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terça-feira, 1 de dezembro de 2009

O Guarda-Chuva de Elvira.



O sol fustigava as ruas de Porto Alegre como o olho funesto de um deus furioso, e lá estava Elvira andando pela rua, os cabelos castanhos longos, escorridos sobre os ombros dançando com a brisa, o corpo bonito dentro de uma calça jeans nem justa, nem folgada e de uma camisa branca meio amarrotada enquanto seus tênis golpeavam o calçamento da cidade, sob o braço de Elvira se sustentava um guarda-chuva preto de cabo de madeira.


Elvira, bonita, jovem, inteligente, caminhava com um gingado feminino todo natural, não esses rebolados fabricados, apenas um balanço causado pelo formato do corpo de Elvira, que exalava um perfume agradável da nuca, de sob seus cabelos em desalinho, o que destoava da figura de Elvira era aquele guarda-chuva. Era, como já foi mencionado, um dia ensolarado, nem sequer começara com cara de chuva, você sabe, há dias em que você olha pela janela, vê o céu crespo e cinzento e pensa "vai chover.", e, desanimado, apanha o guarda-chuva, veste um casaco, e após andar três quarteirões o sol espicha sua cara amarela e zombeteira por detrás das nuvens e te ilumina como quem diz "trou-xa!". Mas não era o caso de Elvira, quando ela saiu o sol já estava todo pimpão no céu primaveril, ela tampouco ouvira alguma previsão apocalíptica de Cléo Kuhn dizendo com voz anasalada no rádio que o dia começaria bonito, mas depois uma massa de ar polar se chocaria com o ar quente sobre a cidade como os exércitos persas e gregos fazendo o firmamento desabar sobre os incautos porto-alegrenses. Não, nada disso. Elvira sempre, eu disse sempre, fizesse chuva (claro.) ou sol, saía de casa com o guarda-chuva.


Desde a infância sempre que iria sair do aconchego do lar, Elvira empunhava um guarda-chuva. Ela já os colecionava, tinha desde aquelas sombrinhas coloridas e dobráveis até aqueles guarda-chuvões pretos tipo bengala, e era justamente um desses que ela trazia sob o braço fino, eventualmente atraindo o olhar curioso de um transeunte que virasse o pescoço para avaliar se, de costas, ela era tão atraente quanto de frente. De qualquer forma, ali estava Elvira com seu guarda-chuvão, alheia aos olhares que atraia tanto pela beleza quanto pelo inusitado acessório no dia quente e claro.


Havia muito na mente de Elvira, ela recentemente saíra de um relacionamento, ela não gostava dessa palavra, relacionamento, era impessoal, imprecisa, até meio tosca, mas "compromisso" era sério demais, e "namoro" era sério de menos, então, relacionamento. Ela saíra de um relacionamento, um relacionamento relativamente longo, que terminara de forma traumática para ela, e agora aquele Guarda-chuva dava á Elvira uma sensação de proteção, ela queria estar preparada, aquele Guarda-Chuva era um símbolo disso, Elvira se sentiria preparada empunhando o guarda-chuva.


Ela era preparada, afinal, Elvira, como já foi dito, era bonita, era jovem, recém chegara aos trinta anos, e se houve um tempo em que uma mulher de trinta anos já havia dobrado o Cabo-da-Boa-Esperança, Honoré de Balzac já havia desmentido essa bobagem ao permitir que Júlia encontrasse o amor nos braços de Carlos Vandenesse na literatura, então, aos trinta anos, Elvira era, sim, jovem. Ela era inteligente, havia concluído a faculdade e mirava com olhos gulosos por seguir com seus estudos em busca de um doutorado, era competente em seu trabalho como professora de literatura tornando até os livros de Jorge Amado interessantes para seus alunos, enfim, Elvira era um sucesso. Mas ela não se sentia assim.


Elvira se cobrava demais, ela se cobrava por não ter concluído seus estudos mais cedo, se cobrava por não ganhar mais dinheiro, ao mesmo tempo em que se cobrava por estudar demais, por trabalhar demais, por não se dar a chance de se divertir mais. Elvira se cobrava até por falhas que não eram suas. Ela se perguntava se a vida de seu relacionamento teria sido poupada se ela estivesse disposta á trancar os estudos na época e constituir família com Raul, para ela o melhor homem do mundo, se ela houvesse parado de estudar para seguir os passos de sua mãe e cuidar do lar com esmero e afinco, se importando com nada além da criação dos filhos e do bom funcionamento do antro familiar, talvez ela e Raul não tivessem se separado aos gritos de "frígida" e "canalha" após quatro anos de namoro. Namoro, não, "relacionamento".


Ela também se perguntava se, ao invés de ter mandado tudo lá pra casa do Capita e saído pra farrear com as amigas em várias vésperas de provas aos dezesseis anos ela tivesse se empenhado mais nos estudos como demandavam seus pais ela teria concluído a faculdade antes, poupando-se de conhecer o canalha do Raul.


Elvira não fizera nada de errado, ela dera prioridade ao que, então, merecia prioridade, independente das disposições e ansiedades de outros.


Elvira agiu como adolescente na adolescência, e agiu como uma adulta responsável na idade adulta, ela era dedicada ao trabalho, pagava suas contas e estava mais do que vacinada, seus amigos sabiam disso e lhe diziam, mas Elvira, lhes fazia ouvidos moucos, convencida de que deveria ter feito mais aqui, que deveria ter feito menos ali, e embora agisse com correção e tivesse todas as ferramentas pra ser feliz, sempre convivia com o "se", um "se" tolo, inútil e despropositado.


Tão despropositado quanto um guarda-chuva em um dia quente e ensolarado.

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