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segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Mentiras.



-Eu mentia muito quando era pequeno, sabe?
-Ah, é? - Ela perguntou, incerta.
-É. Horrores. - Ele confirmou. -Não sei por quê. Vai ver... Sei lá. Eu era muito tímido... Ainda sou, mas naquela época era pior. Eu não me encaixava, sempre me sentia deslocado, aí, de repente, querendo me incluir nos grupos decerto, eu começava a mimetizar as histórias e as qualidades que eu achava que tornavam os outros bem aceitos... - Conjecturou. -Eu era um personagem diferente em cada grupo que eu frequentava, entende? Um simulacro de um moleque diferente de mim, com outro background, que vivia outra vida e tinha outra personalidade. O engraçado é que era um processo muito rudimentar, eu não praticava antes, não tinha histórias prontas pra contar, nem nada, apenas ia improvisando.
-E funcionava? - Ela perguntou, curiosa.
-Na maior parte das vezes, pelo menos para relações de amizade que fossem maiores do que brincar na praça, ou jogar no mesmo time, não. Eu sempre acabava sendo desmascarado. - Ele confirmou, sorrindo triste.
-Que judiaria. - Apiedou-se ela.
-É... Bom, o lance é que ser desmascarado não me fez ficar com vergonha e largar mão de ser um mentiroso. - Ele se recriminou. -Antes tivesse. As vezes em que eu fui pego, só me fizeram refinar o meu método, acrescentar detalhes, elaborar melhor as lorotas, chegou a um ponto em que eu mentia descaradamente sem parar. O tempo inteiro. - Confessou ele.
-Puxa, mas e ninguém notava? - Ela quis saber, franzindo as sobrancelhas.
-Não... O pior é que não. - Ele relatou. -O método era perfeito por causa do equilíbrio. Eu não cometia grandes arroubos fictícios, eu contava mentiras moderadas, bobagens que ninguém teria por que mentir. Logo, ninguém descobria a verdade de jeito nenhum, não havia por que desconfiar de mim. Eu não inventava que era astronauta, nem que meu pai era caubói, nem nada assim, eu não queria ser ninguém em particular, eu só não queria ser eu, entende?
-Sim - Ela entendeu. -Pobrezinho... E o que aconteceu?
-Bom, a infância transcorreu sem maiores problemas, como eu te disse, eram mentiras inofensivas, não geravam nenhum tipo de consequência, eram apenas um mecanismo de defesa, o problema foi que eu fui crescendo... E as mentiras começaram a se tornar mais pesadas, mais elaboradas, requeriam um grau mais alto de interpretação, ou acessórios, e, com isso, se tornavam mais dispendiosas. Eu comecei a precisar de dinheiro. - Ele confessou, misterioso.
-Ai, tu roubou...? - Ela indagou, alarmada.
-Não. - Ele a tranquilizou. Mas então deteve-se e se corrigiu. -Bom, não de fato. Eu pedia dinheiro. Pedia dinheiro mentindo para o que era. Acho que dá no mesmo que roubar, não é? Moralmente falando... - Inquiriu, confuso. -Enfim, eu comecei a pedir dinheiro pra todo mundo. Pedia dinheiro pra minhas duas avós, pros meus dois avôs, minhas tias, tios, meu pai e minha mãe, todos no mesmo dia, pra fazer a mesma excursão, ou comprar material pro mesmo trabalho escolar.
-Entendi... - Entendeu ela.
-A questão é que, conforme as mentiras se espalhavam e se tornavam maiores e mais caras, o dinheiro formava uma trilha, um rastro, e ficava mais fácil, por conta disso, chegar até o autor da mentira, e, por consequência, à verdade. - Ele explicou. -Foi quando eu fui pego. Tinha pedido grana pra todo mundo dizendo que iria à Gramado e Canela com a escola em um final de semana, quando, na verdade, era pra comprar a camiseta de um clube de futebol Argentino com nome e número pois eu havia mentido pra alguns colegas que iria a Buenos Aires. Percebeu a sinuca? Uma mentira levou à outra... - Ele reconheceu, abanando a cabeça em sinal de reprovação. -Enfim, acabou que a minha avó ligou pro meu pai preocupada se eu havia levado roupas quentes pra excursão, pois era inverno, e a meteorologia apontava baixas recorde de temperatura na serra. Meu pai disse que eu saíra agasalhado, mas que minha avó nem precisava se preocupar pois eu voltaria no mesmo dia. Ela disse que se preocupava, e que até tinha me dado dinheiro a mais pra viagem pra alguma emergência. Foi quando meu pai disse que já tinha me dado dinheiro. Minha mãe ouviu a conversa e disse que tinha me dado o dinheiro, também... Virou uma avalanche. Todo mundo tinha me dado o dinheiro pra mesma excursão. Ainda tentaram não fazer juízo temerário, pelo contrário, acharam que eu tivesse sido um bom menino e dividido o preço de uma excursão caríssima entre vários familiares. Ligaram pro colégio pra saber qual era, afinal, o preço cobrado pela excursão...
-Ai... - Ela gemeu, antevendo o desastre.
-Pois é. Foram informados que não havia nenhuma. - Ele confirmou, baixando os olhos.
-E aí? Te castigaram? - Ela quis saber.
-Não... Foi pior - Ele disse. -Pensaram que eu estava envolvido com drogas, que estivesse devendo dinheiro pra traficantes. Fui ao médico, fiz exames de sangue, de urina, tudo. Mas não me drogava, meu único barato era desempenhar papéis, ser outras versões de mim mesmo.
-Tu disse pra eles? - Ela perguntou, acariciando-lhe a perna.
-Não. Tive vergonha. Muita vergonha. - Ele admitiu. -Já tinha quase quinze anos, e me dei conta de que não era mais aceitável viver inventando histórias como aquela. Eu mentia coisas que não faziam nenhum sentido, apenas tentando ser mais interessante, ser diferente. Eu simplesmente mentia, sem perceber que meus amigos gostavam de mim e eram meus amigos independente das coisas que eu inventava, até por que, entre eles e eu, não havia segredos nem mentiras, mas ainda assim, eu insistia.
Riu, amargo:
-Havia até um certo corporativismo mentiroso da minha parte, pois quando eu percebia que outra pessoa mentia, e estava prestes à ser pega, eu a ajudava, enriquecia a narrativa dela, e prestava falso testemunho. As poucas vezes em que eu era pego eram um vexame que me demolia por dentro e só me fazia mentir mais e mais e mais. Foi quando decidi que pararia de mentir. Pra sempre. Pra tudo. Mesmo. Não desmenti nenhuma das histórias que não haviam sido descobertas, não tive essa grandeza, mas parei de mentir. Pelo menos o quanto pude. - Remendou, envergonhado. -Nos anos seguintes, eventualmente eu ainda me flagrava mentindo bobagens, simplesmente saía, compulsivamente. Mas fui aprendendo a controlar, e hoje, hoje posso dizer que falo apenas a verdade. - A apanhou pelas mãos e a olhou nos olhos:
-E a verdade, Mabel, é que eu sou louco por ti, e jamais, nunca, em tempo algum, eu teria saído com aquela biscate da Irene, ela tem um problema, um problema que nem todos conseguem controlar. A gente precisa entender, e se afastar, torcendo pra que ela consiga superar isso. Tu acha que nós podemos fazer isso?
-Ai, Viktor... - Mabel mordeu o lábio inferior olhando para aqueles olhos emoldurados por cílios do tamanho de canetas Bic...
-Tá... Tudo bem. Vamos nos afastar dela. Se tu conseguiu, talvez ela consiga, também.
O beijou.

Viktor de SanMartin, o canalha, atacara novamente.

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