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terça-feira, 16 de abril de 2013
Homem de Fundamento
O seu Parreira, cinquenta e tantos anos, começando a ficar grisalho, julgava-se um homem bem sucedido.
Jamais fora jogar em um cassino em Las Vegas e perdera uma fortuna, nem fizera um cruzeiro marítimo a bordo de um navio de vinte e seis andares ao redor das ilhas gregas, tampouco tivera em sua cama duas capas de Playboy ao mesmo tempo. Pra ser franco, não tivera nenhuma, e só subira em um navio quando resolveu passear com a patroa no Cisne Branco na orla do Guaíba, e isso já tinha alguns anos, e a maior aposta que fizera na vida fora abandonar o exército para se tornar escriturário, o que, no final das contas, fora uma aposta que ele ganhou.
Se o emprego não era, nem de longe, dos mais atrativos, o Parreira, unindo a disciplina militar à qual se afeiçoara ao longo de seis anos na corporação, a tirou de letra, e galgou os degraus da função até se tornar escriturário chefe da repartição, e pouco tempo depois, da região. Se aposentaria nessa função, e receberia uma aposentadoria digna que permitiria, quem sabe, fazer o tal cruzeiro com sua esposa, a Neyde, sua parceira de mais de trinta anos de luta diária com quem construíra uma vida, um lar e uma família.
Seu Parreira tivera, com Neyde, três filhos.
O mais velho, Oscar, formara-se engenheiro e seguira carreira militar, era capitão da aeronáutica e chegara a flertar com a aviação civil em face da iminente aposentadoria da frota da FAB, mas fora dissuadido por seu Parreira, que o aconselhou a segurar as pontas e continuar sendo um militar, que era um futuro muito mais garantido, considerando-se a baderna que era o mercado aéreo brasileiro. Oscar seguira o conselho do pai, permaneceu firme na Força Aérea, e, recém casado com uma boa moça que conhecera na Bahia, a Roselis, já preparava um primeiro neto para o Parreira.
O do meio, Adhemar, era um moleque rebelde. Queria ser jogador de futebol e odiava a escola. Seu Parreira, ao custo de muito esforço, conseguiu obrigar o fedelho a concluir o ensino médio e cursar, pelo menos educação física na universidade, pra ter um ofício caso o seu futebol fosse menor do que ele supunha. Provou-se certo. Adhemar não era tão bom de bola quanto imaginava, e se não fosse a faculdade, poderia ter ficado muito tempo desempregado. Mas não. Assim que percebeu que suas maiores glórias no esporte seriam nas peladas de final de semana, abraçara a carreira de educador físico. Mais que isso, cursara fisioterapia e tornou-se preparador físico de um bem conceituado clube de vôlei de Santa Catarina. Longe de ser o que Parreira queria, ao menos ainda era uma vida digna e que o moleque construíra por si próprio, com o pai apenas ajudando-o a dar o primeiro passo
Seu Parreira tinha ainda outro tesouro edificado junto à Neyde. Juliana. Sua princesinha, como não podia deixar de ser. A filha mais nova tinha o belo nariz e o sorriso de Neyde, mas herdara os cabelos escuros e os olhos claros da família de Parreira. Era alta, esguia e bonita como deveriam ser todas as moças de dezenove anos. Ainda era aplicada, tirava boas notas, estudava, queria ser geóloga e trabalhar com extrativismo mineral, o que em tempos de pré-sal e da companhia de extrativismo daqueles ricaços cujos filhos matam todo mundo lá no centro do país era certeza de escolha acertada.
Se havia alguma coisa em Juliana que não agradava ao Parreira, era o fato de ela ter, na opinião dele, "dedo podre pra homem".
Parreira queria sua filha casada. Não queria que ela fosse uma desfrutável que pula de cama de homem em cama de homem, dessas que acha que calcinha é adorno de tornozelo. De jeito nenhum, pra ele isso seria um destino pior que a morte. Mas, baseado no tipo de namoradinho que a Juliana sempre levara em casa... Ele já começava a se perguntar se o lugar da Juliana não era sendo a maior freira geóloga a serviço do Vaticano.
O primeiro namorado só não foi um espanto total porque era justamente o primeiro, conforme a Neyde o lembrou veementemente enquanto lhe entregava o antiácido, era um fedelho magrelo, com uma franja azul-marinho penteada por cima dos olhos que estavam mais maquiados que os da Juliana. O fedelho parecia um graveto, todo vestido de preto com botinas de militar e calça preta, e uma camiseta que nem lhe cobria o umbigo.
Entrou na casa a passos miúdos e nem sequer se dignou a erguer aqueles olhos cheios de rímel quando o cumprimentou com um "tudo bem?" quase inaudível.
Parreira não gostou do fedelho, e fez questão de deixar isso claro enquanto a Juliana se arrumava. Aterrorizando o moleque com histórias das atrocidades que o irmão dela, Oscar, que era da Força Aérea, faria a quem quer que maculasse sua irmãzinha.
Pareceu funcionar, ele nunca mais viu o fedelho de franja.
O outro namoradinho que apareceu, foi uma nova decepção. O moleque se vestia como um cantor de rap (Parreira jamais seria visto dizendo "rapper".), falava feito um cantor de rap, mas era branco como uma vela. Não bastasse todo o rap, nem mesmo era negro, o que faria dele ao menos um artigo genuíno. Era um branquelo criado a ovomaltine na Bela Vista que achava que era supimpa usar bermudas de boxeador, uma meia esticada e a outra arriada e camiseta de futebol americano com um boné cuja aba não apontava direito nem pra um lado nem pra frente. Entrou na casa mexendo os braços de um jeito esquisito e cumprimentou o Parra com um "E aí, dos meu?".
Aquele o Parreira aterrorizou por si próprio, afiando a sua faca de desossar na sala enquanto destrinchava um frango pra Neyde e assistia um documentário sobre a Guerra da Coréia no History Channel.
Depois do cantor branco de rap apareceu um bunda mole que estudava medicina. A Neyde reclamou que devia ser aquele, afinal, seria médico. O problema foi que, no breve período em que conversou com o rapaz, o Parreira descobriu que o sujeito jamais trabalhara na vida, que sua casa, carro e universidade eram bancadas pelo pai, que também era médico, cirurgião plástico, e que arranjaria emprego pro filho na sua própria clínica.
Obviamente aquele borra-botas mantido pelo pai não era homem suficiente pra sua Juliana, que além de ser sua princesinha era uma moça difícil, que colocava as coisas na cabeça e não era facilmente dissuadida, e que certamente esmigalharia aquele cretino.
Neyde começou a reclamar, após o sétimo namorado da Juliana ser reprovado na sabatina de Parreira (O quarto era um espírita fanático, que parecia ver gente morta que nem o molequinho daquele filme com o Duro de Matar e quase chorou de tanto que o Parreira tirou sarro dele a noite inteira. O quinto parecia um sujeito normal, mas quando o Parreira descobriu que ele não tinha nenhuma profissão exceto a de músico, e que só tocava cover do Jorge Vercilo no Olaria na sexta de noite, botou a correr. O sexto era bombeiro, o Parreira tava gostando dele até o sujeito dizer que ia apagar o fogo da Juliana, aí quase deu briga com o vizinho da casa ao lado tendo que segurar o Parreira pra ele não bater mais no rapaz. E o sétimo era um moço loiro, alto e muito bonito, que tinha uma loja de surfe e praticava o esporte, mas a verdade é que o Parreira jamais seria cativado por um sujeito que começava todas as suas frases com "Mó legal, aêêêê", de modo que nenhum vingou...), disse que daquele jeito a Juliana ou ficaria solteira, ou ficaria com um sujeito que o pai não aprovara, e o Parreira retorquiu que era muito melhor ela ficar solteira e morando com eles mais um pouco do que sair desajuizada pelo mundo com um qualquer que não seria capaz de protegê-la, mantê-la, de ser o bastião de uma família de verdade.
E o Parreira não estava brincando. Pra ele era importante que um homem soubesse ser provedor, mesmo que não fosse necessário. Agora mesmo tava aí a Coréia do Norte querendo bombardear todo mundo. E se tivesse uma III Guerra Mundial? Como é que ele ia dormir sabendo que a filhinha dele tava por aí de mãos dadas com um borra botas que não seria capaz de protegê-la? E se o apocalipse zumbi começasse de repente? Como ele ia perdurar com a Neyde sabendo que sua filha estava com um sujeito que era presa de zumbi? Como é que ele ia ter sossego sabendo que seu genro era um bunda-mole que não seria capaz de aguentar dez minutos de porrada com um palhaço que se engraçasse com sua filha ofendendo-lhe a honra?
Não... Mil vezes melhor com ele do que com um incompetente.
Foi então que numa sexta-feira qualquer a Juliana chegou em casa dizendo que ia se arrumar pra ir ao cinema. Quando o Parreira perguntou com quem, ela disse que era com o Nathan, e foi quando o Parreira viu o moço, um pouco mais velho que a Juliana, cabelo preto, barba, vestido sobriamente de tênis, jeans e camisa aberta sobre camiseta, óculos... Parecia normal. Era pouco mais alto que o Parreira, tinha constituição física sólida. Sacudiu a cabeça de cima pra baixo desejando boa noite ao Parreira, e apertou a mão da dona Neyde quando ela se aproximou. Não sentou enquanto não foi convidado a fazê-lo, e quando o fez, sentou-se ereto em apenas uma das almofadas do sofá, com os dois pés no chão, e quando os moveu, não foi pra sentar em cima de uma das pernas como aquela bicha fantasmagórica fizera, não, cruzou a perna como devem fazer os homens de fundamento. Conversou sobriamente com dona Neyde sob o escrutínio atento de Parreira, até que este resolveu dirigir-lhe a palavra:
-Mas me diz, Nathan... O que é que tu faz pra viver?
-O que for necessário. - Respondeu o rapaz, olhando firme nos olhos do interlocutor no exato momento em que a Juliana saía pronta do quarto e avisava que já dava para irem.
Só mais tarde o Parreira descobriu que o Nathan era professor de geografia, mas já não importava. Fora conquistado pelo "O que for necessário.". "Aquilo, sim", diria mais tarde, "era um homem de fundamento.".
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