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quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Ranolfo V.S. A Vida


Os socos sucessivos faziam os dentes de Ranolfo chacoalharem como pêndulos dentro de sua boca.
Com o olho direito, que ainda podia ser aberto, ele mirou seu adversário, saltando á sua frente, o queixo protegido pela mão esquerda, a mão direita projetada á frente, dançando como uma serpente, esperando um descuido de Ranolfo para fustigá-lo novamente com um novo golpe.
Ranolfo gingou o corpo cansado, lançando a mão direita buscando os rins do outro lutador, foi um bom soco, mas não o bastante, a resposta imediata chegou como a ira de Deus, um cruzado de direita encontrou o malar de Ranolfo, ele ficou zonzo, deu dois passos pra trás, inclinando o corpo pra frente tentando evitar a queda. Má ideia, outro cruzado, de esquerda, explodiu na orelha direita de Ranolfo, que passou á escutar apenas um assobio agudo com aquele ouvido. Ergueu as mãos como se estivesse em slow motion, tentando proteger a cabeça, e sentiu um direto violento na boca do estômago que fez o ar abandonar seus pulmões como seu pai fizera com sua mãe.
Por que pensara nisso em uma hora tão imprópria ele não sabia dizer.
Sempre tivera esse problema. Divagava demais. Voava ao longe desde a infância. Provavelmente por que seu mundo particular de divagações era menos duro do que o mundo real.
Na escola ele já fazia isso. Não que Ranolfo fosse um mau aluno, não, ele era, acredite, o primeiro da classe. O preferido da professora, tinha amigos. Apenas gostava mais de seu próprio mundo.
Outro golpe, o arrancou de suas reminiscências, um gancho de esquerda acertou-o no fígado, a pontada de dor se espalhou pelo corpo. Ele ergueu a guarda á tempo de evitar mais um golpe da esquerda adversária na cabeça, mas com isso abriu a guarda oposta pra uma nova pancada, dessa vez no olho esquerdo. A dor foi acompanhada de uma sensação de frio no local da pancada, e o sangue começou á escorrer abundantemente da ferida recém aberta.
Ele gingou de um lado pra o outro, tentou saltar, mas suas pernas pesavam uma tonelada. Lançou alguns jabs, ganhando distância, se afastou do corner. O antagonista ainda saltava, leve, á sua frente.
Ele lembrou de seu pai, o ensinando á pular corda, foi um bom momento, um dos raros bons momentos que teve com seu pai. Normalmente o homem estava bêbado, ou deprimido.
Não tivera a vida que desejava, perdera boas chances, jamais se preocupou em tentar ir além do sonho de ser pugilista. Quando não pôde levar a vida que almejava no esporte, a própria vida se encarregou de o levar á lona. Mas Ranolfo era forte, alto, seu pai sempre achara que ele podia ser um grande boxer. Sua mãe o queria na escola, seu pai o queria no ringue. Ninguém ligava pra o que Ranolfo queria. Quando seu pai foi embora, após uma briga feia com sua mãe que terminou em uma agressão, Ranolfo resolveu que seria um boxeador, não pra orgulhar seu velho. Não, ele queria esfregar seu sucesso na cara do pai e mostrar o quão melhor era.
Ranolfo seguiu estudando, mas passou á se dedicar com afinco aos treinos. Galgou á custa de suor e sangue os degraus do esporte onde um em mil chegam, de fato, ao estrelato.
Ranolfo treinou, lutou em ringues improvisados em parques de diversões, anfiteatros e até em restaurantes. Foi pago com comida, com equipamento, e ás vezes nem sequer era pago.
Jamais desanimou. E agora, ali estava ele, lutando pelo título amador. Sua grande chance de se profisionalizar, arranjar um empresário e continuar subindo. Ele sabia que podia, apenas...
Mais um soco. Outra vez no fígado. Esse foi sentido até pelos ancestrais de Ranolfo. Ele revidou com vários jabs e cruzados, mas o adversário se fechou na defensiva, e Ranolfo sabe que não adianta nada se cansar batendo nas luvas do sujeito. Ele recuou.
... Apenas precisava de uma chance. Essa chance podia ser agora. E essa era uma chance única. O esporte não era como Valéria. Valéria aceitava Ranolfo de volta não importava quantas vezes ele falhasse para com ela. Os braços finos de Valéria. Suas coxas delgadas e suaves. Os seios macios de Valéria sempre aninhavam Ranolfo. Mesmo quando ele gastou o dinheiro da caderneta de poupança dela apostando em si mesmo em uma luta e perdeu. Mesmo quando ele a envergonhou gritando com ela na frente das amigas, mesmo quando Ranolfo, após a morte de sua mãe quebrou todos os móveis do apartamento de Valéria. Valéria o perdoava sempre. Sempre lhe dava outra chance. Mas o esporte não era Valéria. E certamente o homem que esmurrava Ranolfo com fúria contra as cordas naquele momento também não era.
Um soco, dois, três, o nariz de Ranolfo se quebrou, uma narina ficou inútil. O sangue seguia escorrendo grosso por cima do olho de Ranolfo. Ele pensou em se jogar no chão para evitar a surra e ganhar os segundos da contagem, mas francamente não sabia se poderia se levantar. Foi quando o soar do sino o tirou de seus devaneios.
O juíz segurou as luvas de Ranolfo. Falou com ele. Ele não ouviu nada. Apenas fez que sim com a cabeça, e depois que não.
O juíz não disse nada, mas ficou olhando com atenção enquanto Jeová, seu técnico, e Ramiro, o auxiliar, limpavam sua ferida com uma toalha áspera e cotonetes e a empapavam com vaselina.
Ranolfo sentiu muita dor quando Ramiro endireitou se nariz, mas foi apenas por um segundo e o nariz voltou á funcionar, depois ele continuou sentindo só a dor de todo o resto.
Jeová, um negro de sessenta e poucos anos que aparentava pelo menos dez á mais, gritava com ele, ele não ouvia, seguia apenas balançando a cabeça em sinal de positivo.
Jeová apontava com os dedos indicador e o médio para os próprios olhos, ele falava rápido, disparando gotas de saliva como uma metralhadora de cuspe. Ranolfo acompanhou com os olhos enquanto uma dessas gotas voava da boca de Jeová e sentiu quando ela pousou em seu nariz. Sentiu um pouco de nojo, mas não demonstrou, Jeová estava sempre atolado no sangue e no suor de Ranolfo, ele podia suportar uma cuspida do técnico e amigo que lhe oferecia guarida quando Valérias o expulsava de casa e ele precisava esperar ela se acalmar para voltar.
O sino bateu outra vez. Foi só então que Ranolfo ouviu Jeová dizer:
-Ele tá te matando. Mata ele primeiro, senão cê tá fodido.
Ramiro enfiou o protetor de volta na boca de Ranolfo, lhe deu um tapa na cabeça e disse "Pega ele, caralho!".
Ranolfo fez outro sinal de positivo com a cabeça, foi saltando até o centro do ringue. O outro pugilista veio pra cima dele, dançava á sua frente, lançou um jab de direita, Ranolfo se esquivou, um cruzado de esquerda, Ranolfo bloqueou, um direto de direita, esse encontrou Ranolfo. No meio do rosto, entre o nariz e o olho direito. Ranolfo sentiu como se tivesse sido atropelado por um Fiat 147, mas deu graças á Deus por não ter sido em cheio no nariz, nem no olho esquerdo. Deu cinco passos pra trás, pensando na professora Miriam, de matemática. Primeiro ano do ensino médio. Na época já era ensino médio. Ranolfo era dessas pessoas que fez Primeiro Grau e Ensino médio. Enfim, a professora Miriam era ruiva, tinha cabelos curtos, era bonita de rosto e tinha uma bunda espetacular. Épica, arriscaria Ranolfo. Ela era uma mulher fornida, não gorda, não... Fornida. Tinha carne pra morder, era o que dizia Ranolfo.
Miriam fazia piadas sexuais na sala de aula. Nada explícito, tudo subentendido, mas Ranolfo era inteligente e entendia as meias palavras de Miriam. Procurava em sebos por revistas pornográficas que tivesse ruivas de cabelos curtos para fantasiar com a professora Miriam. Coisa de guri, pensou Ranolfo, e riu. Um meio sorriso e um "Eh, eh.".
Seu adversário achou que fosse uma bravata, e se enfureceu. Avançou contra Ranolfo com raiva faiscando nos olhos como se dizendo "Ria disso, agora.".
Os golpes eram como pedradas, acertavam Ranolfo que tentava erguer a guarda, mas protegendo o corpo apanhava no rosto, e protegendo a cabeça tinha seu corpo surrado.
Ficou com vergonha, perderia a luta tomando uma surra proverbial por causa de uma reminiscência. Que vergonha, que vergonha. Outro momento de vergonha. Ranolfo colecianava alguns. Ele podia listar com facilidade três deles que lhe eram particularmente vexatórios.
Em terceiro estava uma festa com Valéria, ela chegou com sua amiga, Francine, e um sujeito, Ranolfo cumprimentou Francine com um abraço e estendeu a mão pro sujeito dizendo "Prazer, Ranolfo.". O problema é que o camarada já era namorado de Francine á alguns meses, inclusive já havia conhecido Ranolfo e conversado por horas á fio em outra ocasião, não muito tempo antes.
O segundo lugar era da vez em que sua avó o pegara se masturbando no quarto com uma playboy da Sônia Braga. Ranolfo encontrara a revista por acaso enquanto procurava por livros sobre a pré-história no armário do avô num verão em que se hospedou com os avós no interior. Ao folhear a publicação deparou-se com fotos de mulheres nuas, daí para o onanismo foi um pulo. Ele apenas não contava com a intrusão de sua avó ao entrar sem bater no quarto onde ele descobria o prazer solitário.
Em primeiro lugar, a vez em que peidara na frente de sua namorada. Era uma noite de meio de semana, estavam voltando de algum lugar, ela e ele pararam pra se despedir em frente ao prédio onde ela morava, ele foi fazer uma brincadeira e o peido escapou. O pior foi que, na tentativa de mascarar o flato fujão, Ranolfo ficou arrastando e batendo os pés diante do olhar incrédulo da moça. Ainda hoje ele se pergunta se não teria sido melhor se desculpar, assumindo a culpa.
A torrente de golpes seguia, Ranolfo baixou a guarda tentando evitar outro soco no estômago, e seu antagonista aproveito-se de sua lentidão acertando-o com violência abaixo do olho esquerdo, as ações de Ranolfo estavam lentas demais, ele protegeu a área atingida após o soco, foi atingido novamente, do outro lado, entre o queixo e a boca, alguns centímetros mais abaixo e aquele golpe poderia ter acabado com a luta. Ranolfo seguia se movendo um quadro mais devagar que seu adversário, outro soco desta vez no supercílio cortado de Ranolfo, fez jorrar sangue, o último acertou o nariz de Ranolfo com tanta violência que ele nem sequer sentiu dor, mergulhou em um torpor gélido que adormeceu sua cabeça, deixando-a leve. Foi uma sensação boa. A dor desapareceu por causa da dormência, suas pernas tremeram de leve, e ele imaginou se era assim morrer. Se fosse, ele ficaria satisfeito. Não era a imagem que Ranolfo tinha da morte. Sua mãe morrera alguns anos antes após perder uma luta desigual para um câncer no estômago. Ela era frágil, magra, e o câncer uma doença pérfida e agressiva, só descoberta em estágio avançado. Ela fez o tratamento, obteve algum resultado, mas depois abandonou os remédios e a quimio e radioterapia. Sua mãe morreu durante o sono induzido, dopada que estava de tantos analgésicos para amenizar a dor causada pela matástase. Ranolfo ainda lembrava da expressão dela na cama, a sombrancelhas contraídas, mesmo com tantos sedativos, mesmo inconsciente, ela sentia dor.
Ranolfo chorou demais por não ter sido melhor filho, por não ter feito faculdade como ela queria, por ter se dedicado ao pugilismo e se tornado tão parecido com o pai, tudo o que queria evitar.
E agora, ali estava Ranolfo, dobrando os joelhos, prestes á ser nocauteado, quando se encostou nas cordas, e toda a dor que sentia no corpo e na alma o atingiram de uma vez só. E naquele momento, sentindo dores da vida inteira, ele revidou. Não só contra seu adversário, mas contra a vergonha de seus vexames, contra a morte da mãe, contra o abandono do pai, contra o conformismo de Valéria. Um soco, um soco ótimo, no bico do queixo do adversário. Houve ali, muita sorte, claro. Mas a guarda de seu antagonista estava aberta, pois ele estava furioso com o riso involuntário de Ranolfo, que parecia prestes á cair, mas eis que, após quele soco, quem caiu foi o outro.
O Juíz iniciou contagem, o sujeito tentou levantar, mas não estava firme. O árbitro declarou vitória de Ranolfo. Ele foi felicitado por Jeová e Ramiro, recebeu tapinhas nas costas de alguns espectadores, o cinturão de campeão amador do presidente da federação, um beijo de Valéria e vários cartões de empresários interessados em agenciá-lo.
Um deles disse que Ranolfo tinha futuro. Aguentara uma surra de um dos pugilistas amadores que batiam mais forte naquela categoria.
Mas Ranolfo sabia que, não importava quão forte o adversário batesse. A vida sempre bate mais forte.

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