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quinta-feira, 18 de abril de 2013
Perpétua em Shawshank
Entraram no bar de sempre, sentaram na mesa de sempre, e acenaram pro garçom que não era o mesmo de todas as outras vezes, mas um rapaz novo chamado William, que o Everaldo insistia em chamar de Billy, que fez um sinal levantando o dedo indicador com as sobrancelhas bem erguidas e apontando com os olhos pro outro lado, deixando muito claro com aquela mímica sinistra que ia atender uma outra mesa ali e já vinha.
O Paulo Roberto sentou na sua cadeira de sempre, de frente pra TV, que ele detestava perder o noticiário, e o Everaldo sentou de costas pra TV que era apenas uma forma de o governo nos incentivar a comer porcaria e agir feito idiota.
O Everaldo sentou apoiando os punhos sobre a mesa e cruzando os dedos. Ficou nessa posição por uma fração de segundo, só até perceber que a mesa tinha sido retirada, mas não limpa, então suspirou com nojo enquanto virava os braços olhando se tinha se molhado ou se sujado.
O garçom chegou, simpático, e prestativo, limpou a mesa com capricho.
-E aí, gente? Um chopinho pro Everaldo e uma Coca pro Paulão?
O Billy chamava o Paulo Roberto de Paulão. A maioria não se ligava no "Roberto", e como ele era um sujeito grande uma coisa levava à outra, o Paulo Roberto nem ligava, de certo modo, parecia fazer sentido.
O Everaldo imediatamente assentiu, fazendo a ressalva de que não queria chope de fim de barril, e que tivessem consideração com ele e abrissem um novo antes de lhe oferecer o último copo de um barril que terminava, ao que o garçom assentiu com uma piscadela. O Paulo Roberto, porém, deteve o rapaz com um gesto e disse:
-Quero Coca, hoje, não, William. Me traz um chope e uma dose de tequila.
O rapaz olhou pro Paulo Roberto com espanto por uma fração de segundo, mas deteve-se e ergueu as sobrancelhas enquanto apontava os cantos da boca pra baixo em uma expressão que tanto podia significar "entendi", como "tu que sabe", ou "porra... Quem diria.". O Everaldo, porém, se espetou na cadeira, e olhando por Paulo Roberto começou:
-Que merda é essa, agora?
O Paulo Roberto não respondeu. Ficou em silêncio olhando pro amigo do outro lado da mesa.
-Hein? - Insistiu o Everaldo.
-Merda nenhuma, porra. Quero beber, hoje, por quê?
-Deixa nosso pedido em espera, Billy.
O William saiu de fininho, deixando o Paulo Roberto sozinho com seu amigo na mesa. Voltou rápido se esgueirando feito uma serpente, e largou uma cesta de castanhas variadas no centro da mesa pedindo licença, e voltou a sair.
Everaldo começou:
-Me diz uma coisa, Pê Erre... A quanto tempo tu não bebe?
-Sei lá... Dois anos?
-Por aí... Uns dois anos.
-Mas se tu não lembra, eu nunca tive problemas com a bebida. Nunca fui alcoólatra, nem sequer era de ficar bebum em final de semana. Eu parei de beber simplesmente porque eu quis parar. Porque eu não tava mais curtindo.
-Eu tô sabendo, Pê Erre. Tô sabendo... Não tô fazendo essa merda porque tu é alcoólico... É porque a uns dois anos tu sacou que não precisava mais beber, que não curtia, que tava na boa sem isso. E hoje, tu me encontra com cara de cu, o que não chega a ser novidade, já que tu anda com cara de cu já tem uns bons quatro, cinco meses, mas tu chega com cara de cu, me cumprimenta bufando, entra no bar e pede chope e tequila, e, mais impressionante de tudo, falou "porra", quando eu te perguntei o que tinha acontecido, e não disse "obrigado" quando o guri largou as castanhas na mesa.
O Paulo Roberto não disse nada. Tinha as mãos no colo e estava sentado meio jogado na cadeira do bar, como um adolescente rebelde prestes a levar um sermão da diretora do SOE. O Everaldo continuou:
-Então... Tu ficar com o cu virado, te entristecer, e essa merda toda, tranquilo. Tô habituado com essa porra. A teu modo, tu é um filho da puta sensível, e sempre teve essa tendência de veado a ter crises existenciais, e o caralho... Na boa. É do jogo. Tu aguenta muita merda de minha parte, então, como teu amigo, eu tô aqui pra aguentar eventuais merdas de ti.
O Everaldo se endireitou na cadeira enquanto descascava um pistache. Seguiu:
-O lance é que, o teu normal, mesmo quando tá triste, acabrunhado, de coração partido e essa merda toda, é ser educado. Tu é um filho da puta polido. Sempre foi. Liga pra convenções sociais e talicoisa. Não vou te dizer a bobagem que essa porra toda é, mas enfim, tu sabe e é assim...
O Everaldo largou as cascas ao lado da cesta de castanhas, sobre um guardanapo que ele abrira estrategicamente antes de fazer seu pedido e comeu a castanha lambendo os dedos longos e finos. Mastigou brevemente e engoliu:
-É o teu normal. E se tu tivesse pedido "um chope e uma tequila, por favor", eu não teria visto nada de errado em tu querer ingerir um pouco de álcool hoje, seja pela bosta que for, mas quando tu quer beber, mas tu não é bem tu, então, meu velho, tem alguma merda mais grossa na parada.
O Paulo Roberto não disse nada. Fez sinal pro William que atendeu de pronto. Ergueu a cabeça enquanto se endireitava na cadeira e disse:
-William, nos traz uma Coca-cola seiscentos bem gelada e um chope, por favor.
-É pra já. - Assentiu o rapaz, saindo de imediato.
O Everaldo não tinha se mexido.
-Tu quer falar dessa porra aí que tá te incomodando, Pê Erre?
O Paulo Roberto tirou os óculos e massageou o nariz. Olhou pro Everaldo:
-Pois é... Então. Ela foi embora.
-Foi?
-Arram.
-Bom... Mas... Ah, merda. Não me xinga por eu dizer isso... Mas tu não tinha mandado ela embora, de certo modo?
-Acho que sim... - Disse Paulo Roberto, colocando os óculos de volta no rosto e silenciando enquanto o chope e o refrigerante eram colocados diante deles na mesa. Agradeceu ao William quando este saiu, e continuou:
-Mas sei lá... Por mais magoado que eu estivesse... Achei que... Achei que merecia ao menos uma despedida... Sabe?
-E ela... Tu acha que ela não tava magoada pra caralho, também, e quis evitar a merda da despedida?
-Devia estar... Tu tem razão. Deveria estar...
-É... Quem te contou que ela foi embora?
-Ninguém... Fiquei sabendo, só.
-Que foda... Lamento, Pê Erre. Mas quem sabe, de uma porra de jeito torto, não fosse disso que tu precisava pra sair dessa fossa cheia de merda que tu tá e tocar o barco?
-Eu meio que pensei nisso... Juro. Pensei nisso na hora, sabe? Mas acho que... Sei lá. Ela isso. Que eu tava seguindo em frente.
-Porra, e tu tá, Pê Erre...
-É... Acho que... Olha. Não é fácil. Ela diz que eu já não olhava pra ela com os mesmos olhos... Que a minha percepção dela mudou... E não é, sabe? Na verdade, depois dela, a minha percepção da vida mudou. Minha vida é antes e depois dela. Eu queria tudo. Tudo, mesmo... E saber que ela era incapaz de confiar em mim, saber que o passado ia ficar coaxando entre nós feito um sapo inchado e mal-encarado... Isso me matou. Isso matou minha melhor parte, Everaldo. E eu me peguei mais magoado do que eu sabia que podia ficar... Mais do que eu tinha ficado na época da Conexão Argentina... Porque naquela época, eu fiquei ferrado, mesmo. Fiquei, mas tipo, ali eu sabia que tinha que seguir em frente, então bora continuar. Agora não. Agora, Everaldo, eu me sinto num show de talentos que acabou de ter uma apresentação dos Beatles e o próximo número é um cara que faz barulho de peido com o sovaco. Eu não sei o que fazer... Sério... Ela falou do cachorro do Richard Gere... E eu não sei se foi por acaso, ou não. Não sei se ela lembra, que na primeira vez em que nós nos sentamos pra conversar juntos, a primeira vez em que ela tomou todo o refrigerante dela, e depois terminou o meu, era um sábado, e esse filme estava passando na TV... E isso... Essa compreensão súbita disso... Foi como se tivessem enfiado a mão na minha boca e arrancado o meu estômago pelo esôfago...
O Everaldo sorveu um longo gole do seu chope, e fez, ainda que brevemente, um ruído e uma expressão de atestaram em favor do sabor e da cremosidade da bebida. Mas pousou o copo cuidadosamente sobre a bolacha de chope, antes de olhar meio pro Paulo Roberto, meio pra cima, e começar:
-Tu vai seguir em frente, Pê Erre... Aos trancos e barrancos... Vai ser uma merda. Vai ser uma porra. Vai ser o caralho mais fodido do mundo... Vai ser como estar preso em Shawshank.
-Shawshank? A prisão do Um Sonho de Liberdade? - Perguntou Paulo Roberto, pra ter certeza de que acertara o símile.
Isso... A vida vai ser como perpétua na prisão de Shawshank, Pê Erre. Tu tá preso aqui pra sempre, e o tempo todo vão estar tentando foder teu rabo.
É... - Concordou Paulo Roberto bebendo um gole da Coca-cola geladinha que William lhe trouxera. - Só que Andy Dufresne escapou vivo de Shawshank. Eu não vou conseguir fazer a mesma coisa...
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