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segunda-feira, 19 de setembro de 2016
O Pastor - Parte 2
A vida mudara desde a tenra infância...
Os anos passaram e conforme os hormônios entravam em ebulição, os prazeres infantis de brinquedos e doces deram lugar aos esportes e às gurias.
Com quinze anos de idade, ele já não era mais um menino, mas um rapaz. Um rapagão de constituição esguia e forte, que corria como um cavalo e dividia seu tempo entre a escola e o futebol.
Adorava o esporte, e, ainda que não tivesse pretensões de seguir uma carreira esportiva profissional, dedicava-se à atividade com paixão. Quando não estava estudando, estava praticando alguma atividade esportiva.
Conforme mudava de figura, deixando de ser o moleque rechonchudo que corria por cima de muros na praia, atraía olhares diferentes das meninas, antes, objetos de desejo inalcançáveis.
Gostava daquilo.
Não conseguia relativizar, à época, o quanto aquela mudança o agradava. Havia passado por alguns anos difíceis ao começar a frequentar a escola. Vítima de bullying era frequentemente discriminado pelas outras crianças, o que o levava a ter um círculo de amigos extremamente reduzido, geralmente restrito a um ou dois coleguinhas.
Naquele momento isso mudara por completo.
Sendo atlético e bem apessoado e tendo conservado a veia intelectual do isolamento infantil, ele tinha dezenas de amigos na escola e na vizinhança. Era convidado para festas, disputado para trabalhos escolares por conta das boas notas e praticamente arrancado de casa todos os dias por alguém do seu círculo social em constante expansão.
Estava feliz.
E teria permanecido assim, se em uma noite quente de dezembro, após chegar em casa tarde da noite e despencar dormindo no quarto, não tivesse tido um sonho...
No sonho, ele andava por uma rua do centro de Porto Alegre onde passaram bons anos de sua infância.
Ao lado do prédio onde morava, havia uma praça com grandes carvalhos enfileirados um ao lado do outro.
Reconheceu de imediato aquela praça.
Crescera brincando nela... Normalmente solitário... Ás vezes com amigos. Ali tivera sua primeira briga, e sua primeira derrota em uma briga.
A despeito disso, era um lugar familiar... Lembrava-se de brincar ali com revólveres de espoletas... Em um tempo quando o mundo era menos politicamente correto e as crianças brincavam com réplicas perfeitas de armas de fogo de verdade... Ele fora uma dessas crianças, feliz da vida com seu Colt .44 de cano ventilado que soltava fumaça por todos os lados quando disparado e era municiado com oito barulhentos cartuchos de pólvora em um anel de plástico vermelho, a única coisa que destoava no convincente simulacro de uma arma de verdade.
Em seu sonho, ele se lembrava de tudo isso. E se não fossem as sombras agourentas das árvores tomando formas sinistras no chão de terra, ele teria andado por ali de coração leve.
Mas foi justamente de uma daquelas sombras que emergiu, sorridente, uma figura medonha e familiar.
O "Homem das Flores", que o visitara em seus pesadelos durante uma longa semana na tenra infância ressurgia. Ainda usando botas negras, calças cinzentas e um colete preto aberto... Ainda com o peito forte à mostra, com a cabeçorra se estendendo muito além do que era razoável verticalmente.
Ele sorria, de boca aberta, e seus olhos... Dois pontos brilhantes dentro da cova de suas olheiras, aprofundadas pela sombra de sua testa projetada e dos asquerosos caroços inflamados em sua testa... Seus olhos encontraram o rapaz que, de imediato relembrou o terror infantil, e se pôs a correr.
As ruas estavam desertas, mas ainda que não houvesse sol, em seu sonho era dia, e ele reconhecia aquela rua. Crescera andando nela. Conhecia seus caminhos, entretanto o "Homem das Flores" parecia não precisar de mapa ou orientação. Em seu passo comedido estava sempre atrás do rapaz conforme ele se lembrava, e a cada vez que olhava para trás, a abominação parecia ter ganhado metros na perseguição sem fazer esforço algum.
O rapaz, prestes a sucumbir ao pânico, passou diante de uma garagem que tinha uma grande rampa que descia para o subsolo de um prédio.
Ao lado da rampa, havia um para-peito com um mirante de onde se podia observar o miolo de um quarteirão localizado em uma rua em declive, de modo que os fundos dos prédios da rua se encontravam vários metros abaixo do nível da calçada.
Em um átimo, o jovem se lembrou que, nos sonhos, ao cair, nós sempre acordamos antes do impacto fatal, e sabendo que, naquele momento, sonhava, fez a curva fechada para dentro da garagem e saltou do para-peito, acordando-se em seguida.
Ouviu o grunhido que exalara ao acordar.
Seu pescoço e nuca estavam suados em profusão. Sentou-se na cama e, por estranho que pareça... Riu.
Não pôde deixar de rir da situação. De ser assombrado por um pesadelo da infância. Achou verdadeiramente engraçado. Na verdade, olhando em perspectiva, naquela época, ele chegou a sentir uma doce melancolia após aquele pesadelo.
Mas não se aprofundou naquela linha da raciocínio. No dia seguinte sequer lembrava do tal sonho. Sequer sentiu orgulho da própria presença de espírito onírica, dar-se conta que estava sonhando, assumir as rédeas do sonho e saltar para o despertar, fora algo que, logo após acordar, o havia feito sentir uma fagulha de soberba, mas a verdade é que, naquele tempo, o vigor e a velocidade de uma vida adolescente não lhe dava tempo de remoer, reviver ou analisar coisa alguma.
Estava demasiado preocupado com o que acontecia à cada minuto. A escola, os esportes, os amigos, as festas, as gurias... Sempre havia alguma coisa acontecendo e ele não tinha tempo para ficar pensando em um sonho bobo que tivera naquela noite, ou em qualquer outra. E a verdade fora que o surto de adrenalina no qual acordara naquela madrugada havia sido um tipo de recreação...
O dia transcorreu repleto de descobertas, risos e esportes como transcorriam todos os seus dias, então.
À noite, quando foi dormir, nem sequer se lembrou do "Homem das Flores", e não sonhou com ele.
Ao menos não da maneira como ocorrera antes.
Naquela noite ele sonhou com uma casa escura. Parecia o sobrado de sua bisavó em Caçapava do Sul. Mas estava velho... Dilapidado. As paredes cor-de-rosa do quarto onde a bisa dormia e assistia à TV tinham a tinta descascada e estavam sujas e manchadas... O piso de tabuão de madeira escura estava úmido, e algumas das ripas de madeira que formavam o assoalho estavam fofas de tão podres, enquanto de outras faltavam grandes pedaços.
Na sala de jantar, cujas paredes eram dominadas por um quadro de Nossa Senhora e um grande relógio de parede, a mesa estava suja... Uma toalha de renda branca manchada estava em cima da mesa, ela estava manchada pelo líquido que escapava de uma taça longa virado ao lado de uma bandeja de porcelana branca.
Sobre a bandeja, havia um pedaço de carne esverdeada, e ela se mexia como se houvessem insetos ou larvas dentro dela... Ele não ouvia nenhum ruído, e a única janela do ambiente estava fechada, exceto por uma fresta entre as tábuas das venezianas por onde entrava uma luz pálida.
Olhou em volta dando-se conta que não encontrava as portas... Em sua memória, aquele ambiente devia ter três, a que levava à cozinha, a que levava à porta de entrada da velha casa e outra que levava ao anexo da casa nova, construída anos depois do sobrado original...
Percebeu-se preso naquela sala.
Sem ter pra onde fugir... Sem ter pra onde correr.
Andou até a parede do relógio. Lembrava-se que aquele relógio badalava de maneira agourenta à cada hora... Não foram poucas as ocasiões em que acordara de madrugada durante suas férias ouvindo o soar do relógio.
Perguntava-se como podiam continuar dormindo com o soar das badaladas madrugada adentro... Temia que o relógio ressoasse enquanto estava preso ali.
Aquele pensamento, por alguma razão, o encheu de terror.
O vidro do relógio estava sujo e embaçado... Ainda assim, o rapaz teve a impressão de ter visto o reflexo de alguém atrás de si, e se virou rápido para olhar.
Não havia ninguém, porém. Tudo continuava igual.
Exceto...
A taça... Modelo próprio para champanhes e espumantes... Estava de pé. E dentro dela, havia um cogumelo vermelho de haste longa.
Posicionado como se fosse uma flor.
Atrás dele, o relógio badalou.
Despertou novamente em sua cama. Suado e ofegante.
Não sentia o surto de adrenalina da noite anterior. Estava exausto.
Aquele pesadelo fora perturbador... Um augúrio de alguma espécie. Ele reconhecera de imediato o cogumelo de haste longa. O vira antes... Nos pesadelos de sua infância, arranjados como um buquê nas mãos do "Homem das Flores". Depois um deles preso à fita do chapéu preto que usava sobre a cabeçorra desproporcionada.
Não conseguiu mais dormir...
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