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sexta-feira, 9 de outubro de 2015

Par Perfeito


A Cibele, alta, morena, cabelão comprido até o meio das costas, olhos castanho-escuros, nariz coberto de sardas, já estava no restaurante há alguns minutos, já tinha até uma limonada suíça à sua frente na mesa, quando a Renata, baixinha, loira, cabelo cortado estilo Channel, olhos azuis, lábios carnudos, assomou, esbaforida com a bolsa em uma das mãos e uma grande sacola na outra, dando-lhe um animado "oi".
Cibele levantou retribuindo a saudação e encarreirando três beijinhos no rosto da amiga, que os devolveu em simultâneo.
A Renata foi sentando e dizendo:
-Ai, guria, me desculpa o atraso, o escritório tava uma loucura e, pra piorar, quando eu vinha vindo passei na frente de uma vitrine e fui obrigada a comprar uma bota nova.
A Cibele riu:
-Não é horrível quando isso acontece? Tive o mesmo problema com essa blusinha tipo "Jane" quando vinha pra cá.
As duas riram.
O garço se aproximou, a Renata pediu uma Coca light. "Light, não zero", explicitou ao garçom. "Se só tiver zero, me traz um guaraná Antárctica.". O garçom concordou, avisando que averiguaria a disponibilidade de Coca light, e não zero.
-Mas então, criatura, - Começou a Renata. -O que tu tens feito?
-Ah, guria... O de sempre, né? Trabalhando, estudando, deixando um rio de suor na academia três vezes por semana... É o que tem pra fazer, né? Mas agora... - Cibele inclinou-se pra frente e baixou a voz. -Eu tava era fingindo que não tinha percebido aquele orangotango no balcão me secando.
A Renata, discretamente, abriu a bolsa tirando um espelhinho, e se pôs a olhar de esguelha procurando pelo tal "orangotango". Não demorou a encontrar. O rapagão era alto, forte, mas com físico estilo "crash bandicoot", malhara desesperadamente peito e braços, e esquecera das pernas. Parecia, de fato, uma espécie de símio, com o tórax da largura de uma porta, braços grossos e bem definidos, e uma cintura de pilão, com pernas que pareciam gravetos. Não era feio, mas o corte de cabelo estilo topete de sertanejo universitário, e o sorriso pretensioso somado àquela figura de quem amava o próprio corpo acima de todas as coisas, francamente, não era atraente pra uma mulher como Renata, que riu.
-Guria... Olha só pra isso... Esse aí se ama, né?
-Sim! Só fica secando mulher em bar porque não existe nenhum brinquedo sexual que envolva espelho! - Concordou Cibele, às gargalhadas.
-"Oi, gato, que tu vai fazer, hoje?". - Disse Renata, fazendo uma voz mais fininha.
-"Hoje é quinta, então peito e costas.". - Respondeu Cibele, fazendo uma voz grave.
As duas caíram na gargalhada. O garçom voltou, trazendo o guaraná Antárctica zero da Renata. Não tinha Coca light. Pediram uma porção de fritas. O fortão do bar viu que as duas estavam rindo dele, fez cara de nojo e deu-lhes as costas amplas.
A Renata disse:
-Eu vejo esses caras e tu sabe que cada vez mais eu sinto menos falta de homem.
-Ah... De vez em quando faz falta, né? - Respondeu a Cibele, fazendo cara de safada.
-Algumas vezes mais do que outras... - Concordou a Renata, rindo.
-Há quanto tempo tu está na seca, Rê? - Quis saber a Cibele.
-Há quanto tempo a gente se conhece? - Devolveu a Renata.
-Capaz! - Exclamou a Cibele, abrindo muito a boca.
-Pra tu ver... - Disse a Renata, fazendo cara de enterro. -Esse tempo, mais um dia. Minha última trepada foi uma noite antes daquela vez.
-Guria... - Disse a Cibele, ainda chocada. -A minha foi na manhã daquele mesmo dia.
-Pára! Sério? - Disse a Renata, rindo de espanto.
-Juro! - Disse a Cibele. -Olha aqui, tô toda arrepiada. - mostrou o braço.
A Renata riu. A Cibele continuou:
-Tô contando. Então, pra mim, são 63 dias, pra ti, sessenta e quatro...
-É... Nossa, né? Uma coincidência em cima da outra... - Disse a Renata, tirando o braço da mesa pro garçom colocar a porção de batatas-fritas.
-Sim... - Reconheceu a Cibele. -A gente se conheceu na "Noite dos Bolos"... Como é que pode... As duas levarem bolo na mesma noite...
-No mesmo bar! - Exclamou a Renata.
-Uma mesa do lado da outra... Muito acaso... - Disse a Cibele.
-Nem me fala... Loucura. Se eu fosse dessas neuróticas ia achar que tava escrito nas estrelas... - Disse a Renata, comendo uma batatinha.
-Eu ia estar lastimando tu não ser homem. - Disse a Cibele, tomando um gole da limonada, entre risos.
-Isso seria o de menos... - Disse Renata, casual, enquanto dava um gole em seu guaraná.
A Cibele parou e ficou olhando pra ela, algo surpresa.
-Sério? - Perguntou.
A Renata levantou os olhos e só então se deu conta.
-Nah... Capaz... Nada a ver, tava brincando... - Disse, sem muita convicção, fazendo caretas.
A Cibele não acreditou.
-Capaz, guria. Me conta como é isso... - Baixou a voz. -Tu já saiu com mulher?
A Renata revirou os olhos como quem desiste.
-Já... - Confirmou.
-Aaaaaah! - Exclamou a Cibele, num grito sussurrado.
A Renata a deteve com um gesto:
-Não... Não é nada demais... Foram poucas vezes...-
-"Poucas"? - Perguntou a Cibele, de boca aberta num sorriso incontido de exultação. -"Poucas", plural? Mais de uma!
-É... - Confirmou a Renata, enrubescendo de vergonha. -Foram algumas...
-Meu Deus! Guria, te olhando eu não dizia! - Falou a Cibele, apanhando outra batata.
-Não dizia o quê? - Perguntou a Renata.
-Que tu era assim... Aventurosa... - Explicou a Cibele, rindo.
As duas riram. A Cibele comeu mais uma batata:
-Sabe... Eu sempre tive curiosidade... - Admitiu.
-É... Dá pra notar. - Confirmou a Renata.
-Dá? - Perguntou a Cibele, escandalizada.
-Total. Uma sapatão reconhece a outra no ato. - Disse a Renata, sem conseguir segurar o riso.
A Cibele, também rindo, jogou-lhe uma batata.
-Mas tu sabe... - Disse a Renata, parando de rir -Que ás vezes eu penso nisso. Eu tive algumas experiências e, sei lá... As vezes em que eu estive com gurias, era um lance muito mais cúmplice... Mais... Sei lá... Com homem os relacionamentos são diferentes... Desiguais...
-Tem sempre alguém tentando te foder. - Disse a Cibele, sem meias palavras.
-Isso! - Concordou a Renata. -De maneira literal e figurada. - Completou.
As duas riram.
-É... - Disse a Cibele, desanimada. -Depois de levar tanta lambada da vida, eu já nem sei mais se existe alguma coisa além dos escrotos que eu encontrei...
-Eu sei como tu te sente. - Disse a Renata. -Também me senti assim, especialmente depois do último pulha.
-Ah... Nem me fala. O meu último era um calhorda, também. Me fez duvidar da decência do ser humano. Dos relacionamentos. Do amor... - Disse a Cibele. Pousando a mão na mesa.
Renata colocou sua mão sobre a da Cibele, que ergueu os olhos, surpresa.
-Talvez... - Arriscou Renata, hesitante. -Talvez o que nos aconteceu tenha sido...
-Sido o quê? - Perguntou Cibele, inclinando o corpo pra frente.
-Destino... - Disse Renata, cumprindo o resto da distância e colando os lábios nos lábios de Cibele.
As duas ficaram assim, lábios colados por alguns instantes, até Cibele abrir levemente a boca, e, como Renata repetiu o gesto, explorar a boca da outra com sua língua, para então estarem as duas envolvidas em um beijo ardente e molhada por cima da mesa.
Detiveram-se ao perceberem que estavam em um lugar pública, e que não era exibicionistas, tinham-se apenas deixado levar por um momento.
Notaram que alguém assomara de maneira sub-reptícia, e estacara junto à mesa. Olharam, primeiro de esguelha, mas logo discerniram a figura esguia, trajando sapatos de bico fino, calças e camisa preta, com um blazer de couro negro por cima, os cabelos esmeradamente despenteados... Disseram em uníssono:
-Viktor?
Era Viktor de SanMartin (pronuncia-se sanmartã), o calhorda, que sorria olhando para as duas.
-Oi, gurias. Podem me chamar de "destino".
-Do que é que tu está falando, seu verme? - Perguntou a Cibele.
-Pulha! - Completou Renata. Mas parou e dirigiu-se à Cibele. -De onde tu conhece esse crápula?
-O Viktor e eu namoramos. - Respondeu a Cibele. -Foi ele que me deu o bolo naquela noite em que a gente se conheceu. - Explicou.
-Tu só pode estar de brincadeira. - Disse a Renata, ficando vermelha de ódio. -Eu também!
-Tu também o quê? - Perguntou a Cibele, confusa.
-Eu também namorava esse monstro, e também levei um bolo dele naquela noite! - disse, já apoiando as mãos na mesa do bar para se levantar.
-Calma, gurias. Calma. - Disse, Viktor, dando um passo para trás e erguendo as mãos em defesa. -Eu nunca disse que "namorava" com nenhuma de vocês. Alguma vez eu usei a palavra "namorado"? Alguma vez pedi qualquer uma de vocês em namoro? Nós saíamos juntos. Eu nunca pedi exclusividade.
A Renata jogou-lhe o paliteiro, mas ele se esquivou agilmente.
-Filho da puta, foi na minha casa, me comeu, dormiu esfregando o pau em mim, saiu de manhã e foi comer a Cibele na casa dela?
-Que linguajar feio, Renatinha. - Recriminou Viktor, fazendo cara de reprimenda. -De qualquer forma, vocês deveriam, ao invés de me censurar, era me agradecer. - Disse ele, ajeitando o blazer após a manobra evasiva.
-Agradecer? - Perguntou Renata, erguendo a ameaçadoramente a lata de guaraná.
-Agradecer por quê? - Quis saber a Cibele, levantando-se ainda chocada com a sobrecarga de informação.
-Por ter juntado vocês, bobinhas. - Disse Viktor, apontando para ambas com as mãos. E continuando:
-No pouco tempo que nós ficamos juntos, eu saquei vocês duas. Nenhum homem em sã consciência ia querer se amarrar com qualquer uma de vocês por muito tempo. Mas a Rê... A Rê é ua moça experimentada... Curte uma safadeza. E a Cibelinha... É curiosa, doce... Ia cair feito uma luva pra Renata. Vocês só precisavam de um empurrãozinho, que eu, muito abnegadamente, tratei de oferecer.
As duas olhavam pra ele. Renata, com a cara retorcida de ódio, Cibele, de boca aberta de tão surpresa. O bar todo parara pra ver o que estava acontecendo, Renata fez menção de jogar o Guaraná, mas Cibele a deteve:
-Rê...
A Renata olhou pra ela. Cibele continuou:
-E se... De alguma maneira torta, esse arremedo de ser humano estiver certo?
A Renata baixou o guaraná:
-Como assim?
Cibele continuou:
-Eu... Eu não sei... Talvez tenha uma razão pra nunca ter dado certo com ninguém... Alguma razão além de Viktor de SanMartin... Eu nunca... Nunca tinha me sentido tão conectada a alguém como me sinto contigo. Não levou duas semanas pra tu se tornar minha melhor amiga, não levou dois meses pra eu perceber que eu... Sabe... De repente, faz sentido... Entende...?
A Renata largou o guaraná. Tinha os olhos marejados:
-Eu achei que nunca mais fosse amar ninguém... Mas desde aquela noite em que a gente se conheceu por causa desse traste, os momentos em que a gente se encontra e conversa e fica juntas, são minhas horas preferidas do dia... Eu vivo pra esses encontros.
As duas, com os olhos rasos d'água, deram-se as mãos, e se abraçaram.
Viktor se aproximou e sussurrou:
-Como responsável pela fusão eu não ganho um bônus? Uma festinha a três?
Viktor escapou por muito pouco de ser atingido pelo guaraná, pela limonada suíça e pelas batatas fritas.
Mas escapou.

Viktor de SanMartin, o ousado, atacara novamente.

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