Pesquisar este blog

sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

História sórdida


Gérson estava suado, ofegante, sujo. Colocou o pesado volume dentro de uma grande caixa de papelão, e a segurou com firmeza enquanto recuperava o fôlego.
Apanhou um rolo de fita adesiva, e enquanto normalizava sua respiração e frequência cardíaca, acabou olhando, quase acidentalmente pra dentro da caixa. Quase teve um segundo de arrependimento. Respirou fundo. Olhou pro outro lado. O apartamento parecia vazio... Maior. Segurou a caixa com firmeza, a tinha nos braços, não conseguia evitar que os olhos ficassem marejados. A olhava com ternura, subitamente, não queria deixá-la partir. Suas formas fazendo volume entre seus braços o fizeram lembrar de tudo, desde o início, e ele, sem temer passar por louco, se pôs a falar com ela, mesmo sabendo que ela jamais responderia:
-Lembra, meu amor? De quando nos encontramos pela primeira vez, naquela loja? Eu avoado, indeciso, perdido, e tu ali. Linda, gloriosa, sofisticada... Foi amor à primeira vista, pelo menos pra mim. Quando eu coloquei os olhos em ti, sabia que não ia sossegar enquanto não te levasse comigo. Deu trabalho, mas eu não sosseguei enquanto não consegui, me lembro de ter ficado horas ajeitando a casa pensando na tua chegada. Como faria as coisas funcionarem quando tu chegasse. Todo nervoso quando fui, enfim, te buscar... Ah... E foi bom, não foi? Quando finalmente chegamos, eu te carregando pra dentro do apartamento. Meu desespero quando tu bateu na guarnição da porta, nossa, que susto. Mas tu não sofreu nem um arranhão. E ali, ali eu sabia que a gente ia se dar muito bem.
No princípio, tudo era meio novo, eu tinha medo de fazer alguma coisa errada quando sentei contigo pela primeira vez. Ficava nervoso, inseguro. Cheio de dedos não querendo fazer nenhuma besteira... Mas aí, conforme o tempo passou, eu fui vendo que, apesar da fachada de sofisticação e beleza que me deixavam com tantas neuras, tu era simples. E então, de fato, eu pude aproveitar tudo o que tu tinha a oferecer.
Tu me completou durante tanto tempo. Me fez rir, me fez chorar, me mostrou o mundo. Eu estava contigo quando tive minhas maiores alegrias, sabe? Se não fosse a tua presença, o colorido que tu agregou aos meus dias, talvez eu tivesse ficado, sei lá, entregue à solidão. Mas graças a ti, eu me conectei mais ao mundo. Me atualizei, aprendi coisas... Tantas coisas.
Mas acho que nada, mesmo algo assim, tão profundo, tão bonito, é feito pra durar pra sempre, não é? Eu nunca vou esquecer dos momentos que partilhamos, mas eu tenho novas necessidades. E... Sei lá. Nos últimos tempos tuas cores empalideceram, as tuas formas já não parecem mais tão atraentes... Talvez seja minha culpa. Talvez eu seja, sei lá, volúvel nesse aspecto. Não sou como meu pai, e meu avô. Eles conseguiram passar vinte anos com uma só. Eu... Eu preciso de novidade, entende? Sou um filho do meu tempo. Não quer dizer que eu não tenha curtido o tempo que ficamos juntos, mas... Olha. Se servir de consolo, eu quero que tu saiba que a nova me faz muito feliz. Tanto quanto tu fez enquanto estivemos juntos. Será que é cruel da minha parte dizer isso? Acho que não, não é? Afinal, tu sempre soube me agradar, como se, sei lá... Vivesse pra isso.
Bom, obrigado por tudo, meu amor... Eu sei que tu ainda vai fazer mais alguém feliz.
Ele fechou a volumosa caixa de papelão com fita adesiva, a ergueu com dificuldade e bufou, andando encurvado até o elevador de serviço, evitando fazer barulho, pois era tarde. Chegou à garagem e a colocou no porta-malas do carro. Rodou vários quilômetros até uma cidade próxima, em um bairro afastado. Saiu do carro olhando em volta, abriu o porta malas e puxou de lá o pesado fardo que depositara antes. Novamente andou com dificuldade até a porta da casa. Largou o volume no chão, e tocou a campainha. Uma senhora de cabelos grisalhos abriu a porta. Olhou pra ele com surpresa:
-Gersinho?
Ele sorriu, enigmático.
-Trouxe uma coisa pra senhora, vó.
Alguns vizinhos ouviram os gritos da velhinha, chegaram a pensar em ligar pra ver o que era, mas, como o barulho logo cessou, acharam que não fora nada demais.
Gérson saiu pouco mais de dez minutos depois de os gritos cessarem. Foi direto pra casa. Tomou um longo banho, arrumou a mobília da sala, e deitou para dormir.
No dia seguinte, logo cedo, recebia em sua casa uma encomenda. Assinou um documento para o entregador, e arrastou a caixa para o meio da sala. Sorriu ao abrí-la.
Horas mais tarde, Gérson acariciava as formas delgadas de sua nova parceira, admirava seus contornos esguios, e sorria enquanto sentia o cheiro que ela exalava.
-Ah... Nós vamos fazer tantas coisas juntos...
Mal podia conter-se de antecipação quando agarrou o controle remoto e a ligou.
-Nós vamos ser muito felizes juntos, meu amor. Tanto quanto eu fui com a tua predecessora, quiçá mais, tu vai encher a minha vida de cor e conteúdo, minha TV LCD, Full-HD de 42 polegadas... Nós vamos jogar video game, assistir documentários, noticiários, filmes, séries e jogos de futebol, oh, sim...
Mal cabia em si de tanta felicidade. E ainda tivera a recompensa de ouvir sua avózinha gritar de alegria ao receber sua antiga TV, uma wide-screen tela plana de 38 polegadas muito bem conservada como presente.
Colocou no Discovery, e sentou-se, feliz da vida.

2 comentários:

  1. Até eu não me conteria em mim mesma!!!!
    Ainda tenho aquelas antigas, grandes (mas com controle!), não vejo a hora de estar como o Gerson!!!

    ResponderExcluir
  2. ... Porque sei que sabes me ler no silêncio!...

    ResponderExcluir