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terça-feira, 2 de abril de 2013

O Inverno Está Aqui



Ela estava sentada, bonita, do outro lado da mesa. Calça jeans, regata listrada de azul e branco, tênis all-star vermelho. Os cabelos loiros, já haviam crescido até aquele comprimento em que se tornavam curtos demais pra prender e longos demais pra pentear, de modo que, mesmo lisos e finos, se espetavam ao redor de sua cabeça formando uma nuvenzinha, ou um halo, dependendo do ponto de vista.
Estava atirada na cadeira, com a bolsa de brim jogada sobre o colo, mexendo no celular enquanto uma garrafa de Pepsi suava à sua frente.
Ele chegou e parou diante dela, esperando ser notado. Ela era distraída. Quase tanto quanto ele.
Ignorou-lhe a presença por longos momentos até erguer os olhos da tela do telefone, e abrir um sorriso ao se deparar com ele.
-Chegou cedo! - Exclamou enquanto se levantava. -Achei que fosse demorar mais, guri.
Fez a volta por trás da cadeira e o abraçou com força, estalando-lhe um beijo na bochecha. Ele lamentou ter se barbeado na noite anterior, seu rosto devia estar áspero dos tocos da barba. Enlaçou-a pela cintura fina, e também beijou-a no rosto.
Ela tinha um cheiro cítrico muito bom. Os perfumes dela eram sempre cítricos desde que ele era capaz de lembrar.
Caía bem nela.
Alta, esguia, parecia ágil. Era justo que tivesse um cheiro cítrico, perfumes doces não combinariam com ela, ela não era floral ou amadeirada.
Não. Ela era cítrica.
Era ácida. Ela nem era laranja ou bergamota.
Era limão. Totalmente limão.
Ele adorava limão.
Pensou em tudo isso enquanto ela se desvencilhava de seu braço e voltava a se sentar:
-Quer Pepsi? - Ofereceu, empurrando-lhe a garrafa.
Era a única pessoa que ele conhecia, além dele próprio e de um tio, já falecido, que preferia Pepsi à Coca.
Anos antes, durante um intervalo na faculdade, quando ele lhe dissera, muito empolgado, que também preferia Pepsi, ela fez cara de pouco caso e disse "Ah, então tu é o outro.", e sorriu. E naquele momento, ele tinha tido a mais inabalável certeza de que jamais teria nenhuma chance com ela.
Ainda assim, resolveu que uma moça descolada e bonita como ela, era alguém de quem gostaria de ser amigo.
E amigo dela seria, se ela quisesse.
Fizeram alguns trabalhos juntos nas duas disciplinas que partilharam na universidade, se recomendaram livros e filmes, até que, numa festa na casa de um colega, se beijaram.
Haviam namorado por seis, sete meses. Talvez um pouco mais. Mas acabou de maneira abrupta.
Com ele extremamente magoado e sentindo-se traído, embora não houvesse existido traição de fato.
Ficaram muito tempo sem se falar. Quatro anos. Talvez mais. Mas finalmente voltaram a fazer contato. Ele se sentiu maduro o suficiente pra deixar as coisas pra lá. Não doía mais como já doera antes.
Ela era uma ótima pessoa pra ter como amiga, enfim...
E amigos voltaram a ser. Não melhores amigos. Não de frequentar a casa um do outro. Mas de se ligarem de quando em quando, trocarem mensagens de texto, e-mails, piadinhas em redes sociais, se encontrarem eventualmente pra assistirem juntos filmes que, de outro modo, veriam sozinhos.
Ele gostava da companhia dela. Gostava do cheiro dela. E da voz. A voz dela era muito, muito, muito bonita.
Gostava da forma como ela era capaz de se sentar em posição de lótus na cadeira do cinema segurando um balde de pipocas e um copo grande de suco de maracujá (cítrico, sempre cítrico) no colo, sem usar os porta-copos.
Ela devia gostar de alguma coisa que ele fazia, mas ele, francamente, não sabia o que poderia ser.
Eram bons amigos, e a despeito de já terem partilhado camas, chuveiros e uma vez, o elevador da universidade, sabiam ser apenas amigos.
Quando ela ligou pra ele perguntando se ele queria dar uma volta, o primeiro reflexo dele foi dizer que não.
Estava cansado, aborrecido, e acabrunhado. As coisas não iam bem, e ele estava sem paciência pra conversar.
Mas aí lembrou-se que agora era amigo dela. E que amigos devem fazer sacrifícios eventuais um pelo outro, ainda que pequenos.
E então foi.
E agora ali estavam, ela e ele, sentados de frente um pro outro na lanchonete onde, uma vez, haviam comido juntos e ela brincou dizendo que o pediria em casamento naquele mesmo lugar, expondo um plano de falar com o garçom, pedir para o pessoal do balcão tocar "Linger", dos Cranberries, e oferecer pra ele aquele anel das duas cobras do Aragorn, que era a forma como ela chamava o anel de Barahir, e eles riram enquanto dividiam uma porção de fritas com quatro queijos e bebiam Pepsi.
Ela sorria, olhando pra ele. Ele se lembrava de amar aquele sorriso.
Parecia ter sido a tanto tempo... Ela suspirou:
-Ned...
Ela fazia isso desde sempre. O chamava por nomes de personagens de filmes e séries. Ela não era, nem de longe, nerd como ele, mas era apaixonada por mitologia em geral, e fã declarada de fantasia medieval. Adorava O Senhor dos Anéis, lera a série Angus, era fã declaradíssima de Bernard Cornwell, e lera As Crônicas de Gelo e Fogo assim que foi publicado em 2010. Logo que se conheceram, ele tinha os cabelos curtos, usava óculos e frequentemente envergava uma camiseta do Superman, de modo que ela passou muito tempo chamando-o de "Clark".
Quando ela voltou, após poucos meses de terem retomado o convívio, passou a chamá-lo de Ned, e ele descobriu, mais tarde, ser por conta de Eddard Stark, o personagem honrado demais e esperto de menos vivido por Sean Bean em Game of Thrones.
Ela dizia:
-... Como é que tu tá?
-Eu? - Ele perguntou, no jab verbal mais cretino que existe, que é perguntar uma obviedade para ganhar tempo antes de responder.
Ela sorriu, baixando os olhos para as próprias mãos, sobre a mesa. Ele amara aquelas mãos. Amara senti-las em si. Amava a forma como ela costumava puxá-lo por trás das orelhas antes de beijá-lo de surpresa dizendo "Beijão", forçando a garganta para fazer uma desajeitada voz grave que desafinava e lhe arrancava risos.
-É... Tu. Como tu tá? - Ela perguntou de novo.
Ele riu. Riu forçado:
-Olha... Melhor que uns... Pior que outros...
-Sério...
-Eu já estive melhor. - Ele respondeu, desmanchando o sorriso.
-Eu sei. Dá pra ver. É por causa do lance com a tua vó?
-Também. - Ele desistiu de maquiar o que sentia. Ela não era amiga dele? Se queria saber, ele devia dizer. Quando ela perguntasse o que podia fazer pra ajudar, ele diria que ela podia ser amiga dele. Eles comeriam uma porção de fritas, conversariam sobre qual das famílias de Westeros era a mais desgraçada, e ele a levaria até em casa.
Mas ela não perguntou o que mais era.
Ao invés disso disse:
-Tu sabe que eu tô aqui contigo, né? Pra o que tu quiser.
Ele pegou a mão dela por cima da mesa e sorriu:
-Eu sei, alemoa.
Comeram as fritas. Beberam Pepsi, e falaram mal dos Frey e dos Greyjoy, escolhidos por ambos como as piores famílias de Westeros, mas também houve menção desonrosa dela para os Bolton. Depois, ele olhou pro relógio e bocejou, e ela entendeu que ele queria ir embora.
Andaram pela Lima e Silva até a André da Rocha, depois entraram na Salgado Filho e subiram em direção à Duque de Caxias, onde pararam diante do prédio onde ela morava, quatro ou cinco quadras de distância da casa dos pais dela, onde ele havia dormido com ela muitas vezes, anos antes.
Ela abraçou ele com força. Ele instintivamente se abaixou arqueando os joelhos e dobrando o tronco, apesar de não precisar, ela media um metro e setenta e sete, endireitou-se e a abraçou de volta.
Ela estava encostada nele. O corpo esguio dela colado ao dele, ele sentia a respiração dela no próprio peito, e quando ela suspirou de cabeça baixa, ele sentiu o hálito dela banhar-lhe o pescoço, e sentiu-se excitado como quando ela e ele estavam juntos.
Ela o encarou e os olhos azuis dela o afogaram. Ele passou a mão no rosto barbado dele, e demorou-se sobre a cicatriz que ele ostentava na face esquerda:
-Tu sabe que eu tô sempre aqui pra ti, não é?
Ele tinha os olhos fechados:
-Sei... E eu tô aqui pra ti, também.
Ela esticou o pescoço, e colou os lábios nos dele, apenas isso. Lábios nos lábios. Quando ela se afastou, tinha os olhos rasos d'água:
-Me desculpa por ter ido embora.
Ele engasgou, as palavras presas em sua garganta.
Não muito tempo antes, desculpara uma pessoa que lhe era muito cara da boca pra fora. Ainda estava muito magoado à época, mas pareceu-lhe errado, indelicado, não desculpar alguém que era forte o suficiente pra pedir desculpas.
Desde que aceitara aquelas desculpas sem querer fazê-lo, sentia-se como se algo dentro de si estivesse mais quebrado que o de costume.
Tomou fôlego:
-Acho que... Acho que na época... Tu ter ido embora foi a coisa mais dolorida que já tinha me acontecido, sabia? Eu nunca tinha me sentido tão mal, tão ferido... Abandonado, mesmo... É ridículo, mas sabe... Eu achei que nunca fosse me recuperar daquilo.
Ela tinha lágrimas escorrendo de suas bochechas lisas.
-Me desculpa... Eu era egoísta... Idiota...
-Não... Não... Tu não era. Tu cuidou da tua vida, fez o que precisava fazer, o que era certo fazer. - Ele ficou surpreso com a facilidade com que as palavras saíam -É claro que eu te desculpo.
Ela abraçou ele com força e soluçou baixinho. Ficou de cabeça baixa, escondendo o rosto na camiseta dele por algum tempo, então, limpou os olhos, o nariz vermelho, mas um sorriso desenhado na boca bonita dela:
-Tu quer subir? Eu baixei as duas temporadas do Game of Thrones.
Ele passou a mão no rosto dela. Ela era muito bonita. E a voz dela era linda, e ela tinha um cheiro cítrico que ele achava extremamente excitante.
Ela fazia um arco perfeito com o pé, e sempre tinha latas de Pepsi em casa...
Mas ele não era mais apaixonado por ela. Percebeu isso quando conseguiu desculpá-la sem nenhuma dificuldade. Estalou um beijo no rosto dela agradecendo:
-Tenho que trabalhar amanhã cedo, alemoa.
Foi embora pela Duque, mesmo. Parou no alto do viaduto, e lembrou-se de que, uma vez, fora muito feliz olhando a cidade dali.

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