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quarta-feira, 7 de outubro de 2015
Mudança
Cassiano, Jeremias, Celso e Fábio sentados ao redor da mesa. Já estavam bastante bêbados, naquele ponto em que começam as reminiscências de juventude. Mas aquele era um ambiente perigoso para reminiscências.
Os quatro se conheciam desde os treze anos de idade. Haviam estudado juntos, jogado bola na calçada juntos, tido as primeiras namoradas mais ou menos ao mesmo tempo, os primeiros empregos, as primeiras transas, as primeiras brigas... Em suma, haviam crescido juntos e sem segredos.
A vidas tentou separá-los mas não conseguiu.
O Cassiano chegou a morar três anos na Bahia, mas além de passar os verões no sul, ainda chamava os amigos para passarem férias de meio de ano no calor do nordeste, e após ser demitido do emprego na boa terra, voltou ao velho pago.
Celso morou um ano na Austrália, e após se cansar de não entender o inglês teórico do país dos cangurus, também voltou pra casa após juntar uma graninha para abrir um negócio.
Jeremias se casou com uma moça linda chamada Tatiana que tinha de implicante o que tinha de bonita, e que odiava Celso, Fábio e Cassiano, e fez de tudo para afastar Jeremias dos amigos.
Acabou que Jeremias se separou dela, e festejou a liberdade numa noitada com Celso, Cassiano e Fábio num puteiro de luxo.
Os quatro Cavaleiros do Apocalipse eram inseparáveis.
Mas o tempo ia passando e eles se tornavam mais e mais diferentes. As vivências se acumulavam e as opiniões se tornavam menos semelhantes. Ideologias políticas, inclinações religiosas, aspirações... Alguns, como Celso, se tornavam mais espiritualizados, o Jeremias foi de extrema esquerda, de agitar bandeira do PCO e usar camiseta do Che Guevara, à mais absoluta direita, com adesivo do PSDB no carro e assinatura da Veja, o Cassiano apavorou os outros três assumindo que após anos como assador oficial dos churrascos da galera, se tornara vegetariano, e pensava em aderir ao veganismo no médio prazo.
O único que parecia não ter mudado era o Fábio.
O Fábio sempre fora meio rabugento. A idade acentuara um pouco essa faceta, mas todos os outros já haviam se acostumado e se tornado mais resistentes. Continuava sendo um ateu aberto à ideia de religião, um centro-esquerda moderado, e um carnívoro irredutível. Os outros pensavam que, se o Fábio fosse fazer alguma revelação bombástica, de uma mudança total em sua personalidade, assumiria-se veado.
Os outros não diziam isso pelo fato de o Fábio ser delicado ou sensível. Não era.
Era porque, historicamente, o Fábio sempre andava com mulheres bonitas.
Muito bonitas.
Muito bonitas, mesmo. Muito além da sua liga, infinitamente mais areia que o seu modesto caminhãozinho poderia carregar.
Considerando a estampa das acompanhantes do Fábio, que preferia estar sozinho do que com uma mulher que não fosse de parar o trânsito, os demais acreditavam que, em algum momento, o Fábio diria à mesa que gostava de piroca. Que curtia travesti, que fazia amor com o bumbum, que era jóquei de cobra... Alguma veadagem do tipo.
Era justamente o assunto da roda naquela noite. Todos vagamente embriagados, começaram a fazer reminiscências lembrando, justamente, das mulheres do Fábio.
-E a Daniele? - Perguntou o Cassiano, fazendo cara de sofrimento.
-Benzadeus... - Assentiu o Jeremias. -Loira, quase um e oitenta com, o quê? Uns catorze anos?
-Quinze. - Corrigiu o Fábio, com um sorriso. -Era mais alta que eu. Aquela deve ser modelo hoje em dia. Se não for, tá perdendo dinheiro.
-Era linda. - Aquiesceu o Celso. -Loirona, olho azul... Tinha um narigão mas ficava bem nela.
-E a Tatiane? - Disse o Jeremias. -Linda demais. Morenona, cabelão preto até o meio das costas, coberta de sarda, aquela bunda...
-Ah, a bunda... - Concordaram Fábio e Cassiano em uníssono.
-Que bunda era aquela... Me diz que tu comeu aquela bunda, Fabão... - Implorou Celso.
-Comi. - Admitiu o Fábio. -Menos do que eu gostaria, é verdade, mas comi.
-E a Sandra? - Lembrou o Celso. -Que peitos eram aqueles?
-Rica comissão de frente. - Concordou Jeremias, baixando os cantos da boca e balançando a cabeça positivamente.
-Não me lembro dessa... - Admitiu o Cassiano.
-Era uma alta, cabelo castanho-claro lisinho. Sorriso lindo... - Acudiu o Fábio.
-Cada teta era uma bola de futsal! - Rugiu o Celso, gesticulando bolas de futsal na altura do próprio peito.
-O Fábio comeu pouco mas comeu bem... - Disse o Jeremias.
-É. Só filé... Caviar... Só coisa fina. - Assentiu o Celso.
-Fabão, porque é que tu namorou tão pouco? Tu teve meia-dúzia de namorada na vida... Pra pegar as minas que tu pegou, tu tinha que ter as manhas. Porque tu não caçou mais? Se eu conseguisse pegar as deusas que tu pega, eu ia estar com o pau em carne-viva de tanto foder. - Reclamou o Cassiano.
-Mas não era assim... - Justificou o Fábio, afastando a ideia com a mão. -Cada uma dessas gurias... Quando eu namorei com elas, foi achando que ela era a última namorada que eu teria. Que eu e ela iríamos nos casar... Ter filhos, morar juntos, envelhecer um do lado do outro...
-É agora, é agora... - Cochichou o Celso, pro Jeremias, achando que era a hora em que o Fábio sairia do armário. Mas não. O Fabão encerrou dizendo:
-E foram oito namoradas. Além disso eu fiz minha dose de sexo casual, também... Nenhum dragão nesse currículo.
-Puta merda... - Disse o Cassiano. -Falando em dragão... Lembram da Dirléia?
-Caralho... - Disse o Celso virando a cara.
-Putz... - Fez o Jeremias, fechando um olho.
-Bah... - Grunhiu o Fábio arregalando os olhos.
-Meu... Aquela é provavelmente a mulher mais feia que eu vi na minha vida sem ter nenhum espécie de defeito físico... - Continuou o Cassiano.
-Ela era medonha. - Disse o Jeremias. -Lembra da linha de produtos de beleza que a gente inventou pra ela?
-Helena Frankenstein! - Exclamou o Celso, caindo na gargalhada.
-Ela era a garota propaganda do nosso condomínio Termas do Lago do Tártaro... - Confessou o Fábio, algo envergonhado.
-Sim! Vista de frente pro inferno! - Gargalhou o Cassiano.
-E vocês lembram por quem ela era apaixonada, né? - Disse o Jeremias, apontando maliciosamente o queixo pro Fábio.
Os outros riram. O Cassiano disse:
-Lembram da Sheila? Uma negona muito linda que estudava com a gente...?
-Sim! - Assentiu o Jeremias. -Nossa, bonitaça, e gente fina pra caralho...
-É... - Concordou o Cassiano. -Lembram que ela tentou convencer o Fábio a ficar com a Dirléia na festa de final de ano da escola?
-Sim. O Fábio foi tri se querendo falar com a Sheila quando ela chamou ele no cantinho, achando que ela queria ficar com ele-
-Pra governo de vocês, ela ficou comigo algumas semanas depois, seus merda. - Interrompeu Fábio, bravo.
O Jeremias continuou:
-O que ela te prometeu, Fábio? Vinte reais, um refri e uma pizza brotinho?
Todos riram.
-Foi. Vinte e dois reais, da vaquinha que ela tinha feito entre vocês, retardados e o resto dos retardados da turma, mais um refri, doado pelo Francisco cara de Ovelha e a pizza brotinho doada pelo Negão mini-orelha. - Confirmou Fábio, rindo a contragosto.
-E tu aceitou? - Quis saber o Celso.
-Claro que não. A gratificação era boa, mas os termos do acordo eram péssimos. - Disse Fábio, revoltado.
-E esses termos eram? - Perguntou o Jeremias, curioso.
-Eu devia chegar na Dirléia durante a festa, quando todo mundo estivesse na sala. Devia beijar ela e ficar abraçado da hora em que rolasse o primeiro beijo até o fim do evento, ao qual eu deveria conduzi-la pela mão até a saída do prédio da escola, onde nos despediríamos com um beijo diante de quem quer que estivesse saindo àquela hora. - Explicou Fábio.
-E o que tu respondeu pra Sheila, Fabão? - Perguntou o Cassiano.
-Eu acho que depois de rir um pouco, minhas palavras foram "Tu tá de brincadeira, né?", e quado ela confirmou que era uma proposta autêntica, e me disse o que eu ganharia, eu respondi "nem por um milhão de reais".
Os outros riram mais um pouco, mas o Fábio continuou:
-Hoje em dia... Hoje em dia eu ficava com a Dirléia... Beijava, andava de mãos dadas, comia fácil. E não só de quatro. Chupava ela toda, comia de frente, olhando no olho e beijando na boca. Nem precisava me dar um milhão. Nem me dar vinte pila, uma pizza brotinho e um guaraná. Era só ela me convidar.
O resto da mesa olhou pra ele, admirado. Ele respondeu, ainda que não houvessem verbalizado pergunta:
-A gente vive num mundo de merda, gurizada. Um mundo de merda. Todos apunhalam uns aos outros pelas costas. Todos se sacaneando. É um mundo cão. Um mundo de guerra. De dor. De maldade... Num mundo assim, que tipo de filho da puta tem a desfaçatez de negar um carinho?
Ninguém disse mais nada. Após vários minutos de silêncio, o Cassiano olhou o relógio da parede, fez cara de "já" e disse que ia embora. Os outros também foram.
Ainda que não tivessem tocado mais no assunto, Cassiano, Jeremias e Celso descobriram a revelação do Fábio:
Ele trocara a idealização da beleza pelo pragmatismo.
Ao menos no campo teórico.
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