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quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Resenha Filme: O Expresso do Amanhã


A adaptação da graphic novel francesa La Transperceneige pelas mãos do diretor sul-coreano Joon Ho Bong, de O Hospedeiro é um desses filmes que sofreram por conta do estúdio.
Harvey Weinstein, o distribuidor do longa, aparentemente ficou insatisfeito com o corte final do filme, com pouco mais de duas horas, e insistiu para que vinte minutos do longa fossem cortados antes do lançamento. Ho Bong, por sua vez, ficou insatisfeito de ter sua obra aleijada na sala de edição. A queda de braço terminou com o longa sendo lançado em sua versão completa, mas em "circuito reduzido". Pronto para ser visto desde 2014, O Expresso do Amanhã pingou por festivais ao longo daquele ano, e só chegou a circuito comercial no Brasil, em fins de agosto desse ano, em poucas salas e em horários impossíveis pra qualquer pessoa que trabalhe assistir.
Por sorte, o Netflix tá aí pra dar aquela mão amiga aos amantes de filmes, e desde a semana passada, o longa consta na lista de opções do serviço de streaming.
Em O Expresso do Amanhã, no ano de 2014 a humanidade tentou resolver o problema do aquecimento global da maneira mais fácil. Dispersando um químico congelante na atmosfera da Terra em uma tentativa de reduzir as temperaturas de volta a níveis aceitáveis.
O tiro saiu miseravelmente pela culatra, mergulhando o planeta Terra de volta à era do gelo, e extinguindo toda a vida.
A exceção ficou por conta de um único lugar.
Um poderoso trem autossustentável desenvolvido pelo industrial Wilford (o sempre excelente Ed Harris), que jamais precisa parar em um circuito perene ao redor do mundo, livre das mazelas do clima inclemente lá fora.
Agora, dezessete anos depois, em 2031, os remanescentes da raça humana vivem dentro do trem de Wilford. Nos carros da frente, os endinheirados que vivem com conforto e comida de sobra, aproveitando piscinas térmicas, danceterias e cabeleireiros, enquanto nos vagões do fundo, os pobres procriam em cima da própria sujeira, vestidos como mendigos enquanto se alimentam exclusivamente de barras de proteína cuja receita é particularmente indigesta.
Nesse cenário, Curtis Everett (Chris Evans) surge como um líder do povo dos vagões do fundo. Ele e seu amigo Edgar (Jamie Bell) seguem Gilliam (John Hurt), o ancião que acredita que o povo deve ascender aos carros dianteiros, nem que seja à força.
Conforme os abusos das autoridades do trem se tornam mais insuportáveis, com a tomada dos filhos de Tanya (Octavia Spencer) e de Andrew (Ewen Bemner), e castigos físicos degradantes impostos pela ministra Mason (uma irreconhecível Tilda Swinton) a hora de agir chega.
A chave para a revolução, literalmente, é o especialista em segurança Namgoong Minsoo (Kang-Ho Song, de O Hospedeiro). Minsoo foi um dos engenheiros responsáveis pelo projeto do sistema de segurança do trem, até se viciar em drogas e ser colocado em prisão criogênica dentro do trem junto com sua filha Yona (Ah-Sung Ko).
Com Minsoo ao seu lado, Curtis começa a violenta tomada do trem, e a tortuosa jornada rumo à locomotiva que controla o destino de toda a humanidade.
O Expresso do Amanhã divide um senso visual bastante claro com os longas de ficção de Terry Gilliam (talvez o personagem de Hurt seja uma homenagem?). Enquanto assistia ao filme, eu me lembrei de O Teorema Zero, de O Pescador de Ilusões e de Brazil - O Filme, por conta do visual da produção, sim, mas também da história e da caracterização dos personagens.
Bong, no entanto, não se esforça para copiar o ex-Monty Python, ainda que se inspire nele, e consegue imprimir suas próprias marcas no longa, repetindo sua forma de desvirtuar premissas ordinárias em experiências surpreendentes como fez em O Hospedeiro. Junto com o co-roteirista Kelly Masterson, Bong consegue superar até mesmo as óbvias limitações visuais e dramáticas de um longa sobre oprimidos andando por dentro de um trem bem comprido.
Visualmente, as limitações são superadas graças tanto ao cenário desolado visto através das janelas, mostrando aviões caídos, navios tombados no seco e cadáveres congelados a apenas centenas de metros de onde saltaram do trem, mas também a inventivos vagões da composição, como o gigantesco carro aquário, ou a já mencionada danceteria.
Dramaticamente, o longa parece não se ressentir da falta de espaço, criando inventivas sequências de ação como a luta dentro do túnel, que começa vista em primeira pessoa através de óculos de visão noturna, e termina iluminada por tochas, ou a sequência dos ovos na sala de aula de uma perturbada professorinha (Alisson Pill). Não obstante, há ainda espaço para humor desconfortável, e até mesmo para drama autêntico, graças ao talento do elenco, capaz de transformar falas que, sem contexto, pareceriam um pastiche, em algo realmente perturbador, e, claro, graças ao diretor que consegue que a audiência se importe com tais personagens quando eles entregam tais falas, e que sejamos tomados por uma sensação mista de triunfo e pavor quando o filme termina.
O Expresso do Amanhã merecia mais deferência do distribuidor. Melhor sorte nas bilheterias. Melhores horários nos cinemas brasileiros... Mas mesmo sem nada disso, ainda é um ótimo filme, e um ótimo programa, que merece platéia.
Assista. Vale demais a pena.

"Você já esteve nas seções da cauda? Você faz alguma ideia do que aconteceu lá? Quando subimos a bordo? Foi o caos. É, nós não congelamos até a morte, mas não tivemos tempo de ficar gratos. Os soldados de Wilford chegaram e tomaram tudo. Mil pessoas dentro de uma caixa de ferro. Sem comida, sem água... Depois de um mês nós comemos os fracos... Você sabe o que eu odeio em mim? Eu sei o sabor da carne humana. E sei que bebês têm sabor melhor..."

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