Bem vindos a casa do Capita. O pequeno lar virtual de um nerd à moda antiga onde se fala de cinema, de quadrinhos, literatura, videogames, RPG (E não me refiro a reeducação postural geral.) e até de coisas que não importam nem um pouco. Aproveite o passeio.
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sábado, 20 de novembro de 2010
Parlamento
A Letícia chegou ao local marcado por almoço com o Sérgio carregando a bolsa, o casaco e o guarda-chuva. Parecia esbaforida.
Deu um beijo rápido nele, daqueles em que um só cola os lábios nos do outro e faz o barulho de estalo ou um 'uwha".
Ajeitou as suas coisas na outra cadeira, sentou, tirou os óculos da bolsa e encarou Sérgio. Quando abriu a boca pra falar, a figura do garçom assomou a seu lado. Queria saber se já tinham escolhido. A Letícia, impaciente como ela só, ainda começou a articular que recém havia chegado, que mal sentara, e que, pra piorar, não tinha nem recebido um cardápio de modo que, só podia ter escolhido se fosse uma discípula de Charles Xavier ou se fosse uma freguês assídua do lugar o que, com aquele tipo de atendimento, era difícil de acontecer.
Mas Sérgio se antecipou. Disse:
-Ainda não vimos o cardápio. Pode trazer um pra nós, por favor?
O garçom aquiesceu com um aceno de cabeça e saiu, trazendo o cardápio de volta segundos depois.
-Quando escolherem é só chamar.
-Obrigado.
Sérgio era assim. Um poço de educação. Era raro vê-lo pedir algo sem um "por favor" antes, e receber sem um "obrigado" depois. Parece básico, claro. Todas as pessoas educadas dizem "obrigado" e " por favor". São palavras que abrem quase tantas portas quanto "puxe" e "empurre", mas Sérgio... Bom, Sérgio levava essa coisa de educação e polidez quase a sério demais. Era calmo, também. Sereno feito um monge zen-budista, Letícia jamais o vira ter qualquer tipo de explosão. O mais perto disso que Sérgio chegava era ficar rabugento de vez em quando, ainda assim, era extremamente educado, mesmo estando mal humorado.
Era sensível, também.
Chorava vendo filmes, ás vezes ouvindo músicas. E raramente verbalizava seus sentimentos. De vez em quando chegava a dar nos nervos da Letícia, que era, sim, muito educada, mas que também era despojada, destemida e briguenta em várias ocasiões. Era o tipo de moça que fazia as coisas acontecerem sem esperar por ninguém. Sua aparência e físico refletiam sua personalidade.
Era atlética, alta, com cabelos castanhos claros bem lisos quase sempre presos em um prático rabo de cavalo, usava roupas confortáveis e fazia esportes desde a adolescência, todo esse arsenal de características e atividades se aliavam para formar a persona de Letícia, que, em muitos aspectos, era o extremo oposto de Sérgio.
Ela, um exemplo vivo de pró-atividade e ação, e Sérgio, um tranquilo seguidor da reação, e olhe lá.
Ainda assim, fosse pelo que fosse, Letícia e Sérgio namoravam já há algum tempo, e davam-se bem, obrigado.
Tinham um relacionamento adulto, baseado em confiança e diálogo.
Se algo não estivesse funcionando, se não estivesse perfeito para ambos, eles sentavam, conversavam, e resolviam, era o que Sérgio batizara de parlamento.
Acontecera naquele final de semana, a Letícia chamou o Sérgio, sentaram, e ela disse a ele que não gostava do fato de a ex-namorada dele ficar lhe mandando recados via Orkut o tempo inteiro. Ela sabia que ele e ela já não tinham nada há anos, sabia que ele não sentia nada por ela, mas aquilo a deixava desconfortável, e ela gostaria muito que acabasse.
Comedido como sempre, Sérgio argumentou que não podia simplesmente mandar a guria parar de deixar scraps pra ele de uma hora pra outra, que seria falta de educação, mas que responderia aos scraps apenas se eles contivessem perguntas, o que, provavelmente, a desencorajaria de manter a correspondência. Perguntou se servia para Letícia, ela confirmou, e voilá, estavam de volta às boas de onde, na verdade, jamais haviam saído.
A Letícia sabia que, ás vezes, era meio exigente em excesso, sabia que devia ser difícil pro Sérgio atender às demandas dela. Mas, ao mesmo tempo, ela sabia como era difícil pra ela lidar indiretamente com algo que a incomodava.
Fosse anos antes, e Letícia teria ido pessoalmente até a tal da ex e dito à ela, ipsis litteris que desaparecesse da vida do Sérgio pois ele já estava comprometido com outra, e que ela já tivera a sua chance e a havia desperdiçado. O diálogo, talvez, até contivesse algumas ameaças de violência física.
Mas isso foi antes.
Antes de Letícia amadurecer e aprender a contemporizar algumas coisas. Poucas, é verdade, mas melhor que nada. Fora justamente pensando nisso, no fato de contemporizar pouco, que Letícia se deu conta que, nos pouco menos de dezoito meses de namoro com Sérgio, e desde o advento das conversas para resolução, Sérgio jamais chamara Letícia para conversar e demandar qualquer mudança.
Nunca.
Uma outra pessoa poderia iludir-se supondo que isso era devido ao fato de não dar nenhuma razão para que o parceiro demandasse qualquer mudança. Não era o caso de Letícia. Briguenta e despojada, sim, iludida, não. Letícia possuía o dom da auto-crítica, sabia que não era perfeita, aceitava isso, prova irrefutável é que lutava constantemente para não ceder ao próprio comportamento explosivo. Lutava constantemente contra o próprio temperamento querendo crescer enquanto fosse possível, melhorar a si própria e ao ambiente onde vivia. E isso incluía Sérgio, com quem se importava barbaridade.
Foi essa a razão de ela chamá-lo para almoçar naquela segunda-feira, quando geralmente se viam apenas no fim do dia, após o trabalho e a faculdade, na casa de um dos dois.
Quando o garçom se afastou, Sérgio se pôs a ler o cardápio, mas Letícia o interrompeu:
-Tu não quer saber por que eu te chamei pra almoçar?
-Não é por que tu tava com saudades de mim, eu, com saudades de ti, e a gente podia comer juntos e depois ficar abraçadinhos ali na Praça da Matriz até ter que voltar por trabalho?
-Não, Sérgio. Eu preciso te perguntar uma coisa.
-Graham Bell deve estar se revirando na cova após ouvir isso e perceber que tu ignora a maior invenção dele.
-Não, o que eu quero perguntar não podia ser pelo telefone. Nem podia esperar até de noite.
-Credo, que gravíssimo. Tá bem, manda, então.
-Por que tu nunca me chama pra conversar?
-Não sei se entendi bem essa pergunta...
-As nossas conversas. O nosso parlamento. Por que tu nunca me pede nada? Pra mudar nada?
-Sei lá... Eu tô satisfeito com a nossa relação, Lê. Não quero mudar nada nela...
-Nada? Nunca? Nada te incomoda no meu comportamento? No fato de eu ter um monte de amigos homens? De adorar sair de noite? De sair sozinha com meus amigos, que não são teus amigos, e chegar tarde em casa?
-Não me incomodava, não, mas agora, contigo colocando as coisas desse modo...
-Sério?
-Não, boba. Eu confio em ti. Eu sei que se, em algum momento, algo na nossa relação te incomodar a ponto de tu pensar em obter algo que falta entre a gente fora, tu vai falar comigo antes.
-Então nada te incomoda? Nunca? Pra ti a nossa relação é perfeita?
-Não... Eu te amo. Amo o que a gente têm. Mas não acho que seja perfeito. Sei que não é. Mas supre todas as minhas necessidades. Me faz feliz. A ponto de eu preferir relevar algumas pequenas coisas que eventualmente me desagradam, como tu achar que o Daniel Craig é o melhor Bond quando todo mundo sabe que ele é um Jason Bourne disfarçado. Como tu gostar daquela barulheira medonha do Iron Maiden e Black Sabbath e não gostar dos Beatles, de Oasis e Coldplay. Como tu sempre fazer um comentário mordaz quando eu estou assistindo Peixe Grande ou Duas Vidas e chorando de novo, e, de vez em quando tu ser ríspida com as pessoas. Como tu secar descaradamente o meu time em todos os jogos e demandar que eu te leve ao estádio pra ver os jogos do teu time. Como tu cobrir os olhos e os ouvidos nas partes mais assustadoras daqueles filmes idiotas de terror que tu volta e meia aluga, ou o fato de tu jamais ter aceitado se vestir de Princesa Leia na versão escrava do Jabba pra ir a uma festa a fantasia comigo... Tudo isso me incomoda, sim. Mas são pequenas coisas, e eu, que sou um incréu nato, um pessimista de carteirinha, acho que, se essas são as partes ruins do que nós temos, se são o preço a pagar pelos bons momentos, então é só me mostrar onde eu assino, pois eu estou mais que satisfeito com a relação custo-benefício.
A Letícia não disse nada. Tinha os olhos marejados, mas não deixou escorrer nenhuma lágrima. Olhou pra cima até os olhos secarem. O garçom se aproximou de novo:
-Querem pedir?
-Quando a gente decidir o que quer tu vai ser o primeiro a saber.- Respondeu Letícia, ríspida.
-Obrigado.- Disse Sérgio enquanto o garçom se afastava.
Ele olhou pra Letícia e disse baixinho:
-Megera.
-Bichinha.- Ela respondeu.
Deram as mãos por cima da mesa e se puseram a ler o cardápio.
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Acompanhando tuas histórias, quase chego a me convencer de que os opostos se atraem, você fala de um jeitinho que deixa tudo equilibrado sabe ? Bom acreditar nisso.
ResponderExcluirAhhhhhhhh, e Craig é sim um bom 007. Elegante, pelo menos.
É senso de auto-preservação, Laís. Se eu não acreditar que opostos podem se atrair, acho que morro sozinho.
ResponderExcluirE eu gosto do Craig e dos filmes dele, mas ele não é James Bond, James Bond é o Sean Connery, e para por aí.