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quinta-feira, 25 de novembro de 2010
Limpeza
A dona Sônia, esposa do doutor Otávio, andava desesperada.
Desde que a dona Neuza, antiga faxineira, se aposentara por conta da idade e dos problemas de coluna à ela relacionados, a dona Sônia não tinha sossego.
Dona Sônia era muito exigente com relação à limpeza e arrumação do lar.
OK...
"Muito exigente" não faz justiça a relação entre dona Sônia e limpeza.
A dona Sônia era maluca, fanática, doida de pedra quando o assunto era limpeza e arrumação.
A dona Sônia tinha comichão se visse uma roupa amarrotada. A dona Sônia tinha acessos de ira se via migalhas no sofá. A dona Sônia sentia pontadas no coração se um copo de líquido gelado pousasse sobre um móvel sem uma daquelas bolachas de apoio.
A dona Sônia levara três anos testando faxineiras para auxiliá-la em sua guerra contra a sujeira e a bagunça até encontrar a dona Neuza.
A Neuza parecia uma fortaleza.
Uma mulher parruda e robusta, capaz de arrastar móveis de um lado pra outro sem pedir ajuda nem água. Acatava todas as ordens de dona Sônia com a prontidão de um sargento, e as executava com a meticulosidade fria de um assassino em série.
Era tudo que a dona Sônia queria.
Agora, após a aposentadoria de Neuza, ali estava ela. Há mais de duas semanas sem alguém que pudesse servir como seu aliado na guerra contra a imundície que assolava sua casa.
Até tentou recrutar o doutor Otávio para ajudá-la no sábado, mas o doutor Otávio desertara. Argumentou que trabalhava o dia inteiro de segunda a sexta e que merecia descansar no sábado pela manhã antes de ir ao clube.
Dona Sônia pensou em contra-argumentar que ela também trabalhava de segunda a sexta, e ainda no sábado e no domingo, uma vez que a comida que ele comia e as roupas limpas que ele usava não brotavam de Nárnia durante os finais de semana. Mas achou por bem abreviar o conflito. Avisou-lhe, porém, que iria procurar uma nova faxineira para aparecer uma vez por semana.
E que a nova pessoa certamente cobraria mais caro do que Neuza, a antiga.
O doutor Otávio, também interessado em abreviar o conflito, assentiu com a cabeça após fazer um rápido cálculo de orçamento mental. Impôs um limite razoável ao acréscimo dos honorários da nova faxineira, e entregou-se novamente ao prazer da leitura do jornal matutino.
Dona Sônia foi para o telefone em busca de agências que pudessem lhe indicar uma nova faxineira.
Penou.
Dona Sônia era muito exigente, referências que não fossem perfeitas não lhe serviam, ainda havia a questão do dinheiro, pois dona Sônia não era uma perdulária.
Após meia dúzia de ligações para agências, dona Sônia partiu para o computador onde examinou referências enviadas por e-mail.
Não gostou de nenhuma.
Ou cobravam muito caro, ou não tinham referências que oferecessem suporte à confiança inestimável de dona Sônia.
Resolveu trabalhar à moda antiga.
Saiu, conversou com pessoas, colocou anúncio no jornal, entrevistou candidatas... Nada funcionava, e os dias seguiam passando e a sujeira ia vencendo a guerra contra dona Sônia. Até que, na quinta-feira, ela apareceu.
Shirley.
No primeiro momento dona Sônia chegou a suspirar de desgosto, tamanha foi sua insatisfação com a moça.
Muito jovem. Não tinha o físico de sumotori que tornara Neuza tão útil, era baixinha, magra, apesar das pernas musculosas, dificilmente poderia erguer o sofá com uma das mãos e passar o aspirador com a outra como Neuza fazia.
Parecia fraquinha a Shirley.
Provavelmente, se dona Sônia não estivesse sem candidatas para entrevistar e se já não estivesse começando a ser tomada pelo pânico de ver poeira sobre algumas peças da mobília, ela nem sequer teria entrevistado a Shirley, entretanto, como as referências que a moça apresentou eram excelentes, como o preço que ela cobrava era bastante aceitável, e como ela tinha toda a documentação, dona Sônia resolveu experimentar, nem que fosse como paliativo até encontrar uma faxineira de verdade.
Porém, surpresa:
Gostou do resultado.
Mais que isso, achou excelente.
Shirley era silenciosa, trabalhava bem e rápido, mas não com pressa. Retirava pó com dedicação e meticulosidade de iluminista turco, arredava a mobília para alcançar os cantos mais obscuros com o aspirador de pó, lavava e escovava os ladrilhos da área de serviço com água e sabão, colocava roupas na lavadora com amaciante na medida certa, lustrava os móveis, e tirava manchas de mofo dos cantos do teto do banheiro com um escovão.
Dona Sônia se encantou.
Imediatamente acertou a faxina semanal com a Shirley, todo o sábado pela manhã. A casa ficaria um brinco.
Tudo acertado, avisou o doutor Otávio que encontrara uma nova moça para a limpeza. O doutor Otávio fez um indefinido ruído de concordância.
No sábado pela manhã, Shirley chegou cedíssimo.
Sete e dois, e pediu desculpas pelo atraso.
Dona Sônia amou. Apenas dois minutos atrasada e se desculpando!
Pediu licença e mudou de roupa no banheiro. Trocou a saia preta curta e a blusa regata por uma calça de abrigo de mescla, estilo Rocky Balboa e um camisetão com a efígie desbocada da Hello Kitty, e as sandálias de salto por tênis confortáveis. Prendeu os longos cabelos encaracolados em um rabo de cavalo no alto da cabeça e, munida de balde e escova, pôs-se a trabalhar.
Em um primeiro momento, o doutor Otávio nem percebeu a moça. Deu-lhe bom-dia algo sonolento, e disse "prazer" sem muito alarde quando a dona Sônia apresentou-os formalmente. Tomou um café da manhã rápido e foi para a sala ler o seu jornal.
TV ligada sem volume na Globo News, jornal na mão, o doutor Otávio, tranquilo quando assomou a Shirley.
Pediu licença, e começou a retirar os livros e revistas que estavam na parte de baixo da mesinha de centro, em seguida os bibelôs da dona Sônia, que estavam na parte de cima, colocou tudo na poltrona contígua, e posicionou-se sobre os joelhos. Apanhou um pano, um frasco de lustra-móveis, e começou a passar na superfície da mesa.
O doutor Otávio lia o jornal, mas, casualmente, desviou os olhos da folha repleta de letras. Foi quando viu, com o rabo dos olhos, pouco abaixo da curva das costas flexíveis de Shirley... Uma tatuagem, um desenho tribal qualquer, desses tão em moda entre as moças daquela idade, e, logo abaixo, um ínfimo "T" de tecido vermelho que denunciava a calcinha fio-dental que Shirley envergava sob as largas calças de abrigo.
O doutor Otávio continuou segurando o jornal na altura dos olhos, mas seria incapaz de dizer sobre o que se tratava a página que tinha diante de si.
Tinha olhos apenas para o corpo esguio da moça que serpenteava a sua frente, resfolegando, assoprando para longe dos olhos os fios que teimavam em escapar de seu rabo de cavalo, naquele balé de movimentos vigorosos e ritmados que davam brilho à mesinha e excitavam o velho doutor. Foi a semente da tragédia.
O doutor Otávio, vil como os homens costumam ser, foi seduzido pelo corpo atlético e miúdo da jovem.
Passou a cortejá-la em segredo, e, eventualmente, logrou sucesso em seu intento. Que jovem inexperiente e humilde não seria seduzida pela astúcia e malícia de um homem mais velho?
No início, o doutor Otávio oferecia à Shirley uma carona até a parada de ônibus. Dona Sônia não tinha razão para desconfiar, era mesmo o caminho que Otávio fazia para ir ao clube jogar paddle com os seus amigos, e Shirley e ele saíam praticamente no mesmo horário. Era nesse interím, após Shirley terminar a faxina e antes de Otávio se juntar aos outros velhos sem-vergonha do clube, que os dois se entregavam a devassidão de sua relação proibida.
Levou tempo para dona Sônia desconfiar de algo.
Ela não tinha razões para tanto, e mesmo que tivesse, ainda estava extasiada com a qualidade da faxina de Shirley.
Foi apenas vários meses depois de Shirley ter começado a trabalhar que dona Sônia encontrou um embrulho oculto no porta-malas do carro do doutor Otávio.
Foi mero acaso.
Dona Sônia procurara por um alvejante de limão que pedira ao doutor, e ao não recebê-lo, achou que Otávio poderia ter esquecido no porta-malas ao retirar as demais compras.
O embrulho misterioso continha uma caixa de bombons, um perfume e uma lasciva calcinha fio-dental que não teria servido na dona Sônia nem quando ela tinha trinta anos.
Ela chegou a pensar em agarrar a tralha e fazer um escândalo com Otávio.
Mas refreou-se.
Apanhou seu telefone celular e fotografou os itens no porta-malas, engoliu em seco, e seguiu com seus afazeres.
No sábado seguinte, porém, reconheceu o cheiro do perfume em Shirley quando esta chegou para o trabalho.
E, no mesmo dia, reconheceu a sumária peça de roupa íntima quando Shirley se agachou para arredar o sofá da sala.
Chamou a moça e expôs à ela a foto dos itens no porta-malas do carro do doutor. Após uma pequena insistência, a moça, em prantos, assentiu que sim. Que estava tendo um caso com o doutor.
Se desculpou muito.
Disse que não queria, mas que fora seduzida. Lamentou imensamente, disse que se a dona Sônia quisesse ela iria embora naquele momento e jamais voltaria. Todavia dona Sônia, firme como uma rocha, disse que falariam sobre ela depois. Que naquele momento, tinham que resolver o caso do doutor Otávio.
Foram até o crápula, onde dona Sônia revelou saber de tudo. Em um primeiro momento o doutor negou, no segundo tentou culpar Shirley, a seguir, voltou a negar, até, finalmente, assumir, cabisbaixo, o adultério.
-Desculpa, Sônia. Me desculpa. Eu não sei o que deu em mim, fui dominado pelos meus instintos mais baixos. Mas me dê outra chance. Nós podemos recomeçar, tentar de novo, e arranjamos alguma coisa pra Shirley, pra ela não ficar desamparada...
Dona Sônia não chegou nem a piscar:
-Não Otávio. Tu vai embora, eu quero o divórcio.
O doutor Otávio ainda tentou argumentar:
-Quê? Mas meu bem-
-Não tem "meu bem", acabou. Tu vai arrumar as tuas coisas e encaminhar a papelada.
Dona Sônia estava irredutível.
O doutor não discutiu. Arrumou as malas em silêncio, apanhou sua pasta e seguiu em direção à porta da rua. No caminho, olhou para dona Sônia, que devolveu-lhe um olhar gélido. Olhou, então, para Shirley:
-Olha, Shirley... Me desculpe, por tudo, sim? Eu vou falar com os meus amigos e ver se te arrumo um trabalho...
-Não precisa. -Disse dona Sônia, firme. -A Shirley vai continuar trabalhando aqui.
O doutor Otávio não entendeu.
-Tu vai perdoar ela, Sônia, mas não a mim?
-É. -Admitiu dona Sônia, fechando a porta com o doutor do lado de fora.
A verdade é que a dona Sônia tinha grandeza suficiente em seu coração pra perdoar tanto o doutor Otávio quanto a Shirley, mas, para fazer isso, teria que mandar a Shirley embora. Foi vendo a limpeza do chão da cozinha que dona Sônia percebeu que não poderia, em sã consciência, deixar a Shirley partir.
Um marido advogado de meia-idade chato, preguiçoso e de caráter duvidoso se arruma chutando qualquer macega, mas uma faxineira como a Shirley...
Aquilo era matéria raríssima.
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Eu acho que as mulheres deveriam se unir e fazer um protesto contra essas calças malditas que mostram o fio dental.
ResponderExcluirMuito boa a história.Você escreve de um jeito que me deixa envolvida mesmo. Estava eu concentrada, lendo, ai quando chegou a parte de quando ele viu a tatuagem dela, soltei um -putz, tsc,tsc,tsc e balancei negativamente a cabeça. hahahaha até me perguntaram - que que foi laís, que que é putz ? hahahahaha, muito legal :)
Um dia desses ainda falei mal dessas calças pra uma amiga minha. Tava lembrando do tempo em que precisava ser íntimo pra ver a roupa de baixo de alguém, hoje em dia, é só ir ao super-mercado pra ver a calcinha de dezenas de mulheres desavisadas.
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