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quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Gelatina rosa


Ela e ele estavam parados na danceteria. Os dois com cara de manteiga amanhecida. Aquela cara que, tu sabe, que não tá boa, mas não é sempre daquele jeito? Então. Contrariados, os dois. Ela com as costas apoiadas em uma coluna de concreto cru cercada por vergalhões GG-50 e mexendo nas unhas com o cabelo caindo por cima do rosto. Ele com as costas apoiadas no balcão do bar, segurando uma lata de um energético com nome de rei-guerreiro.
Era impossível não notá-la. Os cabelos vermelhos, os olhos castanho-claros, as tatuagens, os lábios... Oh, meu Deus, os lábios... O nariz. Ele sempre gostara de narizes e o dela... Bom, era o número dele certinho.
Ela levantou os olhos e o viu olhando pra ela. Ele não chegava a ser feio. Se não fosse tão bagunçado, talvez até ficasse apresentável. Cabelo preto, barba, olhos castanhos... Era alto. Bem mais que ela. Quase alto demais pro seu gosto. Calça jeans, tênis, camiseta com o símbolo do Ben-10... Ele não era meio velho pro Ben-10? A olhou e sorriu. Ela pensou em disfarçar, fingir que não havia visto o sorriso, mas ele pareceu tão sincero que... Sei lá. Ficava até chato não retribuir. Sorriu de volta.
-Quanto tão te pagando? -Ele perguntou, ainda sorrindo.
-Quê? -Ela não tinha certeza se tinha entendido.
-Pra segurar essa coluna, quanto tão te pagando?
Ela deu um sorriso falso. Que abordagem idiota.
-A mesma coisa que te prometeram pra não deixar o balcão do bar cair. -Ela respondeu com uma ponta de raiva.
-Então te engrupiram. Não tão me pagando nada e ainda vão me cobrar onze pilas cada energético desses.
Ela sorriu. Dessa vez sinceramente. Começaram a conversar. Ela se chamava Renata, ele se chamava André. Ela estva lá por que uma amiga dela a arrastara pra festa de aniversário de uma colega de faculdade que ela não fazia nem ideia de quem era. A amiga dela se enturmou, ela, não. Gente estranha em grupos não eram sua especialidade. Resolveu se esconder um pouquinho, sair do fervo da pista de dança.
Ele estava lá por que um amigo dele brigara com a namorada e queria afogar as mágoas e precisava de apoio. Ao chegarem na danceteria deram de cara com quem? Com a namorada do amigo. Houve uma briga (A, foi isso aquela cena na pista, então...), mas eles se reconciliaram e foram embora juntos. Ele ficou sozinho com uma consumação de cinquenta e cinco reais pra eliminar. Cinco energéticos. Não dormiria até as olimpíadas. Nem café tomava.
Conversaram sobre vários tópicos. Música ruim, Noite quente. Vamos pra baixo do ar condicionado. Quase que pararam de conversar quando ela perguntou se ele era fã do Ben-10 e ele a corrigiu dizendo que aquela camiseta era do Lanterna-Verde.
Casualmente começaram a falar de talento, ao constatarem que a banda que tocava cover do Bon Jovi no palco não tinha nenhum.
-Tu tem algum? -Ele quis saber.
-Eu não sei... Tu tem? -Ela devolveu.
-Sim.
-Qual?
-Tu nunca vai adivinhar.
-Tu canta?
-Só no chuveiro. Tenta de novo.
-Pinta?
-Pintei a grade da porta do meu apartamento uma vez. Mais uma.
-Tu... Escreve?
-Não.
-Desisto.
-Eu mexo as orelhas.
Ela riu.
-Mexe as orelhas?
-Bom, na verdade, "A" orelha. É só a esquerda. Mas sim. Mexo a orelha e rasgo lista telefônica.
Ela continuava rindo.
-Isso são talentos?
-E não são? Poucas pessoas mexem as orelhas-
-A orelha.
-Isso. Poucas pessoas mexem uma orelha e rasgam listas telefônicas.
-Não sei se isso constitui um talento...
-Pôxa... Eu tava pensando em largar tudo e apresentar esse espetáculo em Las Vegas... Imaginava até o cartaz. Uma ilustração de mim rasgando a lista telefônica enquanto flutuava batendo a orelha feito o Dumbo...
-Não sei se daria certo...
-Não ouse tirar conclusões, tu ainda não viu nenhuma demonstração dos meus poderes...
-Não eram talentos?
-Ou isso.
-Tá bem. Então deixa eu ver uma demonstração.
-Quê? Assim, de repente, no meio de todo mundo?
-E em Vegas eles iam te deixar fazer isso escondido e te pagar por que tu disse que conseguia? Não mesmo. Faz de conta que eu sou a gerente do... Do Bellagio, e quero te contratar.
-Bellagio, não, do Caesar's Palace!
-Tá, pode ser, então. Caesar's Palace. Faça a sua demonstração, mister André. Show me what you got.
André parou de rir.
-E tu? Vai me mostrar algum talento?
-Eu não tenho nenhum.
-Nenhum?
-Nada.
-Nenhunzinho?
-Nopes.
-Duvido.
-Tô falando, guri.
-Deve ter alguma coisa. Procure por aí... Profundamente... Deve ter algo que tu faz bem, e se orgulha de fazer bem.
-Não...
-Vai lá...
A Renata encarou o teto por um instante enquanto respirva fundo.
-Ah! Já sei!
-O quê?
-Gelatina rosa!
-hã?
-Gelatina rosa, o doce aquele, sabe?
-Não...?
-Ai, é tipo gelatina normal, só que tu mistura com leite condensado, e ela fica rosa e opaca. Eu sei fazer. Eu ainda faço várias porções de outras gelatinas coloridas e coloco no meio, fica muito bom, e colorido, bonito, dá pra colocar frutas, também, é tri bom. Já me disseram que era a melhor gelatina rosa que haviam comido. Arrá! Taí o meu talento!
-Gelatina rosa, então?
-Yeah, beibe.
-OK, eu mexo as orelhas, tu me deixa provar a gelatina rosa, fechado?
-Hmmm...
-Não responda ainda! Olha, eu levo promessas muito a sério. Se tu me prometer a gelatina, eu mexer as orelhas-
-A orelha.
-Isso, se tu me prometer a gelatina, eu mexer a minha orelha, e tu não cumprir a tua parte no acordo... Olha, vão haver consequências, hein?
-Ai, que medão. Que tipo de consequências?
-Sei lá... Eu... Eu contrato uma macumbeira pra fazer um trabalho e tu nunca mais acertar a mão com a tua gelatina. Imagina o fiasco, em pleno natal e tu com os restos de uma gelatina rosa estragada nos braços pra desgosto dos teus familiares?
-Hmmm... Isso é grave.
-Pois é. Consequências. Te dou um tempo pra pensar se tu quiser.
-Não. Não precisa. Eu topo.
-Sério?
-Sim.
Apertaram as mãos.
-OK, mister André. Vamos ver essas orelhas se mexerem.
-Essa orelha.
-Isso.
O André flexionou os joelhos até sua orelha estar na altura dos olhos da Renata, e fixou o olhar no chão. franziu o cenho e, de fato, sua orelha esquerda se mexeu pra cima e pra baixo. Bastante até. A Renata não conseguiu segurar o riso.
-Ah, para... É só isso?
-Como assim, "só isso", mulher?
-Sei lá, pelo que tu falou achei que tu ia levantar vôo, ou algo do gênero. Isso não vale a minha gelatina. Quando muito um chiclete.
Estendeu um clorets na mão pra ele.
-Não... Peraí... Vamos renegociar, então. Eu rasgo a lista telefônica.
-Com tesoura?
-Não, palhaça... Pego ela por cima e rasgo ao meio, de mãos nuas. De cima abaixo.
-Sério?
-Séríssimo. Tava treinando pra ser o homem forte do circo.
-Cala a boca...
-Tô falando. E aí? Topa ou não topa?
-Tá. Topo. Faz aí.
-Mas aqui... Aqui eu não tenho nenhuma lista telefônica.
-Ih...
-Mas em casa tenho.
Ela olhou pra ele, sorrindo com os olhos. Ele sorria abertamente. De maneiras diferentes, os dois souberam naquele momento:
Se casariam, e teriam filhos fortes, capazes de rasgar listas telefônicas e doidos por gelatina rosa.

Um comentário:

  1. Adorei como a conversa dos dois fluiu. Acho que quando encontramos a pessoa certa é assim mesmo que acontece! E quando ela falou da camisa do ben 10 eu já sabia que na verdade era do Lanterna !

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