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quarta-feira, 14 de setembro de 2016
Choro
Samuel saía do supermercado, ao atravessar a rua em direção à sua casa, carregado de sacolas, quando viu uma menina de doze, talvez treze anos, sentada em um banco da praça que ficava em frente à loja.
Ela chorava copiosamente. As mãos no colo, as costas coladas ao espaldar do banco, soluçava.
Samuel sempre se apiedava ao se deparar com as lágrimas de outrem.
Não conseguia evitar uma ponta de aflição. Sempre se perguntava se devia fazer alguma coisa. Dizer alguma coisa. Oferecer algum tipo de auxílio ou amparo. Qualquer coisa.
O sofrimento alheio, quando transbordava pelos olhos, era algo ao qual Samuel não conseguia ser indiferente.
Quando era em adultos, sempre existia o receio de ser rechaçado, taxado de enxerido. De metido. Santarrão...
Uma vez vira uma mulher chorando no shopping. Uma funcionária da Renner.
Ela saiu de dentro da loja, se escorou na parede, e chorou copiosamente sem que ninguém lhe dissesse palavra.
Samuel ficou arrasado. Teve ânsias de se aproximar e perguntar se estava tudo bem. De ampará-la... Sabia como era difícil chorar sozinho quando se passava por um apuro.
Olhando em perspectiva, teria sido uma espécie de bálsamo se alguém houvesse surgido lhe oferecido amparo. Mesmo que fosse algo pequeno, como uma mão no ombro.
Apenas para que ele soubesse que não estava sozinho.
Naquela ocasião, no shopping, ele não se aproximou.
As convenções sociais venceram seus ímpetos e ele se manteve à margem do sofrimento daquela mulher.
Ainda hoje pensava no que teria acontecido...
Qual teria sido o desgosto que levara aquela mulher a abandonar seu posto de trabalho e chorar de maneira tão aberta e dolorida?
Ele seguiu seu caminho à época sem voltar ou olhar para trás.
Mas agora... Agora era uma criança quem chorava. As limitações sociais e a privacidade tinham limites mais cinzentos quando se tratava de uma criança.
Ela poderia estar em um apuro que não seria capaz de resolver sem o auxílio ou a supervisão de um adulto.
Se fosse o caso, estaria à mercê de quem lhe oferecesse auxílio, e Samuel sabia que existia muita gente mal-intencionada no mundo. Então, se era pra alguém oferecer a mão àquela menina, que fosse alguém de intenções verdadeiramente altruístas, como ele próprio.
Aproximou-se devagar. Com um sorriso perdido em meio à uma expressão de genuína comiseração.
A menina chorava já havia algum tempo. Ainda que soluçasse e tivesse o rosto vermelho e inchado, já esgotara suas lágrimas. Qual seria o mal que afligia aquela menina a tal ponto de sofrimento e dor?
Samuel se perguntou se estaria equipado psicologicamente para oferecer ajuda diante de um caso particularmente horrível... E se ela houvesse perdido seus pais... Se fosse vítima de algum tipo de abuso...? Se alguma coisa realmente terrível tivesse acontecido, o que ele poderia fazer?
Titubeou.
Talvez essa fosse a razão para não oferecer auxílio. O fato de que, em certas ocasiões, simplesmente não haveria auxílio para oferecer. Não coubesse em suas mãos oferecer ajuda para determinados tipos de aflição... Talvez devesse virar as costas e ir embora...
Parou de andar. Chegou a se preparar para virar sobre os calcanhares e partir.
Mas deteve-se.
Era exatamente esse tipo de decisão que fazia com que o mundo fosse um lugar tão miserável.
Achar que não se envolver era melhor.
Algum amparo, mesmo que insuficiente, era melhor do que nenhum amparo.
Aproximou-se:
-Por que é que tu estás chorando, guriazinha?
Ela virou os olhos pra ele. O rosto desfigurado por um longo pranto. Os lábios tremeram e seus olhos ficaram rasos d'água.
Samuel se apiedou. Sentou-se no banco em frente ao que a menina ocupava.
Não queria sentar ao seu lado e causar a impressão de que era algum tipo de pervertido. Mas começava a se perguntar que tipo de trauma aquela criança ostentava que a fazia desabar daquela forma.
De uma de suas sacolas de compras sacou uma embalagem de toalhas de papel. A abriu e removeu um rolo arrancando uma folha.
A estendeu para a menina:
-O que foi que houve? - Perguntou. -Por que é que tu está assim?
A menina apanhou a toalha de papel e a colou no rosto. Começou a falar mas as palavras foram engolidas por um murmúrio que se tornou uma nova sessão de choro.
Samuel não sabia o que fazer.
-Olha... Não fica assim... O que quer que tenha te acontecido... Tu não tá sozinha...
Arriscou. Achava que estar sozinho quando sofria era uma das piores sensações que podia existir.
-Mas eu tô... - Replicou a menina. -Eu tô sozinha...
Os piores temores de Samuel se materializaram. A menina estava sozinha... Seria uma órfã sem irmãos? Talvez a filha de uma viúva e agora perdera a mãe para alguma doença gravíssima? Será que ela não tinha família imediata a quem recorrer e temia ser institucionalizada?
Que horror...
ofereceu o rolo de papel-toalha à menina, que aceitou.
-Mas... Olha... Porque tu acha que está sozinha? A tua família...? Eles...
A menina o interrompeu:
-A minha família não entende!
Samuel também não... Então ela tinha família?
-Mas... Tu tem família?
-Tenho... Mas eles não entendem que eu tô sozinha... - Chorou.
-Por que tu está sozinha...? - Samuel estava confuso.
-Porque ele terminou comigo... - Disse a menina, num soluço.
"Ele terminou comigo"? A menina estava falando de... Um namorado? Mas ela era uma criança. Não devia ter catorze anos...
-Teu... Namorado terminou contigo? - Perguntou, incerto.
-É! - A menina confirmou. E novamente se desmanchou em lágrimas.
Samuel não conseguia entender um namoro causar tanto sofrimento para uma criança... Mas ele era antiquado. Os tempos eram outros. Talvez a menina estivesse experimentando o fim do seu primeiro amor. Um relacionamento de dois amiguinhos que vinha de vários anos e que ela julgava como um namoro... Vai saber... Ele próprio crescera com uma melhor amiga que por alguma razão partiu seu coração ao surgir com um namorado... Talvez fosse algo nessa linha.
-Hmmmm... E ele e tu "namoravam" há muito tempo...? - Perguntou, tentando suprimir as aspas que se formaram naturalmente em seu discurso.
-Sim... - Confirmou a menina em um miado. -Dois dias...
-Dois... Dias... ? - Samuel absorveu com dificuldade: -E vocês se conheciam há quanto tempo?
-Dois dias... - Disse a menina, como se fosse uma obviedade, enquanto secava as lágrimas.
Samuel levantou, pegou o papel-toalha de volta, enfiando dentro da sacola de compras.
-É... Mundo cão, mesmo. Boa sorte. - Bufou.
Saiu deixando para trás a menina com sua dor.
Sabia que não tinha o direito de qualificar a dor alheia como mais ou menos justa, mas podia qualificar seu amparo.
E, por esse padrão, a menina que chorava pelo fim de um relacionamento de dois dias, no que dependesse dele, podia chorar até precisar receber fluídos no hospital.
Samuel ao menos descobrira que, eventualmente, conseguia ficar alheio ao choro de outrem.
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