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terça-feira, 27 de setembro de 2011

Honestidade


A Sônia entrou em casa sem fazer barulho. Eram nove, nove e meia da noite. Ela largou a bolsa sobre a mesa, as chaves no chaveiro perto de um abajour que fora presente de sua mãe, e rumou para o quarto. O Flávio estava lá, sentado na beira da cama, com a luz apagada e a TV desligada.
-Oi, Sô. - Ele disse, sem se mexer antes que ela acendesse a luz.
Ela estremeceu brevemente, como só as pessoas de consciência manchada estremecem.
-Que horror, Flávio... Quase me mata de susto. Tá fazendo o quê aí no escuro? - Perguntou em tom de reprimenda enquanto apertava o botão do interruptor inundando instantaneamente o quarto com a luz branca da lâmpada de cem watts.
O Flávio, ainda sentado, olhava pra janela. Falou casualmente:
-Estava só me preparando...
-Te preparando pra quê, criatura? - Perguntou a Sônia enquanto andava em direção à janela.
-Pra quando tu terminar tudo comigo. - Disse o Fávio.
A Sônia não entendeu imediatamente. Só ao olhar pro Flávio pra perguntar "como é que é?" foi que viu a bolsa de viagem preta e grande aos pés dele.
Estacou no caminho até a janela, onde apanharia sua toalha, e o encarou. Disparou o:
-Como é que é?
Flávio olhava pras próprias mãos, juntas sob suas pernas:
-Tu vai terminar comigo, Sô.
-Não, não vou. - Ela retrucou com a voz cheia de indignação.
-Vai. - Respondeu o Flávio. - Vai porque eu tô te pedindo. Vai, porque tu já não gosta mais de mim. Vai porque, não importa o que tu diga ou faça, esse vai ser o teu segundo banho em um curto intervalo de tempo. Então, me faz esse favor, Sônia... Termina comigo.
A Sônia o encarou brevemente. Medindo que tipo de blefe havia ali.
-Do que tu tá falando?
-Ah, Sônia... Por favor. Eu sou cheio de defeitos, vai, mas idiota eu não sou. Eu não sou, mesmo. Vai. Termina comigo.
A Sônia sentou ao lado dele na cama.
-Eu não quero terminar contigo...
-Mas também não quer mais ficar comigo. - Replicou o Flávio. -Não o suficiente.
-Eu quero! - Ela treplicou.
-Não... Tu não me respeita mais, Sô... E esse é o momento ideal pra terminar com tudo.
Ela olhou pra ele com sincera tristeza nos olhos. Ele sorriu:
-OK... O momento ideal seria um pouco antes de não haver mais respeito, mas enfim...
A Sônia começou a chorar. Lágrimas lhe desciam pelo rosto. Ela ergueu os olhos e perguntou ao Flávio:
-Tu me desculpa?
Ele segurou a mão dela e suspirou:
-Não, Sô... Eu não te desculpo. Tu devia ser a última mulher da minha vida... Era contigo que eu devia ser feliz pra sempre, era do teu lado que eu devia envelhecer. Agora... - Ele riu. - Agora eu vou ter que passar de novo por todo o pesadelo de um começo de relação, vou ter que passar meses tentando ter certeza de que uma nova pessoa conhece todos os meus defeitos antes de me entregar a um relacionamento... E tudo isso sem garantia de que vá dar certo pois tu abalou consideravelmente a minha confiança nesse sistema... Então, não... Eu não te desculpo, lamento.
A Sônia respirou fundo limpando os olhos, na defensiva:
-A culpa não é só minha.
-Não... - Suspirou o Flávio. - É toda minha, na verdade.
Havia alguma coisa na voz dele, uma entonação de sarcasmo, talvez... Mas Sônia não quis manter a discussão:
-Ainda podemos ser amigos?
O Flávio mexeu brevemente no zíper da sua sacola de viagem enquanto fazia um "hmmmmm" de quem pensa:
-Não.... Nós não vamos ser amigos, Sô. Nós não vamos mais conversar, nem nos encontrarmos pra almoçar... Lamento. Eu sou muito mais rancoroso que os teus ex-namorados... Os teus outros, ex-namorados. A gente vai se cumprimentar quando nos encontrarmos na rua, claro, mas é mais provável que... Sabe? A gente nem se veja mais.
A Sônia o encarou brevemente. Sua decepção parecia virar raiva:
-Então é isso. Tu tá todo tranquilo com isso tudo, mas não quer mais falar comigo?
-Quem disse que eu tô tranquilo? - Perguntou o Flávio. -Eu tô arrasado. Cheguei a flertar com a ideia de quebrar o apartamento inteiro, enforcar o teu gato, colocar o teu coelho em uma panela de água fervendo, e te amarrar com silver tape numa cadeira enquanto cortava a tua orelha com uma navalha e te perguntava onde é que tava todo aquele amor. Mas de quê adiantaria, Sô? É tudo tão óbvio... Deixemos assim.
A Sônia bufou:
-E a gente...? E tudo o que a gente tinha imaginado, e as coisas que iríamos fazer?
-Vão ficar pelo caminho. Não vão se tornar realidade. Acontece o tempo inteiro, Sô. Especialmente em casos como esse. - O Flávio respondeu enquanto se levantava.
-E é o melhor que a gente podia fazer? - Perguntou ela, de cabeça baixa.
-Não. - Respondeu o Flávio. -O melhor teria sido nós continuarmos honestos um para com o outro...
Ele ficou parado na frente dela. Até que ela engoliu em seco e disse:
-Flávio... Eu não quero mais ficar contigo... Acho que a gente devia terminar.
Ele disse:
-OK.
E saiu. Se encontraram uma vez, perto do shopping, ela acenou, e ele correspondeu com um movimento de cabeça. Não pararam pra conversar.

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