Pesquisar este blog

quarta-feira, 24 de julho de 2013

Paciência


Vinham andando pela rua. Ela, encasacada até a medula, dois blusões, jaqueta, casaco, cachecol, luvas, gorro, confessou, ainda, que sob as calças jeans usava uma meia-calça de náilon e outra de lã, e tinha dois pares de meias nos pés sob as botas Quéchua forradas com pele. Ele estava hiper agasalhado para seu próprio padrão. Camiseta de mangas curtas, agasalho de moletom e casaco. Usava, também um cachecol e um par de luvas.
Ela praguejava:
-Que horror... Que horror, que horror, que horror... Esse frio tá demais... Tá machucando meu rosto...
Ele riu:
-O Ned Stark vinha avisando que o Inverno estava pra chegar, mas ninguém ouve ele nessa porra...
-Que coisa horrível... Não deve ser tão frio assim nem pra lá da Muralha...
-Larga mão de ser fresca, alemoa... Tu morou na Argentina, viajou pra Uruguai, chile, nesses lugares todos até nevar, neva.
-Mas é diferente... O frio não se entranha no teu corpo... Parece que eu tô congelando de dentro pra fora...
Ele riu de novo.
-É a umidade. A umidade, e esse vento dão essa sensação de desconforto térmico. A temperatura nem tá tão baixa... - Olhou o termômetro de rua, perto do DAER. -Ó... Sete graus. É frio, mas não é esse horror todo, também...
-É um horror, sim... É horrível...
-Faz o seguinte, Didi... Quando o frio começar a te incomodar, quando tu começar a pensar que tá gelado demais, lembra de fevereiro. Pensa nos 45 graus à sombra numa terça-feira de tarde no Centro de Porto Alegre... Toda a vez que eu penso nisso o frio fica gostoso. Até esse de hoje, que tá fazendo doer as minhas mãos...
Ela enlaçou o braço dele, apertando-se ao seu encontro:
-Dá um pouco de calor humano, Ned... Putz. Tá muito frio, credo, credo, credo...
Ele esfregou o braço dela com a mão enluvada e deu-lhe um beijo na testa. Ela olhou pra ele erguendo as sobrancelhas:
-Tu é um bicho muito tranquilo, cara...
-Sou? - Ele perguntou.
-Muito... Nossa. Queria ter metade da tua paciência...
-Eu não sou tão paciente assim...
-Não... Mas é que... Sei lá... Tu não reclama... Tu não choraminga...
-Eu choramingo um pouco, vá...
-Muito pouco. Ás vezes eu tô me queixando, que nem agora, e aí tu vem, me dá uma letrinha dessas e eu fico até com vergonha de ser tão resmungona...
-Não é minha intenção te dar letrinha e nem te fazer sentir resmungona...
-Eu sei... Mas eu sou... Eu sou inquieta, impaciente, e quando as coisas me incomodam e não tem como dar jeito eu reclamo. Por isso eu queria ser mais tranquila. Mais paciente, que nem tu. Como tu ficou tão paciente? Teu pai e tua mãe não são assim...
-Ah... Olha o meu tamanho... Imagina se eu fosse ficar dando achaque o tempo inteiro que coisa mais feia? Um barbado do meu tamanho, mais de cem quilos, reclamando da vida...
Ela revirou os olhos e balançou a cabeça numa careta.
-Nhé, nhé, nhé. "Ai, como eu sou grande, ai como eu sou forte"...
Ele riu de novo. Continuou:
-Mas não é verdade? É diferente uma moça ter chilique. É um lance feminino. Totalmente aceitável. Resmungar um pouco, dar um pitizinho de vez em quando... Pra homem não fica bem. E não quer dizer que as coisas não me incomodem, mas eu não preciso verbalizar. Na verdade, quando eu verbalizo, geralmente me incomodam mais, então prefiro ficar na minha...
-Porque desabafar também é coisa de mulherzinha?
-Sim...
-Seu machista.
Os dois riram. Ela tomou fôlego conforme chegavam perto do shopping. Passou a mão no braço dele:
-Tu parece bem...
-Eu tô. Tirando esse resfriado...
-Tu tá sempre resfriado...
Ele sorriu.
-Já me disseram isso...
Chegaram em frente ao shopping. Ele perguntou:
-Não quer ir comigo? Eu tenho que pagar duas continhas e depois vou jantar.
-Não... Obrigado mas não posso. Tenho que ir pra casa. Tô com dor de cabeça, garganta doendo... tenho que tomar um banho e me enfiar debaixo das cobertas.
-Até quando tu vai trabalhar até tarde?
-Meu chefe volta dia trinta.
-Entendi... Tá bom, então. Vai pra debaixo das cobertas, Ned...
Ele a abraçou, deu-lhe um beijo estalado na bochecha. Disse:
-Beijo, Alemoa... Qualquer coisa, me liga.
Ela o encarou com um olho fechado...
-Tu parece bem...
Ele riu.
-Eu tô bem.
Acenou pra ela e seguiu seu rumo. Andou um pouco, olhou pro lado, e pensou:
"Podia estar melhor... Mas tudo bem... Eu sou paciente..."

Nenhum comentário:

Postar um comentário