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sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Sorrisos


"Calças novas" foi o que pensou o Túlio quando sentiu o pé esquerdo deslizar sob o peso do movimento de seu passo e iniciou uma abertura de espacate que nem o Van Damme arrisca hoje em dia. A abertura, claro, jamais acabou com os testículos de Túlio colados no chão. Ela encontrou seu limite no final da pouca elasticidade das calças jeans que ele usava. Bom, quase, ela, a abertura, ainda seguiu por uma fração de segundo, por mais dois ou três centímetros, que pareceram durar uma eternidade quando Túlio percebeu o ruído inconfundível de tecido se rasgando. Ato contínuo, ele ouviu o som da borracha de seus tênis gritando contra o piso molhado enquanto seu tornozelo direito levava seu joelho vizinho a um passeio que requeria movimentos que nenhuma das duas articulações fora projetada para realizar. Obviamente, aquele tipo de tombo acabaria em torção séria, quiçá fratura. Mas isso apenas de Túlio tivesse ousado tentar se equilibrar. Túlio não tentou. Não houve tempo para tanto. Ele simplesmente tentou absorver o que acontecia ao seu corpo enquanto despencava de encontro ao chão molhado do shopping como aquele proverbial saco de batatas. O próximo som que Túlio ouviu foi o de seu cotovelo esquerdo batendo violentamente contra o assoalho, seguido de um ruído amalgamado de suspiro e gemido que ele expeliu no momento exato em que suas costas encontraram o mesmo destino. Manteve o pescoço firme, evitando, assim, bater também com a parte de trás da cabeça no chão. Quando ouviu as risadas dos transeuntes, assim como o som de sua dignidade se estilhaçando, imaginou se não teria sido melhor simular um desmaio e continuar no chão por alguns minutos, ao invés de se levantar o mais agilmente possível do chão e olhar em volta com um sorriso amarelo de embaraço. Entre as pessoas que riam, se destacou o faxineiro, que ria abertamente, em alto e bom som segurando uma daquelas placas amarelas de "Cuidado: Piso molhado", uma senhora velhinha que precisou ser amparada pelo marido por que perdeu o ar de tanto rir, e, pior de tudo, a Isadora.
Isadora era a ex-namorada do Túlio. Haviam terminado o relacionamento meses antes, moravam próximos, partilhavam um círculo de amizades em comum, mantinham uma relação cordial, e Túlio, secretamente, ainda sonhava em reatar com ela, uma vez que nem sequer chegara perto de nenhuma outra mulher desde então. Agora, ali estava a dona de suas afeições, se aproximando sem conseguir disfarçar as risadas, e perguntando-lhe se ele estava bem.
-Tô, tô. Foi só um tombo, só o susto.
-Ah, ainda bem, na hora fiquei preocupada, mas tu te levantou tão rápido que não deu pra não rir.
-É...- Respondeu Túlio sem muita convicção, olhando pro faxineiro e pra placa de alerta com o mesmo olhar de Jack Torrance pra sua esposa através do buraco na porta do banheiro. Isadora continuou enquanto o faxineiro se afastava:
-Olha, eu vou comemorar o meu aniversário amanhã.
-Mas teu aniversário é só no dia vinte...
-É, mas eu vou estar na praia, aí, vou fazer uma festinha amanhã, numa danceteria ali pertinho de casa, nada de muito extravagante por que eu sei que tu não iria, então, se tu puder dar uma passada lá, eu ia ficar muito feliz.
-Tá, tá bom, vou ver se consigo.
-Deixei teu nome na lista, é só apresentar documento na entrada. Tchau.
E lá se foi Isadora, serpenteando lânguidamente shopping afora com o seu vestido lilás, e a cabeleira negra esvoaçando, deixando atrás de si Túlio, dolorido, humilhado e ainda apaixonado por ela.
"É isso.", pensou um decidido Túlio. "Eu vou na festa. Vou levar um presente, vou escrever o cartão mais romântico da história da humanidade, e vou reconquistar a Isadora.".
O faxineiro passou novamente, conversando com outro, cochichou alguma coisa apontando com o queixo pro Túlio e os dois saíram rindo.
"E jamais serei humilhado de novo.", pensou Túlio enquanto rumava à uma loja de roupas para comprar as calças novas de que precisava.
Túlio entrou em uma loja de grifes ao invés da loja onde ia sempre. Queria estar abafando pra reconquistar Isadora. Lembrou de não voltar a usar a expressão "abafando" novamente, pois era demasiado gay. Se dirigiu à uma vendedora e disse:
-Preciso de calças jeans. Calças jeans descoladas.
-Claro, vem comigo.- Respondeu a vendedora, uma loira graciosa de mais ou menos um metro e meio de altura que parecia funcionar com pilhas alcalinas.
Ela arrastou Túlio até o fundo da loja e mostrou-lhe pelo menos onze modelos diferentes de calças. Túlio nem sabia que existiam tantos tipos diferentes de calças jeans. Experimentou à exaustão, entre uma calça e a outra ouvia os conselhos e opiniões da vendedora, Júlia, que não poupava palavras pra dizer se tinha ficado bem, ou não, o modelo experimentado. Ao menos era honesta. Das oito calças experimentadas por Túlio, apenas três receberam o aval feminino dela. Suas opiniões pras outras cinco foram de "Não tá bom, não" a "Nem com reza brava", enfim ela o ajudou a escolher dois modelos, dos três finalistas, que couberam na parcela do cartão de crédito de Túlio.
-Vou colocar na sacola, pra ti.
-Não precisa, não. Eu vou usando essa.
-Pra ela ir modelando?
-Não... Bom, também, mas por que a que eu estava usando rasgou após um pequeno acidente.
Túlio exibiu o rasgo rente á costura do fundilho da calça.
-Ah, mas isso tu conserta. Conheço uma costureira que dá jeito nessa calça e meia hora, deixa ela jóia.
-Nah. Obrigado, não quero mais essa calça.
-Mas ela tá perfeita. Olha a cor, a textura do tecido, o puído do lado do joelho... Pô, essa calça é o que todas as calças jeans tem que se tornar um dia...
Túlio riu:
-É... Bom, acho que ela já foi isso, e mais um pouco. Agora ela é lixo. Pode jogar fora pra mim?
-Claro...
-Obrigado.
Túlio saiu pelo shopping desfilando com suas modernosas calças jeans descoladas, de tecido índigo bem escuro, corte mais largo, com botões ao invés de zíper, sentia-se mais confiante, mais atraente, mais fashion. Lembrou-se de não voltar a usar essa expressão, "fashion", novamente, pois era muito gay. Entrou em outra loja, e comprou um perfume de Nina Ricci, em outra loja, dois ursinhos de pelúcia costurados um ao outro, presos em um abraço eterno, foi à uma terceira loja e comprou papel, caneta e um envelope especiais. Voltou pra casa e escreveu a mãe de todas as cartas de amor. Tão doce que devia ser mantida fora do alcance de diabéticos, tão poética que faria Pablo Neruda corar de vergonha, tão honesta que seria barrada pelos correios se fosse enviada à Brasília. Com satisfação Túlio deitou para dormir, pensando no dia, ou melhor, na noite seguinte.
Dormiu, acordou-se, foi trabalhar, tudo normal, pelo menos até sair do trabalho. Foi à academia, malhou feito um alucinado na esperança de que seus músculos ainda estivessem inchados horas mais tarde quando fosse para a festa. Depois, correu até em casa, tomou um longo banho, passou gel nos cabelos, fez a barba, perfumou-se, escovou os dentes, pasou fio dental e gargarejou um anti-séptico bucal, depois encarou o espelho e mprovisou um sorriso de má vontade.
Vestiu uma cueca boxer branca que a Isadora adorava, suas novíssimas e descoladésimas calças jeans, sapatos pretos e uma camisa preta que Isadora lhe dera de presente no seu último aniversário, e foi-se para a tal danceteria disposto a reaver o coração da mulher que amava.
Chegou ao clube, mostrou os documentos à recepcionista, e adentrou o salão da danceteria com o pacote de presente na mão esquerda. Imediatamente distinguiu, à distância, Isadora. Linda. Parada entre várias amigas. Ela abriu um grande sorriso ao vê-lo, andou em sua direção, pousou em seu braço a mão delicada que ele tivera na sua durante tantos passeios, e se pôs na ponta dos pés para beijá-lo no rosto, ah, aqueles lábios, aqueles lábios que ele tivera colado nos seus em tantas ocasiões...
-Que bom que tu veio. Achei que não ia querer vir, tá sempre ranhetiando pra sair de noite...
-Mas sempre saí, não é? O que tu não me pede rindo que eu não faço chorando?-Rebateu Túlio, achando o máximo aquele início de conversa -Te trouxe uma coisa.
Estendeu o pacote para Isadora. Ela pegou agradecendo. Ele se inclinou pra frente, e a beijou no rosto, no fim do maxilar, abaixo da orelha, "perfeito", pensou enquanto procurava justamente aquele ponto pra beijar.
-Feliz aniversário, Isa... Tudo de bom.
Ah, o cheiro dela... a textura de sua pele, era tudo tão bom, o som da risada, a temperatura do seu hálito. Por que eles haviam terminado, mesmo? Ele nem lembrava. Ele ergueu a mão e pousou a ponta dos dedos finos na nuca dele. "É agora, pensou Túlio", "Ela vai me beijar e ela e eu voltaremos a ser 'nós'.".
Mas Isadora não o beijou. Endireitou-se e fez com que Túlio se endireitasse, também.
-Eu quero te apresentar uma pessoa.
O Túlio, imediatamente, imaginou de que se tratava. Sua suspeita só começou a ganhar corpo conforme o sujeito, bem mais velho, na casa dos quarenta anos, se aproximou sorrindo. Usava camisa azul clara e calças brancas. "Parecia uma porra de iatista." diria Túlio mais tarde. Isadora o chamou, e indicou Túlio com a mão espalmada:
-Walter, esse é o Túlio.
O Walter sorriu como se tivesse novecentos e oitenta e quatro dentes e ergueu as sombrancelhas:
-Esse é que é o famoso Túlio?
E agarrou com firmeza a mão de um murcho Túlio, sacudindo-a vigorosamente.
-Porra... Ouvi falar muito de ti, rapaz.
Isadora esperou Walter terminar e disse, dirigindo-se a Túlio:
-Túlio, esse é o Walter. Meu-
"Tio, chefe, pai adotivo, padrasto, supervisor, guru espiritual, professor, encosto (Graças a Deus tu também enxerga!)" suplicou Túlio em silêncio, mas Isadora concluiu:
-namorado.
"Nãããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããããão!"
-Opa, tudo bem, Walter? Prazerão, tchê. -Respondeu com um sorriso mais falso que nota de três reais.
-Todo meu.
Conversaram brevemente, o Walter parecia um sujeito legal (Velho desgraçado, miserável, desavergonhado, não se enxerga?), mas Túlio não se sentia em condições de conversar muito, especialmente quando Walter enlaçava a cintura de Isadora com aquele braço coberto de pêlos grisalhos e a beijava entortando a boca pra não desviar os olhos dele enquanto falava.
Túlio se afastou. Olhou em volta e viu unicamente as amigas de Isadora que sempre odiara. Os amigos em comum que tinham não haviam comparecido. Esperou que Walter e Isadora se afastassem e correu até a mesa, foi direto até a sacola onde estava seu presente, e subtraiu o cartão. Uma amiga de Isadora, Ludmila, se aproximou:
-Tá pegando o que, daí?
-Vai pro raio que te parta, piranha da Cidade Baixa!
-Quê?
-Um papelzinho que acabei esquecendo dentro da caixa!
Foi pro balcão do bar. E, com uma consumação considerável para gastar, bebeu. Bebeu todas. Bebeu até perder a sensação nos dedos. Bebeu até perceber que gastara o dobro do consumo mínimo. Resolveu ir embora. Levantou-se com suas fabulosas calças descoladas, e cambaleou com dificuldade até o banheiro. Parou em frente ao mictório e apoiou-se com a testa na parede, procurou o zíper das calças, mas não encontrou.
"Botões", lembrou-se.
Com a coordenação motora bastante prejudicada, se pôs a procurar os botões no fecho da calça, encontrou, mas o álcool cobrava seu preço, e os dedos de Túlio não eram suficientemente ágeis para abrí-los. Se posicionou com os quadris bem para a frente enquanto mirava o fecho, tentando facilitar o serviço com o auxílio dos olhos, sua visão turva, porém, apenas complicava mais a equação, ambriagado, se pôs a amaldiçoar os botões do fecho:
-Vamo, safado... Abre! Abre que eu quero mijar! Vamo!
A falta de equilíbrio adicionada a postura estranha em que Túlio se encontrava, o fizeram cambalear, ele só não caiu por que se chocou violentamente com a porta de uma das cabines do banheiro. A batida, somada aos seus gritos, fizeram os demais presentes acharem que ele se dirigia ao sujeito dentro da cabine, e a segurança foi chamada. Três sujeitos corpulentos se aproximaram, e vendo o estado lastimável de Túlio, acharam, por bem, removê-lo da danceteria. Túlio tentou argumentar que só queria fazer xixi, mas enrolando a língua e sendo acossado por três gorilas, não conseguiu suceder em seu intento, e foi arrastado pra fora, diante de todos, e com as calças descoladésmimas molhadas.
Foi obrigado a ficar mijado em uma sala onde o obrigaram a pagar a sua consumação, e ainda ameaçaram chamar a polícia quando Túlio se exasperou por sentir-se injustiçado.
Acabou escorraçado do clube, jogado na calçada sob ameaças de uma surra e da presença da lei. Foi assim, humilhado, ébrio e de coração partido, que Túlio voltou pra casa naquela noite. Antes de dormir, um último ato de rebeldia:
Jogou pela janela as calças descoladésimas ensopadas de urina que a vestira na noite em que cometeu um involuntário hara-kiri social. Demorou a pegar no sono, amaldiçoando a própria idiotice.
No dia seguinte, voltou ao shopping com a sacola da loja de roupas descoladas. Procurou pela menina loirinha que lhe vendera as calças dois dias antes, Júlia, a encontrou com facilidade, ela picava como se tivesse sido ligada na tomada ao som de uma música techno. O viu e sorriu vindo em sua direção:
-Oi! Problema com a calça?
-Mais ou menos... Quero trocar essa aqui, pode ser? Não... Não é bem a minha cara.
-Claro. Quer trocar por outra?
-Na verdade... Acho que vou trocar por umas camisetas, pode ser?
-Claro. -Ela respondeu pegando a sacola e a nota fiscal das mãos de Túlio.
-Aqui só tem uma. A outra ficou boa?
-Não exatamente... Mas não vou querer trocar ela. E acho que vocês também não iriam querer.
Túlio trocou a calça por quatro camisetas e um cordão de pescoço. Tudo bacana, mas bem menos descolado que a calça que devolvera e a calça que agora jazia mijada no lixo. Deu um pouquinho a mais, e Túlio pagou a diferença em dinheiro. Agradeceu a vendedora.
-Valeu. Agora me dá licença que eu vou comprar umas calças à moda antiga.
-Peraí - Ela disse, o detendo com um gesto. -Tenho uma aqui que pode te interessar.
-Duvido muito. -Ele respondeu com um sorriso de escárnio, a acompanhando com o olhar enquanto ela saltitava pra trás do balcão.
Ela se agachou, sumindo completamente por alguns instantes, e, quando se levantou, mostrou a Túlio um familiar par de calças. Desbotadas, gastas, com um leve puído ao lado do joelho.
-Essa parece mesmo uma calça confortável... Talvez tu me arrume o endereço daquela costureira.
Com um movimento rápido, ela virou a calça exibindo o fundilho intacto. Apenas olhando bem de perto Túlio percebeu que havia uma esmerada costura reunindo o tecido que outrora abrira.
-Puxa, obrigado! Tá perfeita! Mas... Peraí... Por que tu consertou ela? Nem sabia se eu ia voltar aqui...
-Essa calça e o dono dela mereciam outra chance. Me vi na obrigação de, ao menos, fazer a minha parte pra garantir o reencontro.
-Quanto eu te devo... Pela costura?
-Um lanche do Burger King. Um Stacker triplo, e uma Coca. Zero.
Túlio sorriu surpreso.
-Diga um horário e eu estarei aqui.
-Sete.
-É um encontro.
Túlio saiu, colocando a calça dentro da sacola com as camisetas novas, e, pela primeira vez em um bom tempo, deu um sorriso espontâneo, honesto e verdadeiro.

Um comentário:

  1. Muito bom ler um história com final feliz no começo do final de semana! quem sabe a sorte do Túlio não resolve dar uma voltinha por aqui, se o universo parou de conspirar e zoar com ele, quem sabe agente tenha a mesma sorte !!

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