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sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Feliz Ano-Novo


O Heraldo estava encosado no parapeito da sacada olhando os fogos que já espocavam pelo céu áfora, embora, no seu relógio, ainda faltassem dois minutos para a meia-noite. Dentro do apartamento, ás suas costas, as pessoas já se abraçavam e beijavam fazendo felicitações e expressando o desejo de um feliz ano-novo. Algumas discursavam, turbinadas pelos abusos etílicos comuns ao reveillon. Heraldo se ergueu do parapeito. Olhou a própria roupa, a camiseta branca, as calças azuis, os tênis. Pensou que, mais ridículo do que aquilo, só se tivesse, de fato, usado uma cueca amarela como lhe recomendara uma amiga "Pra atrair dinheiro".
Achava todo o ritual de ano-novo tão... Tão over. Quase tão over quanto usar a expressão "over". Mas achava. Achava exagerado, sem sentido, bobo. Era apenas a virada do calendário. Não apagava os erros do passado, não dava margens a novos começos, pelo menos não mais do que qualquer outro dia. Ele não entendia por que vestir branco, por que usar cuecas amarelas se quisesse atrair dinheiro, ou vermelhas se quisesse atrair paixão. Usou cuecas pretas, achou que atrairia solidão, que, afinal de contas, ele já sentia, mesmo, apesar de estar no meio daquela multidão de desconhecidos pra onde fora arrastado pela irmã e pelo cunhado.
Pensou por um momento, e deu-se conta que, na maior parte do tempo se sentia solitário. Na maior parte do tempo, sentia como se sentia naquela festa. Sobrando no meio de um monte de gente. Como se a vida fosse uma festa na qual ele entrou e onde não conhecia ninguém.
Ouviu a conagem regressiva vindo da sala, as pessoas trazendo garrafas de champagne, cidra e espumante pra estourar junto ao parapeito da sacada. Gritavam muito:
-Dez!
-Nove!
-Oito!
Casais já começavam beijos que só terminariam no ano que vem. Bêbados já bradavam boas-vindas ao ano que se avizinhava.
-Sete!
-Seis!
-Cinco!
Garrafas agitadas indevidamente disparavam suas rolhas. Uma mulher foi atingida no calcanhar e deu um grito, seu namorado achou que ela tivesse sido atingida por uma bala, riram quando perceberam que fora só uma rolha.
-Quatro!
-Três!
-Dois!
Todos gritavam, se abraçavam, um sujeito berrava para alguém que pegasse dois mil e dez e enfiasse no traseiro. Uma moça gordinha chorava copiosamente nos braços de uma amiga. Um homem ria convulsivamente com os braços e pernas bem abertos olhando os fogos que inundavam o céu.
-Um!
Catarse geral. Todos celebravam. As pessoas abraçavam-se umas às outras trocando rapidamente após desejarem feliz ano-novo brindando. A moça gordinha que chorava começou a rir, o sujeito que ria soluçou e começou a chorar. Casais terminaram beijos que haviam começado no ano anterior e sorriam um para o outro.
Heraldo, viu tudo e viajou. Sua mente foi para outro lugar. Seu coração, com outra pessoa. Ele se amaldiçoou por estar sozinho. Por querer etar sozinho. Pensou em como podia ser tão parvo, tão débil e medroso. Pensou em como seria bom estar abraçando alguém, beijando alguém. Vendo o ano que se iniciava com algum otimismo, ou, pelo menos, com a promessa de mudança.
Alguém se aproximou fazendo barulho. Uma amiga do anfitrião, talvez. Bonita. Abraçou-se a ele colando o corpo no seu enquanto dizia em seu ouvido que esperava que, em dois mil e onze, ele alcançasse tudo o que desejava. Ele agradeceu correspondendo ao abraço dela. Murmurou um "igualmente" meio sem graça. Ela estava muito perto dele, muito perto, mesmo. O beijou na orelha. Talvez não fosse intencional, ele era bem mais alto, talvez a orelha fosse o que ela conseguira alcançar na posição em que estava. Ergueu a taça de champagne pela metade que trazia na mão direita colocando-a na frente dos olhos dele:
-Tin-tin.
Heraldo tinha uma lata de Fanta na mão. Brindou e bebeu um gole. Ela sorriu:
-Quantos anos tu tem? Oito?
Ele não entendeu:
-Quê?
-Bebendo refri. -Ela esclareceu.
Ele sorriu sem responder. Não disse mais nada, ela se afastou. Heraldo virou a cabeça e observou a moça andando de volta pra dentro da sala. Seu rebolado dentro do justíssimo vestido branco, e sua hesitação quando pousava os pés envolvidos por sapatos de salto-agulha no chão. Era bonita. Era atraente. Parecia bacana. Mas não era ela.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Top 10 Negativo Cinema: 2010


Não há ano de grandes filmes sem que apareçam uns filmes bem mequetrefes pra avacalhar. No Top 10 Negativo Casa do Capita, sempre guardamos vagas pra filmes que eram muito aguardados ou que fizeram grandes bilheterias á despeito da ruindade, ou que ganharam muito espaço na mídia, ah, é obrigatório que eu tenha assistido o filme na TV a cabo, DVD, ou no cinema, então, amantes da saga vampirema Crepúsculo, não se desesperem, eu nunca mais vou ver um filme dessa série.
À ela, então. A lista dos dez piores de 2010!

10 - O último Mestre do Ar
M. Night Shyamalan é um dos meus diretores preferidos. Desde que o indiano surgiu pro mainstream com O Sexto Sentido, jamais perdi um filme dele no cinema, e posso dizer isso de poucos diretores. Mas já faz um tempinho que ele anda com um três-oitão apontado pro próprio pé. O Último Mestre do Ar, fantasia zen baseada na série animada Avatar da Nickelodeon foi a bala que perfurou o pé do diretor. O filme começa e termina sem dizer a que veio, abusando do didatismo, e com uma ação que jamais vai além da ameaça.
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9 - Alice no País das Maravilhas
Alguém precisa pegar o Tim Burton pelo braço e dizer pra ele que chega de Johnny Depp, Helena Boham-Carter e Christopher Lee. Também precisam avisar ele que chega de "versões mais sombrias" de histórias que todo mundo conhece. Precisam dizer que aquela batalha entre exércitos no final do filme é idiota, e que a dancinha do Chapeleiro Maluco não deve ser repetida nunca. Jamais. Em tempo algum.
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8 - Resident Evil - Recomeço
Falando sério, depois dos três primeiros filmes, alguém ainda achava que as coisas melhorariam na quarta incursão da série ao cinema?
Como se uma Milla Jovovich não fosse o bastante pra acabar com a série, nesse quarto longa há várias dela, enfrentando o infâme Albert Wesker... Uma dica ao Paul W. S. Anderson:
Nos jogos de video game, a fraqueza de uma trama é sustentada pela interatividade, no cinema essa muleta não existe, e o que você tem, no final, é um filme ruim. Como Resident Evil - Recomeço.
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7 - Caçador de Recompensa
Gerard Butler devia fazer só filmes de porradaria como Gamer e 300 e abandonar as comédias românticas. P.S. Eu Te Amo, A Verdade Nua E Crua, e agora esse Caçador de Recompensa, onde ele fala se cuspindo todo e a Jennifer Aniston interpreta a Rachel de Friends. Quê? A personagem dela não é a Rachel de Friends? Conversa...
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6 - Um Olhar do Paraíso
Peter Jackson resolveu adaptar um filme sobre o estupro e assassinato de uma menina de quatorze anos. Decisão corajosa do senhor Jackson, hein? Não tanto. Quando o filme começa percebemos que o diretor de O Senhor dos Anéis e do vindouro O Hobbit pareceu ter ficado com medo de mostrar qualquer coisa relacionada, de fato, ao crime, e acabou não mostrando nada. Fez um filme chato que jamais encontra o tom entre o drama familiar que não convence, o trhiller que na maior parte do tempo não tem tensão, e a fantasia que jamais emociona. Entre mortos e feridos salvam-se Stanley Tucci e Saoirse Ronan, de resto...
Volte pra Terra Média Peter.
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5 - A Caixa
Richard Kelly despontou com o cult Donnie Darko, sucesso absoluto de crítica, depois deu uma escorregada com o fraquinho Southland Tales, e, aparentemente, resolveu, ele próprio colocar um prego no seu caixão com este A Caixa. Uma pretensiosa história que flerta com Fausto, filmes B de ficção dos anos cinquenta e terror. Cameron Diaz, Jaes Marsden e Frank Langella até se esforçam, mas o filme não diz nada, não empolga, nem faz refletir. Melhor sorte na próxima, se houver, senhor Kelly.
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4 - A Hora do Pesadelo
O novo Sexta-Feira 13 fez relativo sucesso nos cinemas, era, claro, questão de tempo até Freddie Kruegger ser retirado de sua aposentadoria. Até um ator com algum estofo dramático foi chamado pro papel, o indicado ao Oscar Jackie Earl Haley. Mas não bastou. Um diretor ruim barbaridade e um arremedo de roteiro que era basicamente a mesma história do filme de 84 mostraram que mesmo um ator talentoso não consegue salvar um filme que nasceu pra ser porcaria. Volte pro mundo dos sonhos Freddie.
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3 - Jonah Hex
Josh Brolin no papel principal, John Malkovich como vilão e Megan Fox de corpete. Não tinha como dar errado, certo?
É... Tinha. A aventura do pistoleiro desfigurado Jonah Hex ficou com cara de Van Helsing, e não vingou. O filme é inteiramente ruim? Não. A Megan Fox é linda, e o filme é curto. Acho que, de positivo, é isso...
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2 - Legião
Este samba do anjo doido é outro exemplo de como um elenco bacana não é garantia de filme bom. Aqui os bons Paul Bettany e Denis Quaid se perdem em uma trama mal ajambrada sobre anjos atacando a humanidade para matar um bebê que é a ressurreição de Cristo. A trama não desenvolve, o elenco não segura o rojão, a ação é fraca e, pra piorar, o final aberto sugere uma sequência que,se Deus quiser, jamais verá a luz do dia.
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1 - Fúria de Titãs
Remake do cult de 1981 dirigido pelo francês Louis Leterrier. Bom elenco, diretor bem-intencionado, premissa divertida... Bomba atômica de proporções bíblicas. O filme conseguiu deixar os excelentes Ralph Fiennes e Liam Neeson canastrões. Mostrou que Sam Worthington talvez não seja assim tão promissor, e que mesmo um monstro gigante emergindo do oceano para destruir uma cidade pode ser chato. Roteiro bobo com um herói relutante que mais parece um moleque birrento, coadjuvantes descartáveis que morrem feito moscas e não deixam saudades, e um confronto final sonolento. E isso que nem vi o filme em 3-D, pois, ao que parece, a conversão feita nas coxas deixava o filme ainda pior.
Sério? Tinha como ficar pior?

Top 10 Cinema: 2010




Nesse ano que se encaminha pro fim, eu fui menos do que gostaria ao cinema. Fui menos do que em 2009, também. Pode ter sido preguiça pura. Ou, talvez, esse ano não tenha sido tão rico em filmes como foi o ano que passou. Ainda assim, não podia deixar 2010 acabar sem fazer o infâme Top 10 Casa do Capita. Deu um pouquinho de trabalho, inclusive por culpa das nossas distribuidoras, que não mandaram pra Porto Alegre uma porção de filmes que eu queria ver, ou mandaram e deixaram aqui por pouquíssimo tempo. De qualquer modo, à lista:

10 - Invictus
OK, tecnicamente é um filme de 2009, mas só estreou no Brasil em 2010, então, entra na lista. A história de como Nelson Mandela (Morgan Freeman) usou descaradamente a Seleção Sul-Africana de Rúgbi para dar unidade a um povo afastado por anos de appartheid funciona com perfeição na tela, graças ao elenco encabeçado por Freeman e Matt Damon, e à mão firme de Clint Eastwood, que, se é grande na frente das câmeras, atrás delas é gênio!
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9 - Kick-Ass - Quebrando Tudo
Matthew Vaughn flertou e fugiu da Marvel em mais de uma ocasião. Ele já havia amarelado na direção de X-Men 3 e de Thor, foi apenas na terceira tentativa, com Kick-Ass, que ele finalmente encarou o desafio de levar às telonas a adaptação de um quadrinho da editora do Homem-Aranha. E o resultado foi ótimo. É impossível não se divertir com as peripécias e desventuras de Dave Lizewsky e sua epópeia para, armado apenas com uma fantasia improvisada, um par de porretes e muita ingenuidade, se transformar em um super-herói do mundo real. Sua trajetória se complica e suas lesões se tornam mais graves conforme ele chama a atenção de bandidos e heróis (A Hit-Girl é a filha que todo nerd gostaria de ter.) de verdade. Ágil, honesto, e, acima de tudo, muito divertido. Que venha Kick-Ass 2.
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8 - O Livro De Eli
Nunca sabemos ao certo quanto tempo faz que a guerra devastou o mundo. Não sabemos, também, que tipo de guerra foi. O que sabemos, é que o céu foi queimado pelas bombas, e sob ele há apenas um arremedo calcinado do que antes foram cidades. Sabemos, também, que um homem chamado Eli (Denzel Washington, grande!) ruma de maneira incessante para o oeste, levando consigo um livro que pode salvar a humanidade, e que talvez tenha sido a causa da guerra que quase a destruiu. Em seu caminho surge Carnegie (Gary Oldman, ótimo.), que comanda uma pequena vila, mas sonha com muito mais, e sabe que o livro que Eli leva consigo pode ser a ferramenta de sua ascensão, e não está disposto a permitir que Eli suceda em sua missão. Grande filme dos irmãos Hughes, que não deixam a peteca cair no quesito ação, e nem permitem que o discurso sobre fé se torne o mote do filme tornando-o panfletário ou enfadonho. Futuro cult movie nas estantes de nerds intelectualóides, mas nem por isso, menos do que ótimo. xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx
7 - Tudo Pode Dar Certo
Após anos filmando na Europa filmaços como Match-Point e Vicky Cristina Barcelona, Woody Allen voltou a sua Nova York de sempre e fez uma pequena jóia com a cara da sua filmografia. Boris Yellnikoff (Larry David, um Woody Allen V-12) é um físico que se afastou da humanidade e vive isolado mastigando a própria misantropia, niilismo e hipocondria após uma tentativa fracassada de suicídio. Vivendo de ensinar crianças a jogar xadrez, ele está satisfeito com a própria infelicidade até conhecer a desmiolada Melody (Evan Rachel Wood, tudo de bom), rainha de concursos de beleza no sul que fugiu de casa e pede que Boris a acolha enquanto tenta se ajustar à vida na big apple. Dessa relação, surge um efeito dominó em que pessoas passam pela vida de Boris e, dele, rumam em busca de sua parcela de felicidade. As interações do casal protagonista são ótimas, mas é quando Boris se dirige à audiência que percebemos o quão engraçado e cerebral Woody Allen pode ser na mesma sentença.
Bem vindo de volta a NY, Woody.
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6 - A Estrada
Outro filme pós-apocalíptico que chegou ao cinema em 2010 e não fez feio. Em A Estrada, um homem (Viggo Mortensen, excelente.) e seu filho (Kodi Smit-McPhee) vagam obstinadamente por um mundo gelado, cinzento e estéril lutando para manterem-se vivos até chegar ao litoral.
Em meio à devastação e o marasmo quebrado apenas pela constante ameaça da extinção e eventuais encontros fortuitos, ou não, nos deparamos com a luta de um pai para dar esperança ao filho em um mundo onde a redenção está cada vez mais distante, e onde todas as decisões, em algum momento, parecem más decisões quando o doloroso hoje, é comparado com um iluminado ontem.
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5 - O Segredo dos Seus Olhos
Pode ter sido a emoção, mas vi esse filme ontem, e hoje ele entrou na minha lista. Impossível não dar o braço a torcer pra produção cinematográfica argentina, os caras entendem dos riscado, e o suspense elegante sobre um homem (Ricardo Darín, um dos grandes, se não o maior intérprete hermano) que não consegue se conformar com a insolubilidade de um homicídio de mais de trinta anos atrás talvez seja o ápice da cinematografia portenha. Direção comedida e segura de Juan Jose Campanella, atuação ótima de Ricardo Darín e da excelente surpresa Soledad Villamil construindo um suspense enxuto e sem arroubos. Mas não é melhor que Tropa de Elite 2, como Maradona não é melhor que Falcão.
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4 - Ilha do Medo
Martin Scorsese é mestre no seu ofício, todo mundo sabe. E a parceria dele com Leonardo DiCaprio rende frutos saborosíssimos desde Gangues de Nova York, passando por O Aviador, Os Infiltrados, e agora Ilha do Medo, ótimo suspense onde Scorsese mostra o quanto entende de cinema brincando com vários estilos simultâneamente, mas sem se perder nos labirintos visuais das referências, da história que quer contar.
A história do agente federal Teddy Daniels, que, em 1954, ao lado de seu parceiro Chuck Aule (Mark Ruffalo), vai até a prisão-hospício da ilha Shutter investigar o desaparecimento de uma paciente. Scorsese rege com habilidade as reviravoltas da trama que envolvem campos de concentração, traumas do passado, médicos de intenções duvidosas e psicóticos em tratamento culminando com um daqueles finais "Ma'como???".
Atuações seguras de um elenco que ainda conta com Ben Kingsley, Max Von Sidow, Emily Mortimer e Michelle Williams completam o pacote de um dos melhores filmes do ano.
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3 - A Rede Social
Algumas pessoas pode ter imaginado, ao ler a notícia de que David Fincher ia dirigir um filme sobre a criação do site de relacionamentos Facebook, que o diretor de Seven e Zodíaco havia bebido água do parto. Algumas pessoas se enganaram. Ao invés de simplesmente dirigir um filme sobre os bastidores da criação do orkut dos gringos, Fincher conta, de forma não linear, uma história de traição e ganância protagonizada por caras que não são lá muito diferentes daquele seu amigo bobão que manja tudo de informática. Quando Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg, ótimo no papel) leva um fora da namorada e resolve se vingar em seu blog, e depois, com a ajuda do amigo Eduardo Saverin (Andrew-Homem-Aranha-Garfield, muito bem.), cria um site para comparar a aparência das universitárias.
Daí em diante é um pulo até Zuckerberg criar(?) o seu The Facebook, e ver essa criação lhe trazer desafetos como os gêmeos Winklevoss (Armie Hammer, que nem parece um único ator fazendo dois papéis), idealizadores de um site de relacionamentos para alunos de Harvard que supostamente foi copiado por Zuckerberg, e amigos duvidosos como o co-criador do Napster, Sean Parker (Justin Timberlake, surpreendentemente bem.).
Sem apontar culpados, certo ou errado, Fincher traça um retrato do jovem de hoje: Egoísta, isolacionista, e iludido pela máscara de anonimato da internet. Bravo!
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2 - Tropa de Elite 2 - O Inimigo Agora É Outro
Em 2007 José Padilha se juntou a Wagner Moura para contar a história do BOPE limpando as favelas cariocas durante a chegada do Papa ao Brasil, ao mesmo tempo em que apresentava os aspiras Neto e Mathias que saíam da corrupta PM carioca para se juntar à tropa de elite da polícia do Rio. De lambuja, o bom drama policial ainda apresentou o que se tornaria, talvez, o grande ícone pop brasileiro: O capitão do BOPE Roberto Nascimento. Sucesso absoluto de público, e filme divertidaço.
Três anos se passaram, e a dupla dinâmica Padilha/Moura tinha a missão de superar o primeiro filme. Bueno, missão dada, missão cumprida.
Dez anos se passaram, e Nascimento agora é coronel. Após uma operação que acaba mal sob seu comando, Nascimento, por uma dessas ironias da política, acaba promovido, ao invés de rebaixado, tornando-se sub-secretário de segurança do Rio de Janeiro. Com o apoio do coronel, o BOPE se transforma em uma máquina de guerra, destroçando o tráfico nas favelas cariocas. O que Nascimento não sabe, é que, ao fazer isso, cria um vácuo de poder que é perfeitamente ocupado pelos novos, e mais perigosos inimigos da lei e da ordem: Policiais e políticos corruptos dispostos a tudo para aumentar sua margem de lucros.
Tropa de Elite 2 é um tremendo filme de ação, assim como o primeiro, e aborda temas realistas espinhosos como a primeira parte, mas ganha em imediatismo, uma vez que a ação não se passa dez anos atrás. O elenco afiado, encabeçado por Moura, reune André Ramiro (Capitão Mathias), Milhem Cortaz (O ótimo capitão Fábio) e Maria Ribeiro (Rosane), e adiciona Seu Jorge (Beirada), André Mattos (Fortunato, roubando suas cenas), Sandro Rocha (Rocha), Irandhir Santos (Fraga) e Tainá Müller (Clara), está todo redondinho, e a montagem invocada, os bons efeitos especiais, a trilha sonora barulhenta e a ótima direção de José Padilha se complementam e fazem de Tropa 2, um produto de gênero, entretenimento do bom, e ainda, material pra reflexão. Um dos melhores filmes do ano.
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1 - Origem
Muito mistério antes e durante as filmagens de A Origem devem ter ajudado o filme a ficar com fama de produto de difícil acesso, ininteligível, hermético e não sei mais o quê. Bobagem. A Origem é, grosso modo, quase um filme de espionagem ao estilo Bourne, ou um filme de assalto ao estilo Onze Homens e Um Segredo. A diferença é que, ao invés de desfilarem sua habilidade e elegância em bancos, ou cassinos, ou bases militares inimigas, os personagens mostram do que são capazes dentro do subconsciente de seus alvos, conectando-se a eles enquanto dormem e roubando-lhes segredos, de outro modo, inacessíveis.
O grande mestre dessa arte sutil e moralmente reprovável, pra dizer o mínimo, é Don Cobb (Leonardo DiCaprio, mostrando cada vez mais talento tanto como ator quanto como escolhedor de projetos), americano impossibilitado de voltar para os Estados Unidos por razões legais, e que ao lado de seu parceiro Arthur (Joseph Gordon-Levitt, se recuperando da participação em G.I. Joe com outra boa atuação) trabalha no ramo dos segredos industriais. Ao tentar invadir a mente de Saito (Ken Watanabe, outro tremendo ator), Cobb e Arthur são desafiados a realizar um trabalho sensivelmente diferente do que estão acostumados: Ao invés de extração, inserção de uma ideia.
Começa aí a montanha russa de A Origem, com Cobb, disposto a tentar a inserção, considerada impossível por muitos em troca de seu retorno seguro aos EUA e seus filhos. Para isso ele une a equipe formada pela arquiteta Ariadne (Ellen Page), o falsário Eames (Tom Hardy), o químico Yousuf (Dileep Rao), unidos para invadir a mente de Robert Fischer (Cillian Murphy) e plantar lá, a ideia que pode mudar os rumos da indústria de energia enquanto lida com a perseguição onírica de sua falecida esposa Mal (Marillon Cotillard).
Elenco talentosíssimo que conta ainda com Michael Caine e Tom Berenger trabalhando em conjunto com uma equipe técnica capaz de tornar coisas absurdas possíveis, música e roteiro irrepreensíveis sob a batuta do cada vez melhor Christopher Nolan constróem o grande filmes de 2010.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Dor de garganta


O Alípio acordou naquela manhã sentindo o gosto ruim e a sensação desagradável de ardência causados pela sua dor de garganta. Repetiu seu ritual matutino costumeiro. Lavou o rosto, escovou os dentes e gargarejou e bochechou um anti-séptico bucal. A ardência, porém, permanecia em sua garganta dolorida toda a vez que ele engolia saliva. Chato. Mas não inesperado. Na noite anterior, ele precisara limpar o freezer para o degelo. Havia lá, oito sacolés, e dois potes de sorvete inacabados. Alípio cuidara de tudo. Comeu o sorvete napolitano assistindo Law & Order Special Victim Unity, comeu o sorvete de pistache enquanto via Matrix. E devorou os sacolés enquanto jogava Assassin's Creed Brotherhood.
Eram dias quentes aqueles últimos em Porto Alegre, nenhuma novidade. O verão da cidade batia, normalmente, na casa dos quarenta graus em dias de final de janeiro e começo de fevereiro, mas em dezembro... Em dezembro não era normal.
Talvez tenha sido aquela anormalidade na temperatura que fizeram com que Alípio atacasse tão vorazmente todos os doces gelados em seu freezer, e depois dormisse descoberto com o ventilador ligado diretamente em cima de si. Enfim, se os dias eram tão quentes, as noites eram de temperaturas amenas. Na casa dos vinte graus, ás vezes menos. Aquela noite marcara dezoito graus. Aí estava, pensou Alípio assistindo o noticiário da manhã, a razão de sua dor de garganta. Enquanto calçava os tênis e procurava seu pen-drive antes de sair para o Trabalho, Alípio não pôde deixar de notar a ironia de como era fácil entender por que tinha a garganta dolorida, e como era difícil saber por que seu coração estava no mesmo estado.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Conceito.


Estavam brigando. Ela, linda, seria ainda mais linda se não estivesse chorando. Cabelos, boca, pele, nariz, tudo lindo. Os olhos... Nossa, os olhos... mesmo inchados, mesmo vermelhos, ainda eram lindos. Ainda eram, sei lá, até demais. Enfim, ela, linda e chorosa, respirou fundo, como que buscando controle pra não saltar em cima dele. Ele não estava chorando. Estava sério. Tinha uma expressão corroída de fúria e desgosto. Talvez consigo próprio por que dela, vamos ser francos, era impossível desgostar.
-Qual é o teu problema? -Ela quis saber. Sua voz saiu carregada de raiva.
-Muitos. -Ele respondeu, dolorosamente franco.
-Ah...
-Eu nem sei quantos. Eu nem sei listar todos...
-Cala a boca...
-Tá bem.
-Sério... O que te assusta tanto em mim?
-Nada.
-Nada? Então não é medo, é desprezo?
-Não é desprezo...
Então tu não sabe o que é?
-Isso... Eu não sei o que é.
Não disseram mais nada. Ela tomou um táxi pra casa por que achou que o ônibus ia demorar, não se despediu quando entrou no carro. Apenas olhou pra ele com uma expressão indefinida.
Ele voltou pra casa a pé. Chegou lá, tirou o casaco e os tênis, se jogou no sofá e ligou o video game. Não jogou nada. Ficou encarando a tela de apresentação do sistema. "O que é que te assusta", ela quis saber. Ele mentiu quando disse nada. Muita coisa nela assustava ele. O fato de ela ser ela, e ele ser ele. De ela ser maravilhosa e ele ser uma bagunça. De ela provavelmente ser fantástica fazendo tudo, e ele ser, quando muito, meia-boca. O fato de ela, talvez, ver nele mais do que de fato existia, ou de ela ter gostado dele por idealizá-lo de algum modo. Talvez, no final das contas, fosse isso que mais assustasse ele. Ela imaginar que ele era tudo de bom, e ele ter a certeza inabalável de que não era. Ele morria de medo, mesmo, de ser um conceito.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal


O Lauro era um anti-Ebenezer Scrooge. Ele, ao contrário do personagem de Dickens, adorava o natal. Desde molequinho, ele sempre adorou o natal de paixão. De verdade. Do fundo do coração. Claro, quando ele era piá, ele gostava do natal pelas mesmas razões pelas quais qualquer criança gosta de natal. Os presentes, os doces, a ceia toda... Ele ainda guardava com carinho particular um natal lá pelo meio dos anos oitenta, quando ganhou vários bonecos da linha Super-Powers. Era da Gulliver ou era da Glaslite? Ele não lembrava, mas eram bonecos de super-heróis da DC. Superman, Batman, Aquaman, Gavião, Mulher-Maravilha, Brainiac, Coringa, Pinguin, Lex Luthor... Tinha o Lanterna-Verde...? Ele não lembrava. Enfim, aquele foi um natal que ele curtiu horrores. Em outro, um pouco antes, o presente mais legal foi uma ambulância de brinquedo que abria a lateral e podia-se engessar a perna do bonequinho lá dentro. E, um pouco mais tarde, vários bonecos da série Star Wars, que na época ainda se chamava Guerra nas Estrelas. Eram bonecos e naves que eram anunciadas no programa do Bozo... Nossa. O Bozo. Como o Lauro era velho... Enfim, era essa a mágica do natal pro Lauro na infância. Todos os problemas que ele tinha durante o ano desapareciam na época do natal. Ele desligava todos eles quando se aproximava o vinte e cinco de dezembro.
E, ao contrário do que poderia ter acontecido, ao chegar a puberdade, o Lauro não passou, como vários de seus amigos, a desprezar o natal. Continuou prezando a data da mesma maneira. Ele lembrava de natais da adolescência, ceia com a família, e depois sair pra esquina do IBAMA com os amigos. Toda a gurizada alinhadinha, com roupa de jantar com os parente, sentados na escada, tocando violão, estourando cidra vagabunda, e desejando feliz natal enquanto comentava sobre os presentes que haviam ganhado, sobre como não suportavam mais o Roberto Carlos, e se o SBT iria reprisar pela bilionésima vez o stop-motion de Rudolph - A Rena do Nariz Vermelho, tudo isso entre risadas cálidas e dividindo o tempo com pessoas que lhe eram caras. E Lauro ainda adorava o natal.
Mas chegou a idade adulta. Inúmeros afazeres, inúmeras obrigações, contas, trabalho, relacionamentos falidos, a perda de contato com amigos queridos, tantas mazelas, tanto estresse, tanta expropriação de tempo... mas, ao contrário do que se podia imaginar, Lauro não mudou seu jeito de ser. Continuava amando o natal. E não era mais pelos presentes, Lauro nunca ganhava o que queria, mesmo. O último presente de natal que Lauro ganhara e pensara "Uau, é exatamente o que eu queria" fora uma camiseta da Fiorentina, no distante ano de 1996. As pessoas viam Lauro como um adulto e lhe davam coisas das quais acreditavam que ele precisava, mas ele não ligava. Lenços, cuecas, meias, pra ele tanto fazia. Muito mais importante do que abrir os pacotes, muito mais importante do que cortar a ave natalina, ou assistir O Grinch pela enésima vez, era aquela sensação de calidez, aquela atmosfera de solidariedade que, por artificial que fosse, era melhor do que a indiferença natural da maioria durante o resto do ano. Lauro adotava cartas ao Papai-Noel nos correios. Ele comprava presentes de natal já no dia primeiro de dezembro, montava a árvore no dia cinco, passava o dia vinte e quatro todo no super-mercado, e o vinte e cinco lavando louça... E adorava isso sem se preocupar com o que pensavam os outros, pois sentia seu coração se aquecer, nem que fosse pelas lembranças de natais passados, ou pela esperança de natais futuros. u sou como o Lauro. Adoro natal, e desejo que o teu, seja tão bom quanto os melhores que passaram, mas não tão bons, quanto os melhores que virão.
Feliz natal, gurizada!

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Papo de amigo


-A real, mesmo, Fernando, é que ela era areia demais pro teu caminhãozinho...
-É...
-Tipo... Uma guria que nem a Aline, e um cara que nem tu... Pô, era certo que não ia durar, entende?
-Verdade...
-Quer dizer, ela é a musa dos sonhos eróticos de todos os caras da região, gostosa que não tinha mais pra onde ser gostosa, tipo, torta de tão boa-
-Porra, manera aí, tchê.
-Desculpa, tem razão... Bom, o meu ponto é que ela é linda. E não só isso. Também é inteligente, divertida, sociável... Pô, a guria é tudo de bom.
-Arram...
-E tu? Tu não é bonito. Não tem grana. Não tem nem carro. Não é inteligente, odeia todo mundo, nem bem dotado, tu é, Fernando. Queria o que com ela? Tipo, tu é um atraso de vida pra uma guria que nem ela. Se ela ficou contigo esse tempo todo, foi por pena, cara, porque, tipo, tu é um escroto.
-Entendo...
-Então, das duas, uma: Ou ela tinha pena de ti, o que, vamos combinar, é barbada, afinal, tu é digno de pena, mesmo. Ou ela sempre namorou caras tão escrotos, mas tão escrotos, que até tu era um pouco menos escroto que os ex-namorados dela, antes de ti, criando a ilusão de que tu valia alguma coisa, sacou?
-Acho que sim...
-No final das contas, meu amigo, é matemática pura. Mulher que nem a Aline mais um cara que nem tu, igual a rompimento.
-Obrigado, Raul. Já me sinto bem melhor...
-De nada, meu. Amigo é pra isso. Me dá mais uma cerveja.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Gelatina rosa


Ela e ele estavam parados na danceteria. Os dois com cara de manteiga amanhecida. Aquela cara que, tu sabe, que não tá boa, mas não é sempre daquele jeito? Então. Contrariados, os dois. Ela com as costas apoiadas em uma coluna de concreto cru cercada por vergalhões GG-50 e mexendo nas unhas com o cabelo caindo por cima do rosto. Ele com as costas apoiadas no balcão do bar, segurando uma lata de um energético com nome de rei-guerreiro.
Era impossível não notá-la. Os cabelos vermelhos, os olhos castanho-claros, as tatuagens, os lábios... Oh, meu Deus, os lábios... O nariz. Ele sempre gostara de narizes e o dela... Bom, era o número dele certinho.
Ela levantou os olhos e o viu olhando pra ela. Ele não chegava a ser feio. Se não fosse tão bagunçado, talvez até ficasse apresentável. Cabelo preto, barba, olhos castanhos... Era alto. Bem mais que ela. Quase alto demais pro seu gosto. Calça jeans, tênis, camiseta com o símbolo do Ben-10... Ele não era meio velho pro Ben-10? A olhou e sorriu. Ela pensou em disfarçar, fingir que não havia visto o sorriso, mas ele pareceu tão sincero que... Sei lá. Ficava até chato não retribuir. Sorriu de volta.
-Quanto tão te pagando? -Ele perguntou, ainda sorrindo.
-Quê? -Ela não tinha certeza se tinha entendido.
-Pra segurar essa coluna, quanto tão te pagando?
Ela deu um sorriso falso. Que abordagem idiota.
-A mesma coisa que te prometeram pra não deixar o balcão do bar cair. -Ela respondeu com uma ponta de raiva.
-Então te engrupiram. Não tão me pagando nada e ainda vão me cobrar onze pilas cada energético desses.
Ela sorriu. Dessa vez sinceramente. Começaram a conversar. Ela se chamava Renata, ele se chamava André. Ela estva lá por que uma amiga dela a arrastara pra festa de aniversário de uma colega de faculdade que ela não fazia nem ideia de quem era. A amiga dela se enturmou, ela, não. Gente estranha em grupos não eram sua especialidade. Resolveu se esconder um pouquinho, sair do fervo da pista de dança.
Ele estava lá por que um amigo dele brigara com a namorada e queria afogar as mágoas e precisava de apoio. Ao chegarem na danceteria deram de cara com quem? Com a namorada do amigo. Houve uma briga (A, foi isso aquela cena na pista, então...), mas eles se reconciliaram e foram embora juntos. Ele ficou sozinho com uma consumação de cinquenta e cinco reais pra eliminar. Cinco energéticos. Não dormiria até as olimpíadas. Nem café tomava.
Conversaram sobre vários tópicos. Música ruim, Noite quente. Vamos pra baixo do ar condicionado. Quase que pararam de conversar quando ela perguntou se ele era fã do Ben-10 e ele a corrigiu dizendo que aquela camiseta era do Lanterna-Verde.
Casualmente começaram a falar de talento, ao constatarem que a banda que tocava cover do Bon Jovi no palco não tinha nenhum.
-Tu tem algum? -Ele quis saber.
-Eu não sei... Tu tem? -Ela devolveu.
-Sim.
-Qual?
-Tu nunca vai adivinhar.
-Tu canta?
-Só no chuveiro. Tenta de novo.
-Pinta?
-Pintei a grade da porta do meu apartamento uma vez. Mais uma.
-Tu... Escreve?
-Não.
-Desisto.
-Eu mexo as orelhas.
Ela riu.
-Mexe as orelhas?
-Bom, na verdade, "A" orelha. É só a esquerda. Mas sim. Mexo a orelha e rasgo lista telefônica.
Ela continuava rindo.
-Isso são talentos?
-E não são? Poucas pessoas mexem as orelhas-
-A orelha.
-Isso. Poucas pessoas mexem uma orelha e rasgam listas telefônicas.
-Não sei se isso constitui um talento...
-Pôxa... Eu tava pensando em largar tudo e apresentar esse espetáculo em Las Vegas... Imaginava até o cartaz. Uma ilustração de mim rasgando a lista telefônica enquanto flutuava batendo a orelha feito o Dumbo...
-Não sei se daria certo...
-Não ouse tirar conclusões, tu ainda não viu nenhuma demonstração dos meus poderes...
-Não eram talentos?
-Ou isso.
-Tá bem. Então deixa eu ver uma demonstração.
-Quê? Assim, de repente, no meio de todo mundo?
-E em Vegas eles iam te deixar fazer isso escondido e te pagar por que tu disse que conseguia? Não mesmo. Faz de conta que eu sou a gerente do... Do Bellagio, e quero te contratar.
-Bellagio, não, do Caesar's Palace!
-Tá, pode ser, então. Caesar's Palace. Faça a sua demonstração, mister André. Show me what you got.
André parou de rir.
-E tu? Vai me mostrar algum talento?
-Eu não tenho nenhum.
-Nenhum?
-Nada.
-Nenhunzinho?
-Nopes.
-Duvido.
-Tô falando, guri.
-Deve ter alguma coisa. Procure por aí... Profundamente... Deve ter algo que tu faz bem, e se orgulha de fazer bem.
-Não...
-Vai lá...
A Renata encarou o teto por um instante enquanto respirva fundo.
-Ah! Já sei!
-O quê?
-Gelatina rosa!
-hã?
-Gelatina rosa, o doce aquele, sabe?
-Não...?
-Ai, é tipo gelatina normal, só que tu mistura com leite condensado, e ela fica rosa e opaca. Eu sei fazer. Eu ainda faço várias porções de outras gelatinas coloridas e coloco no meio, fica muito bom, e colorido, bonito, dá pra colocar frutas, também, é tri bom. Já me disseram que era a melhor gelatina rosa que haviam comido. Arrá! Taí o meu talento!
-Gelatina rosa, então?
-Yeah, beibe.
-OK, eu mexo as orelhas, tu me deixa provar a gelatina rosa, fechado?
-Hmmm...
-Não responda ainda! Olha, eu levo promessas muito a sério. Se tu me prometer a gelatina, eu mexer as orelhas-
-A orelha.
-Isso, se tu me prometer a gelatina, eu mexer a minha orelha, e tu não cumprir a tua parte no acordo... Olha, vão haver consequências, hein?
-Ai, que medão. Que tipo de consequências?
-Sei lá... Eu... Eu contrato uma macumbeira pra fazer um trabalho e tu nunca mais acertar a mão com a tua gelatina. Imagina o fiasco, em pleno natal e tu com os restos de uma gelatina rosa estragada nos braços pra desgosto dos teus familiares?
-Hmmm... Isso é grave.
-Pois é. Consequências. Te dou um tempo pra pensar se tu quiser.
-Não. Não precisa. Eu topo.
-Sério?
-Sim.
Apertaram as mãos.
-OK, mister André. Vamos ver essas orelhas se mexerem.
-Essa orelha.
-Isso.
O André flexionou os joelhos até sua orelha estar na altura dos olhos da Renata, e fixou o olhar no chão. franziu o cenho e, de fato, sua orelha esquerda se mexeu pra cima e pra baixo. Bastante até. A Renata não conseguiu segurar o riso.
-Ah, para... É só isso?
-Como assim, "só isso", mulher?
-Sei lá, pelo que tu falou achei que tu ia levantar vôo, ou algo do gênero. Isso não vale a minha gelatina. Quando muito um chiclete.
Estendeu um clorets na mão pra ele.
-Não... Peraí... Vamos renegociar, então. Eu rasgo a lista telefônica.
-Com tesoura?
-Não, palhaça... Pego ela por cima e rasgo ao meio, de mãos nuas. De cima abaixo.
-Sério?
-Séríssimo. Tava treinando pra ser o homem forte do circo.
-Cala a boca...
-Tô falando. E aí? Topa ou não topa?
-Tá. Topo. Faz aí.
-Mas aqui... Aqui eu não tenho nenhuma lista telefônica.
-Ih...
-Mas em casa tenho.
Ela olhou pra ele, sorrindo com os olhos. Ele sorria abertamente. De maneiras diferentes, os dois souberam naquele momento:
Se casariam, e teriam filhos fortes, capazes de rasgar listas telefônicas e doidos por gelatina rosa.

Rapidinhas do Capita Noel


Uma vez eu vi uma estrela cadente. Estava sentado na calçada da casa de praia da minha família, lá na Rainha do Mar, enrolado em uma coberta com minhas primas e as amigas dela. Tinha duas meninas, a Mariana e a Luíza, que deviam ter algum tipo de parentesco com a gente, sei lá, primas em décimo quarto grau por parte de trisavô, ou algo que o valha, que veraneavam na casa ao lado. Elas estavam lá, também. E eu era louco pelas duas. Sério. As duas, igualmente. Sonhava em namorar com elas, embora, aos nove anos de idade, minha ideia de namoro fosse bastante vaga. Ainda assim, eu nutria essa atração pelas duas. O engraçado é que, olhando em perspectiva, nenhuma delas era tão bonita assim... A Mariana talvez fosse, mas não era nenhum deslumbre... Talvez fosse por que elas eram mais velhas, deviam ter quatorze e dezesseis anos, acho, e me tratassem bem, conversavam comigo como se eu fosse um "adulto" da idade delas.
Engraçado como a gente só enxerga estrelas cadentes quando está louco por alguém...

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-Aricleme. -Ele disse carrancudo.
-Aricleme... -Ela repetiu como se estivesse tendo dificuldade pra acreditar.
-É. Minha mãe quis homenagear dois tios dela. O Ari e o Clementino. E quem pagou o pato fui eu.
-Ah... Não chega a ser tãããããããããããão ruim. -Ela disse dando uma ênfase toda especial ao "tão".
-Obrigado. -Ele respondeu, ainda muito sério. -Já me sinto bem melhor agora, por tu não achar o meu nome "tão ruim".
Ela ficou sem jeito.
-Não, tipo, não foi o que eu quis dizer, é que tu, sei lá, parece não gostar, também-
-Também...
-Não, desculpa, eu não quis dizer isso, eu-
-Não, não, para um pouquinho. Para aí. Qual o teu nome, espertalhona?
-Bárbara.
-Bárbara...
-Isso.
Ele pensou um pouco. Fazia sentido, mesmo. Ela era, de fato, bárbara, e ele era, de fato, aricleme.

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-Olha, Jurandir... Eu não te amo.
-Beleza.
-Beleza?
-Beleza.
-E... Tipo... Isso não te incomoda nem um pouco?
-Nah.
-Bom... Então... Hã... Vou indo lá.
-Não quer ficar mais um pouco?
-Quê?
-Não quer ficar mais um pouco aqui comigo?
-Hã... Tu quer que eu fique mais?
-Quero.
-Sério?
-Sim.
-Mesmo?
-Arram.
-Mesmo eu não te amando?
-Eu te amo o suficiente por nós dois.
Casaram.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Rapidinhas do Capita Noel


Asturion acordou antes do sol, ainda estava escuro quando ele saiu de sob suas cobertas de pele e andou trôpego até o lago próximo. Após atender ao chamado da natureza e lavar o rosto com a água fria, ele encarou o céu daquela gélida manhã de inverno e constatou que podia seguir viagem, pois era improvável que voltasse a nevar. Acima das colinas tingidas de branco pelo gelo, ele pode discernir com alguma clareza, á despeito da distância, as formas de um grupo de homens à cavalo. Oito, talvez mais. "Mercenários" ele pensou enquanto atava com firmeza a bainha da espada ao cinto e mordia um pedaço de carne seca.
Apagou sua fogueira, colocou seu arco e sua aljava nas costas e tomou o rumo do norte. Talvez se encontrasse com os mercenários, talvez, não. Talvez eles fossem amistosos, talvez não. Talvez houvesse uma luta, talvez, não. Mas era bom, pensou Asturion enquanto checava o fio da lâmina de sua espada, estar preparado para o pior.
Centenas de anos depois, Alésio estava acordando em sua casa, confortavelmente deitado em sua cama com o braço sob o travesseiro de plumas anti-alérgicas. Levantou gemendo por conta do braço dormente enquanto empurrava seu edredon de verão, e andou até o banheiro. Fechou a janela pois estava frio naquela manhã. Atendeu ao chamado da natureza, lavou o rosto, e voltou para o quarto onde vestiu sua camiseta e suas calças jeans. Apanhou um par de meias brancas na gaveta das meias brancas, e as calçou enquanto olhava para a divisória de sapatos do guarda-roupa e escolhia um tênis para usar naquele dia. Tinha que ter amortecedores, pensou Alésio, pois sua coluna doía.
Ligou a TV no canal de meteorologia e viu que havia sessenta e quatro por cento de chance de chover, apanhou um casaco, e mordeu vigorosamente uma nectarina enquanto saía rumando para o trabalho. Antes de fechar a porta, porém, viu seu guarda-chuva pendurado no armário da cozinha. Talvez chovesse, talvez, não. Talvez ele se molhasse, talvez, não. Talvez pegasse uma gripe, talvez, não. Mas era bom, pensou Alésio, enquanto testava o botão de abertura de seu guarda-chuva, estar preparado para o pior.
Cada um a seu modo, Asturion e Alésio, eram pessimistas natos.

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O Luciano estava feliz da vida, encontrara o que acreditava ser a mulher ideal. Ela era bonita, divertida, simpática, inteligente, engraçada tinha bom gosto pra música, pra filmes, pra leitura, era nerd, mas não em excesso, gostava de se exercitar ao ar livre, e tinha uma qualidade meio molecona que só a deixava mais atraente. O Luciano não podia acreditar que aquela guria existia, jamais imaginara encontrar uma mulher que se encaixasse tão, mas tão bem no seu ideal feminino. Luciano pensava nela, e imediatamente sorria. Pensava se devia fazer um movimento, se devia convidá-la pra alguma coisa, ou, pelo menos, pedir o MSN dela, quem sabe. Imaginava como era sortudo de ter encontrado aquela moça. Imaginava ser sortudo até se dar conta que ela vivia a mais de mil cento e sessenta quilômetros de distância.
-Ah... Agora faz sentido.
Pensou Luciano olhando o mapa.

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Agora ruim, mas ruim, mesmo, é quando as músicas do Abba começam a fazer sentido.

Distância


O Alípio estava sentado no banco da praça pensando na Rejane. No que fazer. Estava confuso, agoniado. Não sabia, não conseguia saber o que fazer. Pensava:
São pequenas coisas, não são? São sempre elas, as pequenas coisas, no final das contas, que parecem fazer toda a diferença, e ganham uma proporção tão grande que chamá-las de "pequenas coisas", chega a ser risível.
Nós imaginamos que estamos bem, que estamos seguros, que está tudo sob controle, mas aí... Bom, digamos que nossa ilusão de segurança e controle é posta tão, mas tão a prova, que o doutor Banner ficaria orgulhoso do auto-controle que tu teve que demonstrar mais de uma vez em um período bem curto de tempo.
Por uma bobagem, uma coisinha. Um toque diferente, que causou uma sensação diferente. Um gesto, que em uma outra situação passaria despercebido, mas ali, naquele momento, naquela situação, fez toda a diferença.
Mas é uma estrada de duas mãos, não é? Que vai do proverbial Céu, aquele com "C" maiúsculo, ao inferno. E pequenas coisas também podem gerar o efeito mais reverso de todos. Aquele distanciamento, e aquela frieza que... Bom, meio que são a tua marca registrada, apesar de não ser algo que tu cultive por livre e espontânea vontade, mas enfim, tá ali, e é difícil de evitar. Ás vezes tu não quer ler nas entrelinhas, tu quer olhar pra lá e ver apenas espaços em branco, mesmo. Mas criaturas desconfiadas como tu não conseguem fazer isso, não é? É difícil se livrar de certos hábitos, especialmente quando ele se mostraram tão úteis e funcionais no passado. E aí elas aparecem, as minhocas que tu alimenta com vitaminas e sais minerais pra ficarem bem, mas bem gordas, poderosas e resistentes e entrarem na tua cabeça.
E tá tudo lá. Tudo o que alguém desconfiado como tu precisa pra bolar teorias conspiratórias. Nada mais perigoso que um visionário pessimista. E era isso que o Alício era. Um visionário pessimista. Ele imaginava cem cenários possíveis, todos eles com desfechos trágicos. O mais correto, pensava Alício, era manter a distância, aumentá-la se possível, aumentá-la e muito. Mas aí... Aí ele perderia algumas coisas, pequenas coisas, que vindas dela ganhavam toda uma outra dimensão.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Rapidinhas do Capita profundamente contrariado com o fiasco colorado.


Pois foi sorrindo que a Amélia se aproximou do Severino no meio da quermesse. Ele lá, todo nervosão, com botina, calça de brim, camisa xadrez e cabelo penteado. Até tinha aparado aquele bigode de carroceiro dele, sabe aqueles bigodes? Que crescem com poucos fios e acima dos cantos da boca? Pois é, o Severino tinha um desses, deixava a Amélia louca da vida. Pois não é que o Severino aparou aquela porcaria? Sumiu o tal do bigode, até apresentável ele ficou. A Amélia chegou perto dele sorrindo, e o pegou pela mão. Dançaram, ele muito nervoso, olhando pro chão pra não pisar nos pés dela, calçados com delicadas chinelinhas plásticas transparentes. Quando começou uma música lenta, e eles dançaram com os corpos colados e olhos nos olhos, a Amélia apoiou a cabeça na junção do pescoço e do ombro do Severino, o nariz e os lábios dela tocando na pele dele, nossa. O Severino quase desmaiou, chegou a sentir um formigamento na parte de trás das côxas que pensou que fosse precisar sentar, mas acabou a música.
Comeram algodão doce, pamonha e tomaram quentão. Depois, a Amélia conduziu o Severino até atrás de um galpão próximo, e eles se beijaram muito, durante muito tempo. Se beijaram com sofreguidão, de ficar com os lábios vermelhos e precisar fazer "ahm" pra recuperar o fôlego entre um beijo e o outro. As mãos de Amélia passeavam pelo peito, pelas costas e pelo pescoço de Severino, ele passava as mãos na cintura, nos quadris e na barriga de Amélia.
Após algum tempo, ele a olhou nos olhos, encantado, e disse:
-Amélia, eu te amo...
Ela sorriu e respondeu:
-Se eu te amar te aviso. Por enquanto, não te ilude e aproveita.

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A Verinha e o Osmar eram unha e carne. Tavam sempre juntos. Se davam super bem, amigos, mesmo, de longa data. Se conheciam a anos. A amizade dos dois já havia sobrevivido a namoros de um e de outro, a casamentos e noivados, a viagens e mudanças, havia sobrevivido até a outras amizades e sempre perdurara.
"Vocês deviam era casar um com o outro!" diziam as pessoas que conheciam ambos. Até que fazia sentido. Se eram tão próximos, se se entendiam tão bem, se eram tão importantes um para o outro, por que não?
Pro Osmar era bem simples, ele se sentia, de fato, atraído pela Verinha, além de adorá-la do fundo do coração, era um sujeito persistente, e estava disposto a abrir precedentes para fazer funcionar o que ele considerava uma belíssima chance de viver algo muito bacana, nem teriam de ser muitos precedentes, Verinha e ele tinham tanto em comum que o convívio dos dois era relativamente fácil, escetuando-se algumas radicais diferenças de personalidade que não chegavam a ser nenhuma tragédia grega.
O Problema era Verinha. Verinha também adorava Osmar. Verinha também se sentia atraída por ele, Verinha também achava que os dois combinavam em muitas coisas, que o tempo que passavam juntos era sempre tempo bem gasto, e que, com um pouquinho de esforço de parte a parte, podiam fazer as coisas funcionarem. O Problema é que Verinha não esquecia de nada. Nunca. A Verinha era um banco de dados wireless, que não esquecia virtualmente nada, especialmente coisas que se referiam ao Osmar. E Verinha vira como haviam acabado vários dos relacionamentos dele. Verinha vira-o sabotar relações com pessoas que ela considerava melhores do que ela própria e considerava, baseado no que ela sabia de Osmar, e ela sabia muito, mais próximas do que ele desejava. E, se perguntava como seria se, em algum momento, o Osmar se cansasse dela, o que podia acontecer a qualquer momento quando ele percebesse que ela não era quem ele idealizava.
Era quando pensava nisso que a Verinha cravava firmemente os pés no chão e não se deixava levar. Pois tinha medo demais de ver a amizade tão bacana que fora construída ao longo de anos ser ameaçada por uma decisão mal pensada de sua parte.
Ainda assim, em várias ocasiões, ela olhava pro Osmar quando ele se distraia e suspirava pensando se não valeria a pena dar um salto de fé...

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TRADUÇÕES:

Ele disse:
-Claro que eu sei que dia é hoje, e já tô com tudo preparado, inclusive, me espera que eu vou te buscar na saída do trabalho pra gente sair juntos e comemorar.
Mas, na verdade, ele quis dizer:
-Ai, cacete, o que foi que eu esqueci dessa vez???!!!

Ele disse:
-Não, Dulcinéia, eu te acho muito bonita, mas eu não te vejo dessa forma, a gente se conhece a tanto tempo que, sei lá, eu acho que só consigo pensar em ti como amiga...
Mas, na verdade, ele quis dizer:
-Não, Dulcinéia, fala sério, tu é um canhão, mulher, nem sob efeito de grandes quantidades de álcool, vamos ser francos, eu já te faço um favor sendo teu amigo...

Ele disse:
-Olha, Tainá, acho que a gente não deve mais se ver, eu te acho linda, inteligente, divertida, mas ficou bem claro que faltou alguma coisa entre nós, sabe? Alguma coisa da nossa química não deu liga, ás vezes acontece, ás vezes, não, infelizmente, acho que acontece, mas olha, ia significar muito pra mim se nós continuássemos sendo amigos.
Mas, na verdade, ele quis dizer:
-Olha, Tainá, acho que a gente não vai mais se ver, eu te acho muito gostosa, maior tesão e tudo, mas tu é muito puritana. Eu esperava que uma gostosa que nem tu fosse dar logo no primeiro encontro, por que eu não tô disposto a me amarrar com ninguém. Enfim, espero que tu não saia dizendo por aí que eu tentei te comer logo de cara, hein?

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Não mexa com quem está quieto...


A Nena e o Décio, sentados no bar, desde que se conheceram que o Décio deu em cima da Nena. Ela era bonita, loira, alta e magra. Tinha um ar meio escandinavo, algo frio, mas era simpática, educada, muito inteligente e reservada. O Décio era um sujeito mais comum. Cabelo e olhos castanhos, um e oitenta, era extremamente expansivo, boa-praça, e meio mulherengo, meio escamoso, tinha aquele ar de galã de rodoviária e não economizava latim quando queria sair com uma moça. Assim que Nena apareceu com a Carlinha em um churrasco da turma, o Décio a notou. E só piorou conforme a Nena ia se tornando um pouco mais próxima de todos a ponto de ser considerada "da galera". O Décio começou a assediar a Nena. No bom sentido. Nada de grave. Talvez a expressão mais correta fosse "cortejar" a Nena. Fazia gentilezas, servia bebida, quando assava o churrasco dizia que estava preparando a carne favorita dela "do jeitinho que ela gostava", essas coisinhas. A questão é que a Nena não dava lá muita abertura pras investidas do Décio, nem o atalhava de maneira violenta, de modo que ele seguia tentando. A Nena continuava não lhe dando bola, mas, ao mesmo tempo, parecia não se incomodar muito em ser cortejada por ele, não levava a mal, nem nada, e ele, percebendo isso, foi se prevalecendo, começou a pegar pesado com o seu assédio, mas ela nem aí, não dava nenhuma bola pra ele.
-Nena... Foge comigo, Nena, hoje. A gente se enfia em um motel barato lá na Farrapos e fica o final de semana inteiro explorando o corpo um do outro, parando só pra comer coisas vagamente brancas e beber champagne...
-Champagne em um motel barato da Farrapos, Décio? Acho brabo, hein?
-Eu levo o champagne, Nena, vou comprar agora, depois a gente só entra no carro e vai pro motel. Eu quero conhecer o teu corpo, Nena, quero saber o sabor e o aroma dele em todas as horas do dia, conhecer o ruído que tu faz quando dorme, te ouvir ronronando feito uma gata enquanto-
-Tu quer me ouvir roncar? Tu quer me arrastar pra um motel barato da Farrapos, me encher de champagne e me ouvir roncar?
-Qual é, Nena... Eu quero saborear tudo o que tu for fazer, se tu dormir, se tu for tomar banho... Tudo.
-Sai fora, Décio...
-Vamo lá, Nena, me dá a chance e eu vou fazer coisas inomináveis contigo, juntos nós vamos realizar prodígios que tu vai levar pro túmulo, por mais que não fiquemos juntos, ao longo dos anos, quando tu tiver um tempinho em algum momento do dia e parar e pensar, tu vai suspirar, e vai ser por causa desse final de semana...
A Nena encarou o Décio com a mesma expressão indefinida de sempre:
-Tá bom.
-Como assim, "tá bom"? - Perguntou o Décio, confuso.
-Tá bom, vamos. Vamos lá realizar prodígios, eu quero que tu faça coisas inomináveis comigo. Em algum momento eu vou me casar, ser uma mãe de família, e talvez me arrependa de não ter feito uma bobagem ou uma loucura antes, então vamos. Vamos fazer coisas abjetas em um quarto mequetrefe de motel. Vamos inventar nomes esdrúxulos pra posições sexuais inimagináveis. Vamos ficar com certo asco de nós mesmos por algum tempo.
O Décio riu, nervoso:
-Sério?
-Seríssimo. Vamos lá, vamos estremecer os pilares das convenções sociais, vamos desconsiderar a anatomia e as funções fisiológicas do corpo humano. Eu vou te mostrar quão flexível uma mulher pode ser sob efeito de champagne.
-Arram... Tá... Hã... Quando tu quer ir? Por que tipo, hoje eu não sei se vai dar, tinha ficado de-
-Agora.
-Quê? - Décio não conseguiu esconder o tremor na sua voz.
-Agora. Me leva agora. No carro eu já vou começar a fazer coisas que vão te deixar de cabelo em pé, Décio. Aliás, esquece o champagne, eu vou te mostrar toda a minha flexibilidade sóbria, mesmo. Depois do que eu fizer contigo, tu nunca mais vai olhar as mulheres da mesma maneira.
-Olha, Nena... Pensando bem, eu acho que talvez a gente possa deixar pra semana que vem, ou, sei lá, pra outra, eu não quero-
-Não me enrola, Décio, tu não sabe o que tu fez comigo, agora eu quero, e quero já.
-Tá, olha, o pessoal me chamando lá. Nos falamos, viu, Neninha. Beijo.
O Décio saiu nervoso pelo bar, esbarrando entre as mesas, sob o olhar frio de uma sorridente Nena, que nunca mais foi importunada por ele novamente.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Mentiras.



-Eu mentia muito quando era pequeno, sabe?
-Ah, é? - Ela perguntou, incerta.
-É. Horrores. - Ele confirmou. -Não sei por quê. Vai ver... Sei lá. Eu era muito tímido... Ainda sou, mas naquela época era pior. Eu não me encaixava, sempre me sentia deslocado, aí, de repente, querendo me incluir nos grupos decerto, eu começava a mimetizar as histórias e as qualidades que eu achava que tornavam os outros bem aceitos... - Conjecturou. -Eu era um personagem diferente em cada grupo que eu frequentava, entende? Um simulacro de um moleque diferente de mim, com outro background, que vivia outra vida e tinha outra personalidade. O engraçado é que era um processo muito rudimentar, eu não praticava antes, não tinha histórias prontas pra contar, nem nada, apenas ia improvisando.
-E funcionava? - Ela perguntou, curiosa.
-Na maior parte das vezes, pelo menos para relações de amizade que fossem maiores do que brincar na praça, ou jogar no mesmo time, não. Eu sempre acabava sendo desmascarado. - Ele confirmou, sorrindo triste.
-Que judiaria. - Apiedou-se ela.
-É... Bom, o lance é que ser desmascarado não me fez ficar com vergonha e largar mão de ser um mentiroso. - Ele se recriminou. -Antes tivesse. As vezes em que eu fui pego, só me fizeram refinar o meu método, acrescentar detalhes, elaborar melhor as lorotas, chegou a um ponto em que eu mentia descaradamente sem parar. O tempo inteiro. - Confessou ele.
-Puxa, mas e ninguém notava? - Ela quis saber, franzindo as sobrancelhas.
-Não... O pior é que não. - Ele relatou. -O método era perfeito por causa do equilíbrio. Eu não cometia grandes arroubos fictícios, eu contava mentiras moderadas, bobagens que ninguém teria por que mentir. Logo, ninguém descobria a verdade de jeito nenhum, não havia por que desconfiar de mim. Eu não inventava que era astronauta, nem que meu pai era caubói, nem nada assim, eu não queria ser ninguém em particular, eu só não queria ser eu, entende?
-Sim - Ela entendeu. -Pobrezinho... E o que aconteceu?
-Bom, a infância transcorreu sem maiores problemas, como eu te disse, eram mentiras inofensivas, não geravam nenhum tipo de consequência, eram apenas um mecanismo de defesa, o problema foi que eu fui crescendo... E as mentiras começaram a se tornar mais pesadas, mais elaboradas, requeriam um grau mais alto de interpretação, ou acessórios, e, com isso, se tornavam mais dispendiosas. Eu comecei a precisar de dinheiro. - Ele confessou, misterioso.
-Ai, tu roubou...? - Ela indagou, alarmada.
-Não. - Ele a tranquilizou. Mas então deteve-se e se corrigiu. -Bom, não de fato. Eu pedia dinheiro. Pedia dinheiro mentindo para o que era. Acho que dá no mesmo que roubar, não é? Moralmente falando... - Inquiriu, confuso. -Enfim, eu comecei a pedir dinheiro pra todo mundo. Pedia dinheiro pra minhas duas avós, pros meus dois avôs, minhas tias, tios, meu pai e minha mãe, todos no mesmo dia, pra fazer a mesma excursão, ou comprar material pro mesmo trabalho escolar.
-Entendi... - Entendeu ela.
-A questão é que, conforme as mentiras se espalhavam e se tornavam maiores e mais caras, o dinheiro formava uma trilha, um rastro, e ficava mais fácil, por conta disso, chegar até o autor da mentira, e, por consequência, à verdade. - Ele explicou. -Foi quando eu fui pego. Tinha pedido grana pra todo mundo dizendo que iria à Gramado e Canela com a escola em um final de semana, quando, na verdade, era pra comprar a camiseta de um clube de futebol Argentino com nome e número pois eu havia mentido pra alguns colegas que iria a Buenos Aires. Percebeu a sinuca? Uma mentira levou à outra... - Ele reconheceu, abanando a cabeça em sinal de reprovação. -Enfim, acabou que a minha avó ligou pro meu pai preocupada se eu havia levado roupas quentes pra excursão, pois era inverno, e a meteorologia apontava baixas recorde de temperatura na serra. Meu pai disse que eu saíra agasalhado, mas que minha avó nem precisava se preocupar pois eu voltaria no mesmo dia. Ela disse que se preocupava, e que até tinha me dado dinheiro a mais pra viagem pra alguma emergência. Foi quando meu pai disse que já tinha me dado dinheiro. Minha mãe ouviu a conversa e disse que tinha me dado o dinheiro, também... Virou uma avalanche. Todo mundo tinha me dado o dinheiro pra mesma excursão. Ainda tentaram não fazer juízo temerário, pelo contrário, acharam que eu tivesse sido um bom menino e dividido o preço de uma excursão caríssima entre vários familiares. Ligaram pro colégio pra saber qual era, afinal, o preço cobrado pela excursão...
-Ai... - Ela gemeu, antevendo o desastre.
-Pois é. Foram informados que não havia nenhuma. - Ele confirmou, baixando os olhos.
-E aí? Te castigaram? - Ela quis saber.
-Não... Foi pior - Ele disse. -Pensaram que eu estava envolvido com drogas, que estivesse devendo dinheiro pra traficantes. Fui ao médico, fiz exames de sangue, de urina, tudo. Mas não me drogava, meu único barato era desempenhar papéis, ser outras versões de mim mesmo.
-Tu disse pra eles? - Ela perguntou, acariciando-lhe a perna.
-Não. Tive vergonha. Muita vergonha. - Ele admitiu. -Já tinha quase quinze anos, e me dei conta de que não era mais aceitável viver inventando histórias como aquela. Eu mentia coisas que não faziam nenhum sentido, apenas tentando ser mais interessante, ser diferente. Eu simplesmente mentia, sem perceber que meus amigos gostavam de mim e eram meus amigos independente das coisas que eu inventava, até por que, entre eles e eu, não havia segredos nem mentiras, mas ainda assim, eu insistia.
Riu, amargo:
-Havia até um certo corporativismo mentiroso da minha parte, pois quando eu percebia que outra pessoa mentia, e estava prestes à ser pega, eu a ajudava, enriquecia a narrativa dela, e prestava falso testemunho. As poucas vezes em que eu era pego eram um vexame que me demolia por dentro e só me fazia mentir mais e mais e mais. Foi quando decidi que pararia de mentir. Pra sempre. Pra tudo. Mesmo. Não desmenti nenhuma das histórias que não haviam sido descobertas, não tive essa grandeza, mas parei de mentir. Pelo menos o quanto pude. - Remendou, envergonhado. -Nos anos seguintes, eventualmente eu ainda me flagrava mentindo bobagens, simplesmente saía, compulsivamente. Mas fui aprendendo a controlar, e hoje, hoje posso dizer que falo apenas a verdade. - A apanhou pelas mãos e a olhou nos olhos:
-E a verdade, Mabel, é que eu sou louco por ti, e jamais, nunca, em tempo algum, eu teria saído com aquela biscate da Irene, ela tem um problema, um problema que nem todos conseguem controlar. A gente precisa entender, e se afastar, torcendo pra que ela consiga superar isso. Tu acha que nós podemos fazer isso?
-Ai, Viktor... - Mabel mordeu o lábio inferior olhando para aqueles olhos emoldurados por cílios do tamanho de canetas Bic...
-Tá... Tudo bem. Vamos nos afastar dela. Se tu conseguiu, talvez ela consiga, também.
O beijou.

Viktor de SanMartin, o canalha, atacara novamente.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Sorrisos


"Calças novas" foi o que pensou o Túlio quando sentiu o pé esquerdo deslizar sob o peso do movimento de seu passo e iniciou uma abertura de espacate que nem o Van Damme arrisca hoje em dia. A abertura, claro, jamais acabou com os testículos de Túlio colados no chão. Ela encontrou seu limite no final da pouca elasticidade das calças jeans que ele usava. Bom, quase, ela, a abertura, ainda seguiu por uma fração de segundo, por mais dois ou três centímetros, que pareceram durar uma eternidade quando Túlio percebeu o ruído inconfundível de tecido se rasgando. Ato contínuo, ele ouviu o som da borracha de seus tênis gritando contra o piso molhado enquanto seu tornozelo direito levava seu joelho vizinho a um passeio que requeria movimentos que nenhuma das duas articulações fora projetada para realizar. Obviamente, aquele tipo de tombo acabaria em torção séria, quiçá fratura. Mas isso apenas de Túlio tivesse ousado tentar se equilibrar. Túlio não tentou. Não houve tempo para tanto. Ele simplesmente tentou absorver o que acontecia ao seu corpo enquanto despencava de encontro ao chão molhado do shopping como aquele proverbial saco de batatas. O próximo som que Túlio ouviu foi o de seu cotovelo esquerdo batendo violentamente contra o assoalho, seguido de um ruído amalgamado de suspiro e gemido que ele expeliu no momento exato em que suas costas encontraram o mesmo destino. Manteve o pescoço firme, evitando, assim, bater também com a parte de trás da cabeça no chão. Quando ouviu as risadas dos transeuntes, assim como o som de sua dignidade se estilhaçando, imaginou se não teria sido melhor simular um desmaio e continuar no chão por alguns minutos, ao invés de se levantar o mais agilmente possível do chão e olhar em volta com um sorriso amarelo de embaraço. Entre as pessoas que riam, se destacou o faxineiro, que ria abertamente, em alto e bom som segurando uma daquelas placas amarelas de "Cuidado: Piso molhado", uma senhora velhinha que precisou ser amparada pelo marido por que perdeu o ar de tanto rir, e, pior de tudo, a Isadora.
Isadora era a ex-namorada do Túlio. Haviam terminado o relacionamento meses antes, moravam próximos, partilhavam um círculo de amizades em comum, mantinham uma relação cordial, e Túlio, secretamente, ainda sonhava em reatar com ela, uma vez que nem sequer chegara perto de nenhuma outra mulher desde então. Agora, ali estava a dona de suas afeições, se aproximando sem conseguir disfarçar as risadas, e perguntando-lhe se ele estava bem.
-Tô, tô. Foi só um tombo, só o susto.
-Ah, ainda bem, na hora fiquei preocupada, mas tu te levantou tão rápido que não deu pra não rir.
-É...- Respondeu Túlio sem muita convicção, olhando pro faxineiro e pra placa de alerta com o mesmo olhar de Jack Torrance pra sua esposa através do buraco na porta do banheiro. Isadora continuou enquanto o faxineiro se afastava:
-Olha, eu vou comemorar o meu aniversário amanhã.
-Mas teu aniversário é só no dia vinte...
-É, mas eu vou estar na praia, aí, vou fazer uma festinha amanhã, numa danceteria ali pertinho de casa, nada de muito extravagante por que eu sei que tu não iria, então, se tu puder dar uma passada lá, eu ia ficar muito feliz.
-Tá, tá bom, vou ver se consigo.
-Deixei teu nome na lista, é só apresentar documento na entrada. Tchau.
E lá se foi Isadora, serpenteando lânguidamente shopping afora com o seu vestido lilás, e a cabeleira negra esvoaçando, deixando atrás de si Túlio, dolorido, humilhado e ainda apaixonado por ela.
"É isso.", pensou um decidido Túlio. "Eu vou na festa. Vou levar um presente, vou escrever o cartão mais romântico da história da humanidade, e vou reconquistar a Isadora.".
O faxineiro passou novamente, conversando com outro, cochichou alguma coisa apontando com o queixo pro Túlio e os dois saíram rindo.
"E jamais serei humilhado de novo.", pensou Túlio enquanto rumava à uma loja de roupas para comprar as calças novas de que precisava.
Túlio entrou em uma loja de grifes ao invés da loja onde ia sempre. Queria estar abafando pra reconquistar Isadora. Lembrou de não voltar a usar a expressão "abafando" novamente, pois era demasiado gay. Se dirigiu à uma vendedora e disse:
-Preciso de calças jeans. Calças jeans descoladas.
-Claro, vem comigo.- Respondeu a vendedora, uma loira graciosa de mais ou menos um metro e meio de altura que parecia funcionar com pilhas alcalinas.
Ela arrastou Túlio até o fundo da loja e mostrou-lhe pelo menos onze modelos diferentes de calças. Túlio nem sabia que existiam tantos tipos diferentes de calças jeans. Experimentou à exaustão, entre uma calça e a outra ouvia os conselhos e opiniões da vendedora, Júlia, que não poupava palavras pra dizer se tinha ficado bem, ou não, o modelo experimentado. Ao menos era honesta. Das oito calças experimentadas por Túlio, apenas três receberam o aval feminino dela. Suas opiniões pras outras cinco foram de "Não tá bom, não" a "Nem com reza brava", enfim ela o ajudou a escolher dois modelos, dos três finalistas, que couberam na parcela do cartão de crédito de Túlio.
-Vou colocar na sacola, pra ti.
-Não precisa, não. Eu vou usando essa.
-Pra ela ir modelando?
-Não... Bom, também, mas por que a que eu estava usando rasgou após um pequeno acidente.
Túlio exibiu o rasgo rente á costura do fundilho da calça.
-Ah, mas isso tu conserta. Conheço uma costureira que dá jeito nessa calça e meia hora, deixa ela jóia.
-Nah. Obrigado, não quero mais essa calça.
-Mas ela tá perfeita. Olha a cor, a textura do tecido, o puído do lado do joelho... Pô, essa calça é o que todas as calças jeans tem que se tornar um dia...
Túlio riu:
-É... Bom, acho que ela já foi isso, e mais um pouco. Agora ela é lixo. Pode jogar fora pra mim?
-Claro...
-Obrigado.
Túlio saiu pelo shopping desfilando com suas modernosas calças jeans descoladas, de tecido índigo bem escuro, corte mais largo, com botões ao invés de zíper, sentia-se mais confiante, mais atraente, mais fashion. Lembrou-se de não voltar a usar essa expressão, "fashion", novamente, pois era muito gay. Entrou em outra loja, e comprou um perfume de Nina Ricci, em outra loja, dois ursinhos de pelúcia costurados um ao outro, presos em um abraço eterno, foi à uma terceira loja e comprou papel, caneta e um envelope especiais. Voltou pra casa e escreveu a mãe de todas as cartas de amor. Tão doce que devia ser mantida fora do alcance de diabéticos, tão poética que faria Pablo Neruda corar de vergonha, tão honesta que seria barrada pelos correios se fosse enviada à Brasília. Com satisfação Túlio deitou para dormir, pensando no dia, ou melhor, na noite seguinte.
Dormiu, acordou-se, foi trabalhar, tudo normal, pelo menos até sair do trabalho. Foi à academia, malhou feito um alucinado na esperança de que seus músculos ainda estivessem inchados horas mais tarde quando fosse para a festa. Depois, correu até em casa, tomou um longo banho, passou gel nos cabelos, fez a barba, perfumou-se, escovou os dentes, pasou fio dental e gargarejou um anti-séptico bucal, depois encarou o espelho e mprovisou um sorriso de má vontade.
Vestiu uma cueca boxer branca que a Isadora adorava, suas novíssimas e descoladésimas calças jeans, sapatos pretos e uma camisa preta que Isadora lhe dera de presente no seu último aniversário, e foi-se para a tal danceteria disposto a reaver o coração da mulher que amava.
Chegou ao clube, mostrou os documentos à recepcionista, e adentrou o salão da danceteria com o pacote de presente na mão esquerda. Imediatamente distinguiu, à distância, Isadora. Linda. Parada entre várias amigas. Ela abriu um grande sorriso ao vê-lo, andou em sua direção, pousou em seu braço a mão delicada que ele tivera na sua durante tantos passeios, e se pôs na ponta dos pés para beijá-lo no rosto, ah, aqueles lábios, aqueles lábios que ele tivera colado nos seus em tantas ocasiões...
-Que bom que tu veio. Achei que não ia querer vir, tá sempre ranhetiando pra sair de noite...
-Mas sempre saí, não é? O que tu não me pede rindo que eu não faço chorando?-Rebateu Túlio, achando o máximo aquele início de conversa -Te trouxe uma coisa.
Estendeu o pacote para Isadora. Ela pegou agradecendo. Ele se inclinou pra frente, e a beijou no rosto, no fim do maxilar, abaixo da orelha, "perfeito", pensou enquanto procurava justamente aquele ponto pra beijar.
-Feliz aniversário, Isa... Tudo de bom.
Ah, o cheiro dela... a textura de sua pele, era tudo tão bom, o som da risada, a temperatura do seu hálito. Por que eles haviam terminado, mesmo? Ele nem lembrava. Ele ergueu a mão e pousou a ponta dos dedos finos na nuca dele. "É agora, pensou Túlio", "Ela vai me beijar e ela e eu voltaremos a ser 'nós'.".
Mas Isadora não o beijou. Endireitou-se e fez com que Túlio se endireitasse, também.
-Eu quero te apresentar uma pessoa.
O Túlio, imediatamente, imaginou de que se tratava. Sua suspeita só começou a ganhar corpo conforme o sujeito, bem mais velho, na casa dos quarenta anos, se aproximou sorrindo. Usava camisa azul clara e calças brancas. "Parecia uma porra de iatista." diria Túlio mais tarde. Isadora o chamou, e indicou Túlio com a mão espalmada:
-Walter, esse é o Túlio.
O Walter sorriu como se tivesse novecentos e oitenta e quatro dentes e ergueu as sombrancelhas:
-Esse é que é o famoso Túlio?
E agarrou com firmeza a mão de um murcho Túlio, sacudindo-a vigorosamente.
-Porra... Ouvi falar muito de ti, rapaz.
Isadora esperou Walter terminar e disse, dirigindo-se a Túlio:
-Túlio, esse é o Walter. Meu-
"Tio, chefe, pai adotivo, padrasto, supervisor, guru espiritual, professor, encosto (Graças a Deus tu também enxerga!)" suplicou Túlio em silêncio, mas Isadora concluiu:
-namorado.
"Nãããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããão!"
-Opa, tudo bem, Walter? Prazerão, tchê. -Respondeu com um sorriso mais falso que nota de três reais.
-Todo meu.
Conversaram brevemente, o Walter parecia um sujeito legal (Velho desgraçado, miserável, desavergonhado, não se enxerga?), mas Túlio não se sentia em condições de conversar muito, especialmente quando Walter enlaçava a cintura de Isadora com aquele braço coberto de pêlos grisalhos e a beijava entortando a boca pra não desviar os olhos dele enquanto falava.
Túlio se afastou. Olhou em volta e viu unicamente as amigas de Isadora que sempre odiara. Os amigos em comum que tinham não haviam comparecido. Esperou que Walter e Isadora se afastassem e correu até a mesa, foi direto até a sacola onde estava seu presente, e subtraiu o cartão. Uma amiga de Isadora, Ludmila, se aproximou:
-Tá pegando o que, daí?
-Vai pro raio que te parta, piranha da Cidade Baixa!
-Quê?
-Um papelzinho que acabei esquecendo dentro da caixa!
Foi pro balcão do bar. E, com uma consumação considerável para gastar, bebeu. Bebeu todas. Bebeu até perder a sensação nos dedos. Bebeu até perceber que gastara o dobro do consumo mínimo. Resolveu ir embora. Levantou-se com suas fabulosas calças descoladas, e cambaleou com dificuldade até o banheiro. Parou em frente ao mictório e apoiou-se com a testa na parede, procurou o zíper das calças, mas não encontrou.
"Botões", lembrou-se.
Com a coordenação motora bastante prejudicada, se pôs a procurar os botões no fecho da calça, encontrou, mas o álcool cobrava seu preço, e os dedos de Túlio não eram suficientemente ágeis para abrí-los. Se posicionou com os quadris bem para a frente enquanto mirava o fecho, tentando facilitar o serviço com o auxílio dos olhos, sua visão turva, porém, apenas complicava mais a equação, ambriagado, se pôs a amaldiçoar os botões do fecho:
-Vamo, safado... Abre! Abre que eu quero mijar! Vamo!
A falta de equilíbrio adicionada a postura estranha em que Túlio se encontrava, o fizeram cambalear, ele só não caiu por que se chocou violentamente com a porta de uma das cabines do banheiro. A batida, somada aos seus gritos, fizeram os demais presentes acharem que ele se dirigia ao sujeito dentro da cabine, e a segurança foi chamada. Três sujeitos corpulentos se aproximaram, e vendo o estado lastimável de Túlio, acharam, por bem, removê-lo da danceteria. Túlio tentou argumentar que só queria fazer xixi, mas enrolando a língua e sendo acossado por três gorilas, não conseguiu suceder em seu intento, e foi arrastado pra fora, diante de todos, e com as calças descoladésmimas molhadas.
Foi obrigado a ficar mijado em uma sala onde o obrigaram a pagar a sua consumação, e ainda ameaçaram chamar a polícia quando Túlio se exasperou por sentir-se injustiçado.
Acabou escorraçado do clube, jogado na calçada sob ameaças de uma surra e da presença da lei. Foi assim, humilhado, ébrio e de coração partido, que Túlio voltou pra casa naquela noite. Antes de dormir, um último ato de rebeldia:
Jogou pela janela as calças descoladésimas ensopadas de urina que a vestira na noite em que cometeu um involuntário hara-kiri social. Demorou a pegar no sono, amaldiçoando a própria idiotice.
No dia seguinte, voltou ao shopping com a sacola da loja de roupas descoladas. Procurou pela menina loirinha que lhe vendera as calças dois dias antes, Júlia, a encontrou com facilidade, ela picava como se tivesse sido ligada na tomada ao som de uma música techno. O viu e sorriu vindo em sua direção:
-Oi! Problema com a calça?
-Mais ou menos... Quero trocar essa aqui, pode ser? Não... Não é bem a minha cara.
-Claro. Quer trocar por outra?
-Na verdade... Acho que vou trocar por umas camisetas, pode ser?
-Claro. -Ela respondeu pegando a sacola e a nota fiscal das mãos de Túlio.
-Aqui só tem uma. A outra ficou boa?
-Não exatamente... Mas não vou querer trocar ela. E acho que vocês também não iriam querer.
Túlio trocou a calça por quatro camisetas e um cordão de pescoço. Tudo bacana, mas bem menos descolado que a calça que devolvera e a calça que agora jazia mijada no lixo. Deu um pouquinho a mais, e Túlio pagou a diferença em dinheiro. Agradeceu a vendedora.
-Valeu. Agora me dá licença que eu vou comprar umas calças à moda antiga.
-Peraí - Ela disse, o detendo com um gesto. -Tenho uma aqui que pode te interessar.
-Duvido muito. -Ele respondeu com um sorriso de escárnio, a acompanhando com o olhar enquanto ela saltitava pra trás do balcão.
Ela se agachou, sumindo completamente por alguns instantes, e, quando se levantou, mostrou a Túlio um familiar par de calças. Desbotadas, gastas, com um leve puído ao lado do joelho.
-Essa parece mesmo uma calça confortável... Talvez tu me arrume o endereço daquela costureira.
Com um movimento rápido, ela virou a calça exibindo o fundilho intacto. Apenas olhando bem de perto Túlio percebeu que havia uma esmerada costura reunindo o tecido que outrora abrira.
-Puxa, obrigado! Tá perfeita! Mas... Peraí... Por que tu consertou ela? Nem sabia se eu ia voltar aqui...
-Essa calça e o dono dela mereciam outra chance. Me vi na obrigação de, ao menos, fazer a minha parte pra garantir o reencontro.
-Quanto eu te devo... Pela costura?
-Um lanche do Burger King. Um Stacker triplo, e uma Coca. Zero.
Túlio sorriu surpreso.
-Diga um horário e eu estarei aqui.
-Sete.
-É um encontro.
Túlio saiu, colocando a calça dentro da sacola com as camisetas novas, e, pela primeira vez em um bom tempo, deu um sorriso espontâneo, honesto e verdadeiro.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Animal Interior


Na mesa do bar, música alta, pratos e talheres sujos sobre a mesa, vários copos e garrafas vazios, também. Everaldo já havia bebido um pouco demais, e, como todo bebum que se preza, começara a dissertar a respeito de quase tudo. Ao seu lado, na mesa, o Paulo Roberto só ouvia:
-Tô te dizendo, Pê Erre, dois mil e doze, os Aztecas já sabiam, é o fim do mundo.
-Não eram os maias?
-Tanto faz, Pê Erre, tanto faz, a questão é que o mundo vai acabar, vai acabar tudo. Vulcões se erguerão cuspindo lava incandescente no centro de grandes cidades, o mar vai engolir o nosso litoral inteiro, montanhas vão ser varridas de seus berços pedregosos e serão jogadas bem em cima da tua casa!
-Porque da minha?
-Não... Não, burro. Da "tua" quer dizer da raça humana, tá ligado? A humanidade lá, fazendo suas coisinhas mundaninhas, comprando seu carrinho em setenta e duas parcelas, colocando botox, tomando Viagra, viajando pra Argentina pra aproveitar a baixa do Dólar, vivendo essa existenciazinha estéril, inútil, obnubilada, achando que faz parte de algum plano maior e BANG! O mundo acaba. Acaba tudo. Pessoas que não morrerem quando a terra se abrir sob seus pés, rá, meu amigo, essas vão se dar ainda pior. Escreve o que eu tô te dizendo. Gente que nem tu, que encomenda livro em livraria, que compra presente de natal com um mês de antecedência, que cultivam a civilidade e o conforto, esses são os que vão sofrer mais, é... Vão estar se sentindo como? Como, na hora em que tiver que bater com um pistão enferrujado na cabeça de uma velha pra comer o cachorro de estimação dela? Hein?
-Depois de tudo isso como é que a velha sobreviveu? Não, como é que o maldito do cachorro sobreviveu?
-Retórica, caráleo! Era uma figuagem de lingura... Figura de linguagem... Porra. Enfim, tu entendeu. Tu leva essa coisa de civilidade á sério demais. Todo educado, preocupado com os outros. Como é que tu vai entrar em contato com o teu animal interior e apunhalar um pai de família na frente dos filhos dele pra roubar o casaco dele e se manter quente?
-Que horror, Everaldo. Por que eu faria uma coisa dessas?
-Pra não morrer, Pê Erre! Pra não morrer. Imagina o cenário: Uma camada violenta de fumaça sobre o céu, noite vinte e quatro horas por dia, a vida na terra sucumbindo pela falta de luz e de calor, e tu tá ali, congelando, os pés molhados, congelando vestindo só uma camisa da Renner, tu sabe, no teu íntimo, que se não te aquecer, morre. Aí passa um cara, mais velho que tu, mais fraco. Com um casacão. Tu não quer aquele casaco?
-Eu, não. Preciso é de um chapéu. Tô ficando careca e a maior parte do calor do corpo se perde pela cabeça.
-Puta que o pariu... Tu já tem um chapéu, Pê Erre, mas tá com frio no peito, nos braços... Ali tá o casaco, tu quer?
-De que marca é?
-Vai te foder, Pê Erre! Vai tomar no rabo. É um casaco quente.
-Mas a camisa é da Renner, não é o bicho, OK, mas e se o casaco for da Gripon? Não vale a pena trocar...
-Não é pra trocar, meu! É pra agregar o casaco dele à tua camisa da Renner.
-Ah...
-Aí tu te aproxima, desesperado, armado com a tua faca-
-Onde eu arrumei a faca?
-Na cozinha, porra.
-E lá não tinha comida? Eu podia comer e assim, teria calorias pra queimar sem precisar apunhalar um pai de família na frente do filho dele.
-Não! Não tinha comida, já tinham pegado a comida.
-Quem?
-Outros sobreviventes, porra.
-E eles não pegaram a faca?
-Não...
-Por que?
-Porque eles tinham facas, já...
-Eu acho que eu vou seguir esses caras. Eles são bons nisso, acharam a comida e já tinham facas. Eu me junto a esse grupo e não preciso apunhalar ninguém.
-Vai te foder, Pê Erre... Eu tava falando sério, te propondo uma questão profunda e filosófica ácerca da natureza humana...
-Tu tá é bêbado, Everaldo.
O Everaldo ficou quieto, admirando os desenhos de círculos de água que improvisava com a base molhada de seu copo de cerveja. Nisso, o Paulo Roberto olhou pro lado, e viu a Ritinha entrar no bar com o namorado novo. Um cara mais ou menos da mesma altura que ele, mas com mais cabelo, e sem óculos. Naquele instante, ele desejou que uma hecatombe de proporções bíblicas houvesse acontecido. Que Ritinha estivesse com frio e aquele cabeludo imbecil não tivesse um casaco pra dar pra ela. Sim, Paulo Roberto apunhalaria o pai de família no fígado, mataria o filho dele, também. Arrancaria a pele dos dois e faria uma roupa de pele humana pra se proteger do frio e ofereceria o casaco á Ritinha. Segurava a faca firmemente entre os dedos. Olhou pro Everaldo, que o encarava com cara de quem tinha razão.
-Tá aí o teu animal interior...
-É. E é um bicho chifrudo. -Respondeu Paulo Roberto largando a faca.
Pediu a conta. Quando os discursos de bêbado do Everaldo começavam a fazer sentido, era melhor ir embora.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Franqueza...


Estavam, ele e ela, sentados à mesa de um restaurante decente. Nem bom nem ruim. Um restaurante decente. Era o primeiro encontro dos dois, assim, encontro, mesmo, sabe? Antes haviam se visto em algumas oportunidades, conversado, algumas vezes brevemente, outras vezes com um pouco mais de tempo. Foi o bastante pra aquele começo de atração, que há quem chame de fagulha, enfim, aquele indício de que poderia haver mais do que apenas amabilidade e simpatia de parte a parte. Foi ele quem sugeriu, casualmente, que saíssem alguma hora dessas. Ele não imaginou, contudo, que ela fosse aceitar a sugestão tão prontamente. "Claro, vamos sim, sábado?". Ele aceitou meio de sopetão. Ela escolheu o lugar. O horário. tudo. Agora ali estavam. Ela, linda. Diferente. Estilosa. Graciosa, simpática, algo tímida, mas ainda assim, chamava a atenção.
Ele, normal. Comum. Algo desajeitado, contido, envergonhado, e sem nenhuma vontade de passar qualquer outra impressão.
Conversavam polidamente enquanto comiam. Ele comeu um pedaço do seu filé frango, e mastigou fazendo uma pequena careta. Ela perguntou se estava bom, ele disse que estava seco. Ela sorriu que o filé de carne dela estava bom. Ele chegou a sentir a língua coçar pra dizer à ela que frango também era carne, mas entendera o que ela disse. Ela, ainda sorrindo, estendeu o garfo e perguntou-lhe se ele queria experimentar. Ele disse que não. Não disse que nunca comia do prato alheio. Apenas sorriu de volta e agradeceu com a mão direita espalmada em frente ao rosto. Ele sorriu, parecendo ter chegado àquela encruzilhada em que falta assunto. Olhou pra ele, e sorriu fazendo um rápido "hm", enquanto mastigava. Ele pensou em dizer:
-É isso que eu sou, entende? Eu acho não vou mudar. Acho que nem quero mudar. Eu não tenho medo de quase nada, não acredito em Deus, espíritos e milagres, não gosto de verduras, de cinema europeu nem de música alta. Não gosto de receber visitas em casa, nem de sair à noite, acho que gatos são metidos e que cachorros pequenos são irritantes. Adoro o Discovery Channel e futebol, mas só vejo os jogos do meu time, salvo raríssimas exceções. Eu gosto de me exercitar e tomo até três banhos por dia quando está calor, quando as coisas me incomodam, eu não falo, pelo menos por algum tempo. Não sei demonstrar sentimentos com palavras, é mais fácil com gestos, e, ainda assim, ás vezes demora um bocado pra eu articular um gesto. Eu tento não ser grosseiro mesmo quando estou profundamente contrariado, mas posso acabar sendo um pouco seco, e todo mundo nota que eu estou chateado. Quando eu não quero falar sobre alguma coisa, eu digo que não quero falar, e quando me dizem que não querem falar sobre determinado assunto, eu não insisto, então, não diga que não quer falar á respeito fazendo charminho, pois eu não vou insistir, uma vez que valorizo deveras a minha privacidade e por isso, respeito a privacidade alheia. Quando tu me disser "não", eu vou entender "não", quando tu disser "sim" eu vou entender "sim", e se tu disser "talvez" eu vou te dar tempo pra pensar e perguntar de novo em uma outra oportunidade. Quando eu digo "não", é peremptório, quando eu digo "Acho que não", também é um "não peremptório", mas eu não quero ser incomodado á respeito. O mesmo vale pra "acho brabo" e "Bah, meio difícil". Quando eu digo "vamos ver", significa que provavelmente não, mas eu te considero o suficiente pra ao menos cogitar a hipótese, e quando eu digo "sim", é "sim", mesmo. Inapelável, sem amarras ou limites, mas é dificílimo me arrancar um "sim", especialmente se nós não nos conhecermos muito bem ou eu não gostar muito de ti, e, ainda assim, pode ser que eu não diga "sim" com muita frequência.
Eu me esqueço das coisas. De uma porção de coisas. Eu sou distraído, esqueço o nome das pessoas, me apresento e digo "Prazer" duas, três vezes, especialmente se não gostar da pessoa, ou se ela não parecer interessante pra mim de alguma forma. E me lembro de outras tantas. Também uma porção. Mas minha memória funciona errado, eu não armazeno praticamente nenhuma informação útil, mas sou profundamente versado em informações sem qualquer valor. Essas, eu guardo todas. Ano em que um filme foi produzido, diretores, escritores, quadrinhos, brinquedos, programas de TV, constelações, estrelas, como funcionam os buracos negros, mitologias... Isso eu guardo, mas não me pergunte qual a data do aniversário da sua mãe, pois eu vou esquecer.
Eu sou inseguro a ponto de parecer seguro. Eu estou sempre esperando que me apunhalem pelas costas ou me magoem, sempre, todos. Não confio em ninguém, mas, ao invés de me tornar paranóico, eu decidi não dar atenção à raça humana. Estou aqui, então vou dançando conforme a música, mas dou meus próprios passos. Não ligo pra o que as pessoas pensam de mim, e não penso nas pessoas, pelo menos na imensa maioria. Não sou insensível, talvez seja sensível demais. Choro vendo comerciais de ONGs que combatem o aquecimento global, especialmente se mostrar ursos polares á deriva sobre pequenas placas de gelo. Aquilo me arrasa, me fere a alma, e eu nem sei explicar por quê, já que nunca nem sequer vi um urso polar ao vivo.
Eu me distancio das pessoas com facilidade, mas meu cachorro é meu melhor amigo, ainda assim, eu sei que ele é só um cachorro, e que ele vai morrer antes de mim, não fico feliz com essa pespectiva, mas ela também não me arrasa.
As pessoas pensam que eu sou inteligente, mas é por que eu falo pouco, e apenas quando tenho certeza do que vou dizer, mas eu não as corrijo, pois espero que, assim, pensando que eu sou muito esperto, elas continuem longe. Pelo menos a maioria. Eu posso estar te assustando com esse volume violento de informação, mas estou sendo bem franco por que eu gostei de ti. Não te amo, não sei se seremos melhores amigos, conhecidos que se veem na rua e sorriem depois de se despedir ou se eu vou ser o pai dos teus filhos e tu a mãe dos meus, mas achei melhor ser franco logo de cara, pois eu não quero que, quando eu for franco, mais adiante, tu te sinta enganada.
Ele pensou em dizer tudo isso. Mas apenas sorriu de volta e fez um "hm" parecido enquanto mastigava.
Eles não voltaram a se encontrar...