recado. Pra ele, um sinal claro de que o amor terminara.

Amnésia...


O final de semana começava auspicioso, o feriadão prometia
Saí para zoar com meus primos, todos fugindo da minha tia.

Por danceterias e bares passeamos faceiros, bebendo e cantando
Os homens nos olhavam com raiva na face, as mulheres, salivando.

Mas se elas nos desejavam, por que não cediam às nossas investidas?
Seria apenas ilusão etílica achar que elas nos dariam calorosa acolhida?

Ora, que diabos, quem precisa dessas ardilosas e frígidas interesseiras?
Procuraremos por mulheres mais receptivas, lá na zona das luzes vermelhas.

Foi o que gritou meu primo, hébrio e achando-se repleto de razão
"Lá se houver dinheiro dentro da carteira há calcinhas pelo chão."

Embriagados que estávamos nem percebemos o absurdo da ideia em questão
E entramos aos risos com alarido em um inferninho do mais baixo calão.

Entre meretrizes que viram invernos demais encontramos a guarida da vez
E as horas finais da madrugada foram aproveitadas sem nenhuma altivez.

O álcool nos impeliu, não fora nosso, mas dele o curso que seguimos
Embora na alcova a satisfação, se houve alguma, fomos nós que sentimos.

O que sentimos também foram os resquícios que denunciavam o abuso noturno
Nevralgia, dor no corpo, desorientação e hálito fedendo feito um velho coturno.

Acordei em um quarto medonho, com uma baranga nua roncando ao meu lado
Ruim, é verdade, mas não de todo, pior seria se fosse um homem pelado.