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quarta-feira, 1 de dezembro de 2010
Amarras
Quando criança, o Francineldo costumava passar o verão inteiro na casa da avó dele, no interior.
Ele adorava ir pra lá, a comida, os mimos e a atenção... Pra melhorar, sua avó ainda tinha uma caixa enorme cheia de brinquedos que haviam sido de sua mãe, de seu tio e de sua tia, e deixava ele brincar com tudo.
Além disso, Francineldo, que em Porto Alegre era um tremendo guri de apartamento, do tipo que pode brincar só no pátio do condomínio e olhe lá, na casa da avó se tornava um intrépido explorador que podia andar por onde quisesse até escurecer (menos no cemitério, "que tava cheio de maconhêro" lhe dizia a sua avó).
Na casa da avó, Francineldo andava o tempo inteiro com um pedaço de corda de sisal enrolada no ombro.
Lhe fora dada por seu avô. Não era muito grande, um metro e meio, dois no máximo, mas, cara! Era impressionante a segurança que aquela fração de corda dava pro Francineldo.
Com aquele pedaço de corda pendurado no ombro, Francineldo tinha a mais plena e inabalável certeza de que podia se ver livre de qualquer problema. E, com aquela corda, ele se sentia o tal.
Conversava com as outras crianças da vizinhança, organizava brincadeiras, até jogar bola o Francineldo jogava com a tal corda à tiracolo.
No fim do dia, depois de jantar, a avó deixava ele comer um pedaço generoso de bolo mármore com toddy, e brincar até depois da novela com os brinquedos da caixa.
Depois da Novela, o Francineldo tinha que ler.
Podia ser o que ele quisesse, livro, gibi, revista, até uma Playboy antiga da Sônia Braga que pertencera ao tio do Francineldo a avó dele liberava, contanto que ele, de fato, lesse alguma coisa. Depois de ler, o Francineldo comia uma fruta, escovava os dentes e ia pra cama, geralmente exausto.
Quando se preparava pra pular na cama usando só cuecas e camiseta, a avó do Francineldo assomava perguntando se ele não esquecera nada. Invariavelmente Francineldo negava, e invariavelmente sua avó apontava-lhe os brinquedos ainda espalhados pelo chão:
-Vai juntá os brinquedo.
Francineldo protestava, dizia que iria usá-los novamente no dia seguinte, que em casa não precisava guardar nada, que os brinquedos não atrapalhariam ninguém já que ele ficava sozinho no quarto.
Mas não tinha conversa.
Na casa da avó do Francineldo existiam poucas regras, quase todas flexíveis, exceto essa: Brinquedos na caixa.
Francineldo, não raramente, brigava com a avó por causa daquilo. Coisa de piá, claro. Ele, tão preso por uma série infindável de regras em casa, achava um ultraje se ver, ainda preso por um grilhão na casa da avó, onde acreditava que podia se despir de todas as obrigações.
Enfim, durante todos os dias, de todos os verões da infância de Francineldo, aquela frase o perseguia "Vai juntá os brinquedo.".
E lá ia Francineldo, com uma carranca entre o ofendido e o revoltado, juntar os brinquedos enquanto resmungava "Tá bom, vó.".
Francineldo eventualmente cresceu, claro, e, na adolescência, parou de frequentar a casa da avó durante o verão inteiro, limitando-se a umas poucas visitas eventuais.
Viajava com os amigos pra Santa Catarina, ou o Litoral Norte, começou a namorar algumas meninas aqui e ali, depois entrou na faculdade, fez estágio, então arrumou emprego, começou um namoro mais firme... Enfim, virou um adulto.
A namorada firme de Francineldo, que ele conhecera através de uma prima em segundo grau, era um doce. Francesca, era seu nome.
Apesar de achar Francesca um belo nome, especialmente pronunciado com um "tchê", no meio, "Frantchêsca", Francineldo referia-se à ela por Fran, pois era mais curto. A Francesca também chamava o Francineldo de Fran, mas era porque o nome dele era horroroso.
Davam-se bem a Francesa e o Francineldo, pelo menos a maior parte do tempo.
Tinham lá suas rusgas e diferenças o Fran e a Fran.
Ela era muito segura, ele era muito inseguro, ela era sanguínea e demonstrava calidamente tudo o que sentia, fosse falando em alto e bom som, dando uns gritos, se desmanchando em lágrimas, ou saltando no colo de Francineldo e enrolando as pernas na cintura dele não importava onde fosse ou quem estivesse por perto, para vexação dele, um tímido de carteirinha, silente e por vezes frio, para quem um "eu te amo", por exemplo, era inarticulável em voz alta.
Ela adorava música, dança e pessoas, ele odiava as três coisas.
Ela adorava cinema, ele adorava ler.
Ela queria ter um milhão de amigos, ele não queria nem vizinhos.
Ela queria comprar um apartamento junto com ele, já que praticamente moravam juntos, mesmo, ele dizia "vamos ver..." sem lá muita convicção, e postergava qualquer decisão.
Mas enfim, mesmo com todas essas diferenças, o que começou a causar, de fato, estrago na relação dos dois foi um outro fator:
A Francesca, bonita, inteligente, segura de si, queria ter filhos. Estava com trinta anos, e queria muito ser mãe enquanto podia ser mãe.
Por ela, teria sido mãe aos vinte, morria de medo de ser uma velhinha com adolescentes em casa. Mas Francineldo julgava-se despreparado para ser um pai de família, tanto financeira quanto emocionalmente.
Ainda nem sequer tinha comprado um apartamento, estava apenas pagando seu carro, imagine, ter um filho àquela altura, com o mundo naquele estado, era até uma irresponsabilidade...
As discussões sobre o tema começaram a se tornar mais frequentes, e até mais ríspidas. Foi durante uma dessas discussões que Francineldo foi salvo pelo gongo ao receber um telefonema, em plena tarde de sábado dando-lhe a notícia:
Sua avó morrera.
Aos noventa e um anos de idade, tendo vivido sozinha nos últimos doze anos após a morte do avô de Francineldo, ela encontrara seu fim dormindo pacificamente na casa em que passara os últimos sessenta invernos.
A mãe de Francineldo foi quem ligou para avisar. O corpo seria sepultado na cidade onde ela vivia, na capela da família no cemitério "dos maconhêro", mas ela precisava que um familiar liberasse o corpo junto ao IML local e que contratasse uma funerária para preparar tudo.
Francineldo, filho único, aceitou imediatamente a incumbência. Não chegou a ficar chocado com a morte da avó, ela já era bem velhinha, tivera uma vida boa e longa, merecia encontrar o descanso derradeiro enquanto ainda não se tornara dependente e enferma, certamente preferiria assim.
Francineldo, livre da discussão após o telefonema, despediu-se de Francesca, que apesar de ter visto a avó de Francineldo em apenas duas ocasiões, chorava copiosamente após receber a notícia.
Enquanto viajava, Francineldo chegou a sentir vergonha pelo alívio que aquela pequena viagem representava em seus últimos dias.
O trabalho o estava matando, tinha o chefe na sua cola, querendo que ele chefiasse uma comissão de transição para a fusão da empresa onde trabalhava com uma multinacional, a vida de pseudo-casado o estava matando, com Francesca na sua cola buzinando em seus ouvidos a ideia de ser mãe, seus (poucos) amigos o estavam matando, lhe dizendo que era pra ele tomar tendência e assumir logo a Francesca porque, do jeito que ele era, seria impossível outra mulher bonita, divertida e bacana que nem ela se interessar por ele...
O que ninguém, nem os amigos, nem o chefe, nem a Francesca sabiam, era que o Francineldo não estava sendo relapso, procrastinando decisões que, para qualquer outra pessoa seriam óbvias.
Ele de fato pensava nas coisas, e chegara à uma conclusão racionalmente medida e pesada:
Se borrava de medo de assumir qualquer uma dessas responsabilidades.
O Francineldo praticamente tinha urticária com a simples menção da ideia de ter que, efetivamente, arcar com uma relação sem poder fugir pra sua casa como fazia quando eventualmente brigava com a Fran na casa dela.
De ser o responsável pelo sucesso ou (Deus o livre) fracasso da fusão de sua empresa com outra, ou, que horror! Que horror!
A criação de um filho.
Um filho, mil vezes mais que um emprego ou um casamento, era uma responsabilidade perene, inalienável, intransferível, e que Francinedo levava tão a sério que chegava a ficar sem ar.
Enfim, Francineldo suspirou e parou de pensar a respeito.
Concentrou-se na estrada. Chegou na cidade da avó já de noite. Foi ao IML onde preencheu várias fichas e documentos responsabilizando-se pelo treslado do corpo. Contratou uma funerária local para preparar tudo, achou os custos bem altos, mas enfim, sua avó merecia uma despedida bonita, afinal de contas.
Escolheu um esquife, a lápide, as flores, velas, e a música que tocaria durante o velório. Após acertar tudo, foi para a casa da avó, onde dormiria naquela noite, apanhar uma roupa para ela usar durante o funeral.
Francineldo, acompanhado por um afável papa-defunto foi diretamente até o armário da avó. Apanhou um tailleur que ela provavelmente usara pela última vez na formatura dele, mas que certamente ainda serviria. Pegou meias, e sapatos, entregou tudo ao funcionário da funerária dentro de uma pequena bolsa, e despediu-se.
Fechou a porta e encarou a casa onde não ia há uns bons quinze anos.
Parecia igual.
Limpa, o mesmo cheiro de madeira, a mesma luz azulada entrando pelas janelas, em frente às duas poltronas onde ela sentava, antes de mãos dadas com o vô, depois sozinha, a TV, ainda um modelo antigo, de tubo, sem controle-remoto, que era "invento de preguiçoso" segundo ela.
Tudo igual...
O sofá coberto por uma pequena colcha de tricô, a mesa de jantar, que só era usada em aniversários e festas de final de ano, o grande relógio de parede que soava badaladas de hora em hora... Tudo lá... No mesmo lugar. O banheiro cheirando a detergente de lavanda, a cozinha cheirando a bergamota.
Foi até o quarto onde dormia quando criança. Despiu-se, até estar só de camiseta e cuecas. Deitou encarando o teto. Fechou os olhos.
Não conseguia dormir. Sentou.
Inclinou-se e enfiou a mão sob a cama. Alcançou a antiga caixa de brinquedos. A puxou com força.
Sempre fora tão leve? Tão pequena? Parecia quase uma arca quando era guri.
Abriu a tampa com cuidado e inclinou a caixa despejando seu conteúdo no chão em frente
à cama.
Ainda havia a pistola espacial de latão, com a ponta de plástico transparente e um astronauta pintado na lateral. Apertou o gatilho fazendo um barulho rascante de engrenagens.
Sorriu.
Tabuleiro multi-jogo, damas, xadrez, xadrez-chinês e caça-palavras. Dominó. Carrinhos em profusão. Algumas bonecas. índios e caubóis de plástico que lutavam em um antigo Forte-Apache. Animais de fazenda e animais de zoológico de plástico colorido. Soldadinhos verde-oliva. Dinossauros. Um pião. Bolitas de gude. Alguns super-heróis e vilões, um Superman em uma moto. "Por que o Superman andaria de moto?", indagou-se.
Francineldo vasculhava tudo, sorrindo.
Sob o tabuleiro de damas viu uma ponta de uma corda.
Puxou-a.
Nada especial, apenas uma fração de corda de sisal. Um metro e meio, dois no máximo. Uma lágrima acabou escapando de seu olho e correndo pelo seu rosto.
Ficou segurando a corda entre as mãos. Lembrando de quando era um intrépido explorador. Um craque da bola. Um organizador de brincadeiras. Ficou encarando as fibras envelhecidas daquela corda por um bom tempo, até sentir sono. Pensou em empurrar os brinquedos pra baixo da cama, juntá-los apropriadamente no dia seguinte, mas quase pôde ouvir sua avó ordenar que juntasse "os brinquedo".
-Tá bom, vó.
Juntou tudo com muito cuidado. Colocou todos dentro da caixa, inclusive a corda de sisal.
No dia seguinte, sua mãe chegou com seu pai. Um tio também chegou com a esposa, eram os dois filhos ainda vivos de três que nasceram.
Foram para a capela da família no cemitério, lá, em frente à capela, várias pessoas prestaram suas últimas homenagens à avó de Francineldo.
A mãe dele chorou muito, o tio dele, também. Francineldo consolou ambos, recebeu pêsames de vários parentes afastados, de amigos e de vizinhos de sua avó, que imediatamente o reconheciam, a despeito dos anos, e diziam coisas como "Francineldo, tu não mudaste nada, guri...".
Francineldo agradecia, embora não soubesse quem era a maioria das pessoas. Acompanhou o curto cortejo, empunhou uma das alças do caixão.
Manteve-se em silêncio, segurando o ombro da mãe enquanto o padre falava. Depois em pé, no momento da oração.
Não quis dizer nada, não era o estilo de sua avó, ela havia sido uma mulher de ação e de poucas palavras.
Após o enterro, ainda ficou no cemitério por mais algum tempo, se despediu, agradecendo a presença de todos, e quando estava sozinho, depositou as primeiras flores junto à lápide.
Voltou a Porto Alegre no mesmo dia.
Pensativo na estrada.
Ao chegar em casa, encontrou Francesca o esperando. A maquiagem que ela usava nos olhos estava borrada. Ele sorriu:
-Minha avó já está lá em cima festejando com meu avô e São Pedro e tu ainda tá chorando, guria?
Francesca sorriu, mas ainda chorava. Correu e o abraçou. Ficou pendurada no pescoço de Francineldo em silêncio.
Ele a pegou pelos ombros, e respirou fundo:
-Francesca... Eu te amo. Tu quer casar comigo?
A Francesca achou que ele estivesse doente, ou em choque. Que estivesse abalado pela experiência de enterrar a avó, que tivesse sido confrontado com a própria mortalidade e, de repente, quisesse colocar o carro na frente dos bois.
Francineldo suou a camisa para explicar que não, que sempre quisera aquilo, apenas não tinha coragem de verbalizar. Que ainda não se considerava maduro o bastante para ser pai, mas queria ser. E que casar com Francesca, assumir o compromisso de seu amor para com ela, era uma ótima forma de começar a fazer isso.
Na semana seguinte Francineldo assumiu a comissão de transição da empresa onde trabalhava.
Foi um pesadelo.
Caos total. Terrível. Trabalho para afogar um homem adulto. Mas Francineldo perseverou, e, com seus colegas, conseguiu organizar documentos e contas da companhia de modo a garantir uma fusão tranquila. Recebeu congratulações de seus superiores e foi promovido.
Oito meses e meio depois, ele e Francesca, já casados, estavam comprando um apartamento.
Com um quarto extra, pois ela estava grávida.
O Bebê nasceu em um frio começo de agosto, e foi batizado de Matheus.
Nos anos seguintes, a mãe e o pai de Francineldo eventualmente se mudaram para a casa que fora de sua avó, e no verão, Francineldo e sua família passaram a ir para lá durante as férias.
Quando Matheus completou sete anos, Francineldo deu-lhe o único brinquedo da antiga caixa que não estivera lá nos últimos verões.
Um envelhecido pedaço de corda de sisal de um metro e meio, dois no máximo.
Era uma corda velha, mas ainda firme, que poderia ser usada em inúmeras brincadeiras. Francineldo sorriu quando Matheus enrolou a corda no ombro e saiu cantarolando The Raiders March correndo pelo enorme quintal, e mandou que ele estivesse em casa antes de escurecer. Enfiou a mão no bolso e sacou de lá sua carteira.
Abriu-a e encontrou lá dentro algumas fibras da corda. Pedaços ínfimos que retirara dela anos antes, quando sua avó morreu. Aquelas pequenas fibras lembraram Francineldo, à época, de quem ele podia ser, de tudo o que queria ser, apenas não tinha coragem.
Ele não pensou, contudo, na ironia de que fora justamente uma corda que o desamarrara de seus medos e limitações.
Voltou pra dentro de casa. Precisava pedir que sua mãe assasse um bolo mármore.
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Ahh que história linda ! Muito bonita a evolução, o crescimento e a trajetória de Franceneido. Mesmo sendo um ser humano limitado - assim como todos nós - conseguiu se tornar um ser humano melhor!
ResponderExcluirA coragem sempre existe em nós. Só que é tão difícil de lhe dar a liberdade de nos assumirmos nela, que... a segurança do "mundinho" que organizamos parece melhor!!!
ResponderExcluirCoragem não é fazer tudo, é saber escolher cada coisa do tudo. Coragem não é sentir medo, é ir além desse medo na crença que está no rumo certo!!!
A história é emocionante!